quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O poeta Rilke e o menino: um encontro

Jorge Adelar Finatto

Rarogne, Suíça, 27.01.2014. photo: j.finatto
 

O que não foi dito no texto de ontem, Estudos Rilkeanos, é que desde 17, 18 anos, tornei-me leitor do poeta Rilke (que foi registrado René e só muitos anos depois, por sugestão de Lou Andreas-Salomé, escritora russa, por algum tempo sua amante, depois amiga, passou a assinar-se Rainer).

Rainer Maria Rilke escolheu o Cantão do Valais, no sul da Suíça, para viver aqueles que seriam seus últimos anos. O homem que não teve uma profissão comum, que viveu sob a proteção de mecenas e mulheres, um expatriado no mundo. Um grande poeta e humanista de tempo integral, que teve uma infância difícil.

Em Sierre readquiriu a alegria da criação, mergulhou na língua francesa, indo além do ancestral alemão. Queria ser reconhecido como poeta francês, e não apenas como prosador na língua de Victor Hugo. Na época já era considerado um dos grandes poetas da língua alemã.

Viveu na casa-torre de Muzot, em Sierre, acolhido por um mecenas, entre 1921 e 1926. 

Torre de Muzut, Sierre. photo: j.finatto

O que não foi dito é que essa viagem à Suíça foi feita com a única motivação de seguir os passos do poeta nos últimos tempos em que aqui viveu, sentindo-se renascer como homem, traduzindo Paul Valéry, produzindo poemas franceses. Produção esta que, de alguma maneira, poderia apoiar um pedido de nacionalidade suíça que pretendia fazer. Não sei, afinal, se o fez e se a obteve.
 
(Jorge Luis Borges passou pelo constrangimento desnecessário de pedir essa nacionalidade e vê-la denegada. Como se ser suíço mudasse alguma coisa em sua gloriosa biografia de escritor, um dos mais importantes da literatura mundial.) Enfim...
 
O que não foi dito é que, diante do túmulo de Rilke, me emocionei.

Fiz uma oração para ele, para mim, na solidão azul das alturas álgidas dos Alpes. E senti outra vez como é bom tê-lo por perto da minha alma, ao longo da vida.

O menino pobre daqueles dias distantes veio visitar o poeta. O menino com grandes dificuldades de acesso a livros, a cultura, que continua um aprendiz, um curioso, um apaixonado pela vida e suas possibilidades.

O menino que sofreu, lutou, cresceu, tornou-se o homem de hoje, que nada mais faz além de dar-lhe a mão e sair com ele por aí...
 

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Estudos Rilkeanos (o epitáfio de Rilke)

Jorge Adelar Finatto 
 
Velha igreja de Rarogne, Suíça, ao lado da qual Rilke está enterrado
photo: j.finatto, 27.01.2014
 
 
Concluí ontem os Estudos Rilkeanos, em Sierre e arredores, Suíça, cátedra que eu mesmo criei e da qual sou, até o momento, o único aluno. 

Pela tarde, com a neve cobrindo os tênis, andava eu no pequeno cemitério da cidadezinha da Rarogne (perto de Sierre), na frente da igreja, atrás do túmulo e do famoso epitáfio do poeta. Rilke foi sepultado em 02 de janeiro de 1927 ao lado da igreja e não entre os outros túmulos,  por sua própria escolha (morreu em 29 de dezembro de 1926 numa clínica em Valmont, cercanias de Montreux).
 
O poeta tomou todas as providências relacionadas com sua morte, para a qual se preparava porque sofria de leucemia, doença, naquela época, fatal, ao contrário de hoje. Ele gostava muito da velha igreja silenciosa situada na encosta dos Alpes em Rorogne, do ar e da luz daquele ambiente. Na frente está o cemiteriozinho. O lugar se localiza a cerca de 400, 500 metros acima dos telhados, lá se chega através de uma estrada íngreme, a pique, entre casas perdidas no tempo.
 
Túmulo de Rilke. photo: j.finatto
 
Por duas ou três vezes quase fui ao chão entre as sepulturas. Desnecessário dizer que não havia mais ninguém na rua naquela hora, salvo um ou outro vulto, tal o frio e a neve que doía na cara. Mas Deus é pai e protegeu esse pobre cristão do pior, que podia ser cair lá de cima.
 
A capela e o cemitério estão bem no alto e, ainda assim, não ficam nem perto da metade do caminho até o topo das montanhas que se erguem em ambos os lados do vale, na cordilheira que vai ao infinito. Os Alpes, mais ou menos como o Contraforte dos Capuchinhos em Passo dos Ausentes, não têm fim...
 
photo: j.finatto
 
Em Rarogne se fala o alemão e depois o francês. Eu não encontrava o túmulo, não havia jeito. Não tinha ninguém, aparentemente, na igreja e nem na casa ao lado que pudesse dar uma informação. Li e não entendi o mapa fixado na parede. O cérebro naquela altura estava congelando com o resto do corpo. Até que surgiu uma criatura pela estrada montanha abaixo. Saí do cemitério e fui em sua direção.
 
photo: j.finatto
 
O bom homem se assustou ao constatar que eu saíra das catacumbas. Fiz sinal para que se acalmasse, eu ainda era um vivente. Conseguiu entender o que eu queria e, num francês com forte acento germânico, me indicou onde estava o túmulo, isolado, ao lado da igreja.
 
Enfim, está aí o registro, com o epitáfio-poema belíssimo e misterioso.
 
Epitáfio de Rilke. photo: j.finatto
 
Rosa, ó pura contradição,
                           volúpia,
de ser o sono de ninguém
                       sob tantas
pálpebras.*
 
Do muito que vi e aprendi nesses dias rilkeanos compartilharei oportunamente com os leitores.

____________

*Tradução de Manuel Bandeira, em sua Antologia Poética, Livraria José Olympio Editora, 7ª edição, Rio de Janeiro, 1974.

O poeta Rilke e o menino: um encontro:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/01/o-poeta-rilke-e-o-menino-um-encontro.html
 
 

domingo, 26 de janeiro de 2014

Rilke na gelada e pacata Sierre

Jorge Adelar Finatto
 
Sierre, Suíça, 26.01.2014. photo: j.finatto

 
Há pouco andava pelas ruas calmas de Sierre numa temperatura de - 1ºC. Para este domingo - agora é pouco mais de meia-noite-, está previsto um frio que pode chegar a - 7. É o rigoroso inverno, gelado e branco, que me faz levar sobre o esqueleto a manta e o grosso capote que trouxe de Passo dos Ausentes. Só tiro as mãos do bolso na hora de fazer as fotografias com a velha e intrépida Coruja. 
 
De manhã, logo mais, a palestra em que será abordada a obra de Rilke, talvez um pouco da vida do grande poeta de língua alemã (nascido em Praga, atual República Checa), e sua atividade como tradutor de si mesmo para o francês. Evento da Fondation Rilke de Sierre.
 
No hotel onde estou hospedado, passaram o próprio Rilke e Goethe, entre outros. O vetusto prédio do Hôtel de La Poste está reformado, mas continua o mesmo na essência. Não duvido que, no silêncio da madrugada glacial, encontre pelos corredores com fantasmas de artistas, poetas e escritores que por aqui andaram no passado. Pode ser, tudo pode ser nessa vida.
 
Como meus óculos são no estilo fundo de garrafa, às vezes me pregam peças com reflexos nas lentes, que me remetem a figuras fantásticas, carnais ou evanescentes, reais ou imaginárias. Nunca sei. Se cruzar com alguma assombração por aí, não me darei conta. É bom assim, que cada um viva na sua dimensão, no seu recolhimento, sem fazer estardalhaço nem atrapalhar os outros.

Sierre, 26.01.2014. photo: j.finatto
 
Rilke viveu nessa região os últimos seis anos de sua vida em que muito produziu. Morreu com 51 anos em dezembro 1926. Habitou na ocasião o pequeno castelo de Muzot, nas cercanias de Sierre, alugado para ele e depois adquirido por um mecenas do escritor. Ainda hoje é propriedade privada, só se pode observar por fora.
 
O poeta cuidava de rosas no seu jardim pouco antes da morte causada por leucemia. O que o levou a vir morar em Sierre, em solitude e branco silêncio, entre majestosas montanhas e o vale povoado de videiras que produzem um vinho excelente? Acho que, como sempre fez, andava atrás de si mesmo e do ser profundo que vive em cada um e em todos (muitas vezes adormecido).
 
Talvez venham algumas respostas no encontro de amanhã.
 
Se pudesse recomendar um livro aos leitores do blog, indicaria que lessem, mais de uma vez,  Cartas a um jovem poeta, uma obra profunda que, a pretexto da tratar de literatura, cuida mesmo da formação e da alma do ser humano, de uma maneira simples e transcendente ao mesmo tempo.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Montanhas cobertas de sol e neve

Jorge Adelar Finatto
 
 
montanha gelada com sol, Suíça, 24.01.2014. photo: j.finatto
 

No aeroporto de Lisboa, antes de embarcar para Genebra ontem, escolhi o jornal Público no balcão da TAP para leitura de bordo e a revista Sábado, esta ainda não conheço. Além do Público, gosto também do Jornal de Notícias e só eu sei a falta que sinto das crônicas do Manuel António Pina (1943-2012) nas páginas do periódico.
 
Poeta, escritor e jornalista de grande talento, lúcido e criativo, Pina faz muita falta à língua portuguesa e a nossa vida. O olhar crítico do escritor sobre a realidade temperado com a partilha do sonho nos dava esperança, esse sentimento que nos mantém vivos e nos empurra para frente.
 
Tenho uma relação de livros dele que vou comprar antes de retornar a Passo dos Ausentes, no Porto ou em Lisboa. Até onde sei, nada se publicou dele no Brasil até agora, o que é uma ausência imperdoável.
 
Venho à Suíça em função de um evento envolvendo o poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926), uma de minhas devoções literárias. Ele viveu no cantão do Valais os últimos anos de sua vida e ali concluiu a notável obra. Era um homem de temperamento contemplativo, brando, sentimental, calmo, a ponto de agüentar o mau gênio de Auguste Rodin quando foi seu secretário, ainda nos anos de juventude, em Paris, sendo um bom amigo.
 
A notícia é que mal cheguei aqui e já sinto saudade de Portugal. Poucas cidades são tão belas como Lisboa. E as pessoas são especiais em todo lugar.

A julgar pela têmpera, alma, valores e criatividade do povo português, acho que o país sairá desse difícil momento muito fortalecido, e virão dias grandiosos pela frente. Digo isso a partir da observação que faço nos últimos anos. Alguma coisa muito boa está sendo gerada no sal desse silêncio.
 
Como essas montanhas que a neve cobriu, congelando as seivas. A vida está lá, latente, invisível, e vai explodir na primavera.
 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Manuel Alegre, Pastéis de Belém, Elétrico 28

Jorge Adelar Finatto
 
Vista do Mosteiro dos Jerônimos, Lisboa, 23.01.2014. photo: j.finatto
 
Auschwitz

Olhar vazio esqueletos em pé
mortos-vivos caminhavam sem rumo.
E a quem lhes falava de Deus
eles apontavam a chaminé:
fumo.
                                 Manuel Alegre

Além de gastar o Elétrico 28 (bonde) andando pelas colinas e a baixa de Lisboa, tirei o dia de ontem, que estava azul e ensolarado, não obstante frio, para ir a Belém, esse bairro arejado e alegre.
 
Acho um lugar suave, com muitas opções culturais, como o Mosteiro dos Jerônimos e o Centro Cultural de Belém, bom de estar e ficar, na beira do Tejo, de onde partiam as caravelas ao Oceano a descobrir mundos. Bebi a costumeira taça de café com leite e comi dois pastéis doces que tanto me apetecem nos Pastéis de Belém.
 
Visitei amigos nesses dias portugueses, ouvi mais do que falei (porque nisso, pra mim, reside a graça), perambulei. Fui a livrarias em busca dos livros que fazem parte de uma lista de autores portugueses que não encontro no Brasil. Um nome, contudo, não tinha anotado: Manuel Alegre (1936).
 
Uma descoberta dessas vale uma viagem. Na terceira livraria do dia, na Praça do Rossio, descobri o livro Nada está Escrito, de Manuel Alegre (Publicações Dom Quixote, 2012, Lisboa). Tinha ouvido falar que se tratava de um político português, do Partido Socialista, que viveu anos no exílio durante a ditadura e que também era escritor, poeta.
 
Peguei o volume na estante e folheei-o com desconfiança. Políticos poetas são coisa rara. Li alguns poemas e vi que estava diante de uma exceção. Continuei a leitura no quarto de hotel, li quase todo.
 
Manuel Alegre é um senhor poeta. Não tenho qualquer idéia de seus feitos ou mal-feitos na política. Mas nesta obra constatei que tem muitos acertos como fazedor de versos. Pelo que escreve, deve ser um ser humano com um rico coração que leva para a política o melhor de si.
 
Encontrar uma pessoa sensível e que faz poemas para os semelhantes é um clarão na alma.
 
Daqui a algumas horas parto de Portugal, vou para longe, rumo ao norte. Vou feliz, com tantas coisas boas vividas nos últimos dias.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Ninguém é dono do poeta Fernando

Jorge Adelar Finatto

Fernando Pessoa ( à direita) com amigo no Café Martinho da Arcada, Lisboa
 

 Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho
como sempre tenho sido,
sozinho como sempre serei.¹
                                                    Fernando Pessoa
 
Nos últimos tempos tenho notado um aumento de animosidade entre alguns estudiosos da obra  e da biografia de Fernando Pessoa (1888-1935). Há como uma disputa que vem crescendo com o passar dos anos. Uma busca de afirmação pessoal a partir da maior visibilidade da obra do autor.

Existe uma briga de foice no escuro entre os que querem ser os únicos donos do Fernando e não admitem novos sócios na firma. Li textos que beiram a agressão em páginas de livros e revistas. Apontam coisas como, por exemplo, falhas na interpretação da letra do escritor que geraram escolhas supostamente equivocadas a comprometer seus textos.
 
Há evidente excesso no tom dessas manifestações, que prejudica não apenas a cordialidade do debate como a qualidade da discussão.

Precisa ficar claro que ninguém é nem será dono de Fernando Pessoa. Todo mundo sabe ou devia saber que a pátria dele é a língua portuguesa.

Minha pátria é a língua portuguesa,  escreveu no Livro do Desassossego, trecho 259.

Ele vive no idioma uma existência espiritual, a única em que encontrou um pouco de felicidade em sua vida cheia de limitações materiais, solitária e sacrificada.
 
Qualquer tentativa de apropriação de sua verdade mostra o lado pequeno de quem toma esse caminho. Lá na sua residência atual, no Mosteiro dos Jerônimos, no bairro de Belém aqui em Lisboa, o poeta deve rir-se quando toma conhecimento dessas besteiras em torno de si.

Para quem morreu sem reconhecimento, que não foi nada na vida (mesmo tendo escrito uma obra universal, sentido tudo e sido muitos em um só), há uma grande ironia nisso tudo. Disse ele:

Um dia talvez compreendam que cumpri, como
nenhum outro, o meu dever nato de intérprete
de uma parte do nosso século; e quando o
compreendam, hão-de escrever que na minha época
fui incompreendido, que infelizmente vivi entre
desafeições e friezas,
e que é pena
que tal me acontecesse.²
                                       Fernando Pessoa

Fernando Pessoa merece que o amemos pelo que é, independente de faniquitos e interesses pessoais de seus intérpretes. Dispensa proprietários.
_______________

Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Portugal
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=4287

¹-² Textos de Fernando Pessoa. Ponto M - 2013. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Oceanário de Lisboa

Jorge Adelar Finatto 
 
Oceanário de Lisboa, 21.01.2014. photo: j.finatto
 
Não houvesse outros motivos para vir a Portugal (há e muitos), este por si só justificaria a aventura de atravessar o Atlântico e visitar esta terra: o Oceanário de Lisboa.

photo: j.finatto. 21.01.2014
 
A terça-feira amanheceu chuvosa, convidando a ficar em casa. De modo que o itinerário que pretendia fazer pelas colinas e parte baixa de Lisboa com os elétricos (bondes) foi adiado. No oceanário fiquei impressionado com a beleza da vida que acontece abaixo e acima das águas marinhas, a variedade dos seres com suas ricas formas, tamanhos, cores, gêneros. Um mundo silencioso, abissal, encantador.

 
photo: j.finatto, 21.01.2014

É difícil resistir à graça e pequenez (cerca de 5, 6 cm) do peixe-palhaço em suas ligeiras evoluções entre os fios coloridos das anêmonas, com as quais vive em saudável (para ambos) associação.

É impossível não se deslumbrar diante da diversidade de centenas de espécies, passando por tubarões, arraias, até peixinhos quase invisíveis. Sem esquecer as medusas, os pingüins, gaivotas, tartarugas, estrelas-do-mar, papagaios-do-mar e tantos outros.

Esse universo é cuidado com zelo constante pela equipe da instituição, como se vê pela foto abaixo, em que presenciei o momento em que o "peixe-homem" trabalhava num dos inúmeros aquários existentes.

photo: j.finatto, 21.01.2014


O oceanário é a prova de que um mundo absolutamente fabuloso existe, quase como que numa outra dimensão, ao qual não estamos habituados, raramente vemos e temos pouca consciência de sua importância e da maravilha que representa.

Um ambiente do qual o homem só deve se aproximar com humildade, sabedoria e delicadeza para entender, preservar e extasiar-se.


photo: j.finatto, 21.01.2014
 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Maldita classe econômica

Jorge Adelar Finatto

Chafariz, Praça do Rossio, 20.01.2014. photo. j.finatto

 
O sujeito que inventou a classe econômica nos aviões pode não saber, mas o inferno, para ele, é certo. Vai direto para aquele sítio, se é que ainda não foi, pelo mal que causa aos viajantes menos afortunados, entre os quais me incluo. Não existe a menor possibilidade de que receba a benesse de uma transição para o purgatório e muito menos ao paraíso.
 
Como castigo passará o resto da eternidade sentado num desses torturantes assentos que criou para o sofrimento dos outros. Aqui fez, no inferno pagará.
 
Já o cara que criou o banheiro da classe econômica levará uma grande temporada no purgatório. Durante muitos e muitos anos terá de fazer suas necessidades naquele cubículo, encolhido, segurando-se nas paredes, equilibrando-se para não ir ao chão enquanto se alivia, ouvindo o rumor de gente apertada que aguarda a vez no corredor.
 
O passageiro da classe econômica viaja de teimoso. É, antes de tudo, um forte, lembrando o que disse Euclides da Cunha em Os Sertões a propósito do sertanejo.

O importante é não fazer parte da classe dos pobres de espírito deste mundo. Amar a poesia e a travessia. Estar sempre perto de Deus, que está em toda parte e é presença indispensável nas viagens de avião, por todas as razões.

Vista da janela

Tejo ao fundo, 20.01.2014. photo: j.finatto

Do meu quarto de hotel vejo uma nesga do Tejo entre os edifícios. O melhor lugar do mundo para olhar o mundo, se calhar, é a janela do quarto de hotel. Tudo na vida é passageiro e circunstancial como no quarto de hotel. Somos seres em viagem, absurdamente transitórios. O que nos salva é o sentimento. As cidades permanecem.

Levantei de madrugada e fui até a janela. Havia um silêncio denso, uma imobilidade. Logo mais o teatro de viver recomeçaria. Somos atores improvisados, atrapalhados com o roteiro mal escrito. Andamos aos tombos. Mas andar pela vida vale a pena, sempre. É um milagre.

A cidade de Lisboa é bela, não falta o que ver e fazer. Escolhi o dia de amanhã para andar de elétrico (bonde) pelas colinas e pela Baixa.

Elétrico(bonde).20.01.2014. photo: j.finatto
 
 A diáspora continua

O assunto da hora, em Portugal, é a fuga de cérebros do país. Sem oportunidade em sua terra, devido à crise econômica, os jovens são levados a pensar no aeroporto como única saída. É a velha e conhecida diáspora, apenas com outro recorte.

Atinge os mais novos, os que precisam "fazer a vida", construir sua história. O caminho de saída é tresloucado. Cabe aos mais velhos transmitir aos moços o conhecimento, a memória, para que possam assumir a história, o destino individual e coletivo. A isto chamamos tradição em qualquer sociedade.

A falta de perspectiva para os jovens é um sério problema em muitos países, inclusive no Brasil. A questão não se limita, portanto, a Portugal, embora aqui seja talvez mais sentida pelas características do país.

A diáspora da juventude, aqui e acolá, não é boa solução, longe disso. O futuro que o diga.
 

domingo, 19 de janeiro de 2014

Lisbon Revisited

Jorge Adelar Finatto

Amanhece sobre o Atlântico. 19/1/2014. photo: j.finatto
 

O avião pousou às 10h40min deste domingo em Lisboa. Tão delicado foi seu pouso, tão correto o vôo de mais de dez horas desde Porto Alegre, que os passageiros aplaudiram vivamente o comandante da TAP, com grande justiça.
 
O que posso dizer? Cheguei moído e insone como sempre acontece. Vi o noticiário, algum outro programa no sistema de bordo, mas sobretudo vim escutando o fado. Sim, o fado, essa maneira tão portuguesa quanto universal de estar no mundo.
 
Lisboa revisitada, como no título do belíssimo poema de Fernando Pessoa de 1923. O frio é intenso, a umidade está no ar. Dormi à tarde no quarto de hotel. Antes fui até a banca de revistas e comprei o Público. Depois, no fim do dia, um prato de bacalhau com o vinho Mina Velha, que não sou de ferro.

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!

                                     (trecho de Lisbon Revisited, Fernando Pessoa)
 
 Volto a Lisboa como quem volta a si mesmo.
 
Após umas quatro horas de sono, assisto na RTP a um programa musical com o grande nome do fado Carlos do Carmo. Ele canta canções de diversos autores, entre os quais Ary dos Santos, José Afonso, Alexandre O'Neill, Manuel de Freitas. É uma reprise de algo que aconteceu há 15, 20 anos atrás. Só papa-fina.

Alguém poderá pensar que ando em Lisboa atrás do passado, porque gosto do fado e de caminhar na beira do Tejo (tão calmo como o vejo na ampla janela do quarto neste momento). Sim, Portugal tem um passado. Mas o fado? O fado é futuro.

O compromisso dessa viagem é um evento sobre o poeta Rilke do qual vou participar na Suíça. Mas não poderia deixar de vir a Lisboa de Fernando, esse poeta absoluto e genial. E, na Espanha, tenho encontros com Ortega y Gasset e Miguel de Unamuno. São visitas que compensam muito sofrimento dessa vida.

Um encontro com a maravilha.

Anotei o nome de escritores que vou buscar nas livrarias: José Cardoso Pires, Manuel António Pina, Alexandre O'Neill, Daniel Jonas, Herberto Helder, Jorge de Sena e mais o que esqueci e vou lembrando. E tenho amigos para rever, como o António Sousa no Martinho da Arcada, lugar marcante na vida de Fernando.

O pássaro pousou. Começa o vôo.

 Mar Português

                           Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


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O barbeiro de Fernando Pessoa:
http://ofazedordeauroras.blogspot.pt/2010/04/o-barbeiro-de-fernando-pessoa.html
 

sábado, 18 de janeiro de 2014

Milonga del Ángel

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto

 
Habitamos entre nuvens. Os ventos nos açoitam aqui nos Campos de Cima do Esquecimento em sua louca debandada em direção ao sul do continente. 

Juan Niebla fez o convite para ouvi-lo tocar seu bandoneón. Estamos agora na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. O concerto intitula-se Milonga del Ángel, música de Astor Piazzolla, leitmotiv da reunião.
 
Talvez porque hoje é sábado, e domingo costuma ser um dia agonizante, celebramos a vida escutando músicas que tocam fundo nosso coração.

Niebla é cego, guardião da memória da cidade junto com Don Sigofredo de Alcantis.

Estamos no Café dos Ausentes que é o que restou da velha estação. Fechamos os olhos, sentimos  a melodia que emana dos dedos magros e ágeis.

As mãos do cego apalpam o invisível, ressuscitam sonhos e emoções.

Iniciamos a nossa charla após o concerto, como de costume.
 
Diz Niebla:

- Imaginem uma cidade espiritual, em que os ancestrais vagueiam em silêncio pelas casas e ruas, vivem nos antigos retratos, nas cartas guardadas no fundo de gavetas, sobrevivem na memória dos poucos que ficaram. Isso é Passo dos Ausentes.

- Para onde nos levam os caminhos entre as estrelas, Juan? - indaga Don Sigofredo, piscando o olho em minha direção.

- Não pense que não percebi a piscadela, quimérico amigo. Nunca duvide das antenas deste velho morcego. Mas já que pergunta, na verdade não sei aonde levam aqueles caminhos. Tu és o filósofo, esforçado tradutor do intangível.

- Sou só um cego numa estação de trem abandonda esperando o comboio fantasma que vai levar-me um dia por trilhos desconhecidos. Por enquanto é música e é fraterno encontro, estamos todos vivos, graças a Deus.

- Também ando pela vida à procura de respostas -, continuou Niebla. - Ouçamos o que nos disse o nunca suficientemente lembrado poeta e filósofo Hölderlin, no seu Fragmento de Hipérion*:

"Interrogo as estrelas e elas permanecem mudas. Interrogo o dia e a noite, mas eles não respondem. De mim mesmo, se me interrogo, entoam apenas sentenças místicas, sonhos sem interpretação".

A solidão é o que mais nos aproxima nessas reuniões. Estamos sós na beira dos penhascos. Caminhamos para o oblívio nesse esquecido fim de mundo.

Acreditamos em anjos, nos consolamos. Entre nuvens.

 _______________

* Hipérion ou O Eremita na Grécia. Friedrich Hölderlin. Tradução, notas e apresentação por Marcia Sá Cavalcante Schuback. Forense, Rio de Janeiro, 2012.

Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo desde 1940, na estação de trem abandonada da cidade. Tem 89 anos, é cego desde os 15.

A cidade perdida: as origens:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/cidade-perdida-as-origens.html
 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Navegações

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 
Não existem chegadas
e partidas definitivas
rijos itinerários nascidos
na rota turbulenta
dos abismos

o que há é esta
necessidade de navegar
que começa não sei
em que rio

ou fundão
e depois se expande

um dia toda busca
cristaliza
e se pode, enfim,
recolher as velas
no porto do outro
mundo

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Julio Cortázar em Porto Alegre

Jorge Adelar Finatto






A literatura passa um sentimento de permanência das coisas. Nós passamos, as palavras escritas ficam. A maior parte dos livros dura muito mais do que as pessoas.

Os escritores que escolhemos para nos acompanhar na travessia são fundadores dessa eternidade de papel. Os livros fazem parte do que somos.

A lembrança mais remota que associo ao nome do escritor argentino Julio Cortázar (1914 - 1984) é dos primeiros tempos de estudante universitário em Porto Alegre. O ano 1976, tinha dezenove anos. Estava lendo Histórias de Cronópios e de Famas e As Armas Secretas.

A fila do restaurante universitário era torturante pra quem tinha que ir pro trabalho cedo da tarde como eu. Estudante pobre, precisava trabalhar pra sobreviver, como muitos. Nas filas do r.u., lia Cortázar (foto). Então, aquele era também um bom momento do meu dia. Depois li outros livros dele.

Agora, lendo Papéis Inesperados (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht), livro de 490 páginas, com textos inéditos do escritor, publicado originalmente em 2009, vinte e cinco anos após sua morte, reencontro Cortázar. No Brasil, o livro foi lançado em 2010 pela Civilização Brasileira.

Os textos - encontrados em uma velha cômoda, na casa onde morou o autor, em Paris, por sua viúva Aurora Bernárdez - são poemas, contos, outras histórias de cronópios e de famas, outros episódios de Um tal Lucas, um capítulo de O Livro de Manuel, discursos, prólogos, artigos de arte e literatura, crônicas de viagem, etc.

A felicidade de encontrar material novo do autor, tantos anos depois, é muito grande.

O dado inusitado e, para nós que amamos a literatura de Julio Cortázar, muito gratificante foi descobrir uma menção a Porto Alegre no texto Never stop the press, onde se lê a frase "uma vista escolhida do Tirol e/ou de Bariloche e/ou de Porto Alegre" (pág. 117).

Sei que Cortázar gostava do Brasil, onde esteve pelo menos em duas ocasiões, e que admirava, por exemplo, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, além de apreciar nossa música, especialmente Caetano Veloso, mas ignoro se alguma vez esteve em nossa cidade.

De qualquer forma, ver Porto Alegre no texto de Cortázar, ainda que só de passagem, dá o que imaginar. Pensando bem, acho que ele tinha muito a ver com a cidade povoada de barcos e crepúsculos, jardins escondidos na frente de casas desaparecidas, quintais perdidos no tempo.

Silenciosos gatos caminham sobre muros cobertos de hera em ruas esquecidas habitadas por fantasmas.

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Texto atualizado, publicado em 11 de agosto, 2010.

domingo, 12 de janeiro de 2014

O peixe da boca vermelha

Jorge Adelar Finatto
photos: j.finatto




A caminhada polifônica destina-se não apenas ao exercício do corpo como à indispensável atenção às coisas do espírito.

A observação dos seres vivos e da paisagem, a aproximação estética e sensorial da mãe natureza, a respiração do ar limpo e fresco das manhãs e tardes, a descoberta de inefáveis epifanias durante o percurso, tudo isso faz parte da polifonia andante.




Caminhava eu, pois, nas cercanias do Lago da Neblina, em Passo dos Ausentes, em andança de paz e contemplação, prevenido com a invencível Coruja, a vetusta máquina fotográfica que me acompanha. 

Os gansos, insolentes, desistiram de acusar a minha presença. Concluíram após breves instantes que sou apenas um andarilho que está só de passagem, um sujeito inofensivo, sem nenhuma importância na ordem cósmica, um sopro, como se diz, na ventania, que perambula a bordo de um chapéu de palha branco, levando grossas e estapafúrdias lentes nos óculos, à cata do invisível.

Um indivíduo assim não oferece risco à fauna nem à flora, quiçá a si mesmo.

Andava, portanto, em pleno dia, como quem persegue uma estrela cadente. 

Nas margens e dentro do lago existe vida pulsante. Estava olhando o vazio (essa maneira de encontrar, talvez, o inesperado), quando ouvi um vago rumor na água no meu esquerdo lado (a bombordo, como nós, marinheiros do universo, costumamos de dizer).




Foi quando me apareceu, vindo do fundo das águas, o amigo (ou amiga) dessas photos.




Um peixe branco, a boca pintada de vermelho, com traços coloridos espalhados pelo corpo, cerca de 1 metro de comprimento. Passou a simpática criatura a navegar perto de mim.

Tive a impressão de que sabia da sessão de photos, ao menos não poupou poses e movimentos. Chegou-se mais para a beira, tornou-se mais íntimo, mas não tão próximo que não pudesse executar um plano emergencial de fuga caso isso fosse necessário. Não foi.



Acho que ele quis dizer alguma coisa com sua esguia, calma e querida presença, e acho que conseguiu.





O peixe da boca vermelha encheu de beleza a tarde e o meu coração.

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Texto revisto e atualizado, publicado em 25 de janeiro, 2011.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A luz de cada um

Jorge Adelar Finatto




photo: j.finatto


Um súbito apagão mergulhou a todos no breu profundo, o mesmo que dominava o Brasil naqueles anos difíceis. No grande saguão cerca de 200 pessoas aguardavam para assistir a uma palestra. Talvez com o ator, dramaturgo e escritor paulista Plínio Marcos (1935-1999), num encontro que foi memorável. Mas não tenho certeza. Devia ser 1978, 79, 1980 quem sabe.  Como a maioria das pessoas ali presentes, eu era estudante de jornalismo. 

A ditadura militar no Brasil (1964-1985) se encaminhava pela abertura "lenta e gradual" iniciada pelo general-presidente Ernesto Geisel (1907-1996). As palestras na Faculdade de Comunicação Social da PUC, em Porto Alegre, eram com pessoas que, além de fazer um balanço do período de exceção, trabalhavam pela democratização, projetando o futuro dentro da democracia. Vinham artistas, sindicalistas, escritores, professores, jornalistas, cientistas, homens e mulheres que pensavam o Brasil.

Havia então muita esperança. Precisávamos, mais que tudo, de esperança pra suportar o tempo mau. E de muita disposição para reconstruir um país e nossas vidas nele.

A ditadura colheu as pessoas da minha geração em plena infância. Fomos criados no cercado do pensamento único. "Brasil, ame-o ou deixe-o" era um dos adágios da propaganda de Estado.

Esperávamos no saguão a abertura do auditório. A treva tomou conta. Era a metáfora da situação vigente. Muita gente no escuro, sem saber como sair do calabouço daqueles anos duros.

No início houve um silêncio, uma espera inquieta sobre o significado do apagão. Pouco a pouco as conversas foram retomadas.

Em meio à grossa escuridão, começaram a ser acesos fósforos, isqueiros, folhas de caderno como tochas. Pontos de luz passaram a brilhar formando claridades, que foram se espalhando. O breu já não nos engolia. Havia um ritual de instauração da luz. Não era uma grande luz, eram intermitentes chamas rebelando-se contra a treva.

A luminosidade era a soma da luz de cada um. Não era uma luz sozinha. Pequenas luzes dissipavam o medo.

Somos centelhas luminosas. Só que muitas vezes não nos damos conta dessa energia.

Quando deixamos a luz escapar da escuridão que nos habita, rompemos o breu, fundamos claridade.

Pelo menos foi isso que senti na ocasião e sinto ainda hoje. Nunca esqueci. Nunca esqueço. Quando a luz voltou, já estávamos iluminados. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A vida vale um caco

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Existe beleza nos cacos de uma xícara quebrada, agora eu sei.

Juntei os restos de louça espalhados no chão do escritório, acondicionei-os em folhas de jornal, preparei o material para descartar no lixo seco. Desci, coloquei tudo no recipiente próprio. Depois subi a escada Santos Dumont e voltei ao trabalho.

Enquanto labutava, percebi num canto da sala uma reminiscência da xícara em forma de lasca colorida.

As cores e o formato daquele caco me chamaram a atenção. Eu descobri que havia beleza naquilo. Fui em seguida até o lixo e resgatei os outros pedaços.

photo: j.finatto

O objeto xícara havia se partido acidentalmente ao cair no chão. Deu origem a vários outros miniobjetos com formas, cores e volumes próprios.

No ato trágico de morrer da xícara-mãe, os fragmentos renasceram individualmente, dando inicio a novas "vidas". No ato de nascer, receberam a marca intransferível da solidão que caracteriza as coisas e os seres deste mundo.

Sei, por experiência de quem é astrônomo do farelo, observador de miudezas, que não existem outras lascas iguais a essas.

photo: j.finatto

São entes novos no universo. Estão aí com sua particular verdade, têm uma face própria, uma maneira de ser, uma sombra, ocupam um certo espaço, a claridade os ilumina todas as manhãs, existem.

A asa da xícara ficou incólume, contudo não é mais uma asa. Aderente à superfície convexa, lembra mais uma orelha.

Uma orelha que escuta talvez a voz de uma boca ausente, uma canção impossível.

Libertou-se, a asa, da antiga e rígida situação funcional. Ninguém mais poderá tratá-la ou esperar dela que se comporte como se singela asa fosse. É uma nova entidade, um corpo mutante com uma estética única. Perdeu a natureza acessória com que veio à existência.

photo: j.finatto

De certo modo, os fragmentos estão mais vivos do que quando formavam um todo orgânico e fechado. Aproveitaram a chance, gozam agora de uma liberdade que antes não conheciam.

O que aconteceu com os cacos foi um reviver após a morte súbita da mãe-xícara. Estão soltos no mundo, rebentos recém paridos, cada um a seu jeito. Como todos os seres, correm riscos e o futuro lhes é incerto. O preço de estar vivo.

Olho os restos no canto da escrivaninha. São parecidos com tudo que é vivente. Aprenderam na pele que, às vezes, cair um baita tombo, bater com a cara no chão, ficar reduzido a estilhaços, pode ser o caminho para um novo, jamais imaginado, belo e colorido recomeço.

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Texto revisto e atualizado, publicado em 30 de abril, 2013.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A primeira manhã

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto*


Porque há hibiscos
                       na rua
e a primavera
quase sempre
é sentimento
te ofereço esta manhã

como fantasma
não faço mais
que transitar
nessa obscura rota
do adeus

como se fossem meus
colho teus segredos
que o vento carrega
para onde eu não sei

te ofereço esta manhã
a primeira manhã do mundo
para não esqueceres
o bem que te quero

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Do livro Memorial da vida breve, J.A.Finatto, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
photo: janela do Castelinho, Caracol, Canela.

domingo, 5 de janeiro de 2014

A palavra e o moinho

Jorge Adelar Finatto 
 
Livraria Miragem, setor do sebo. photo: j.finatto, 02/01/2014


Aproveitei o dia nublado de 2 de janeiro e desci da neblina de Passo dos Ausentes para visitar mais uma vez a Livraria Miragem, em São Francisco de Paula. Nessa pequena cidade os Campos de Cima da Serra se estendem até chegar aos Campos de Cima do Esquecimento (que iniciam 100 quilômetros depois, a nordeste, no lugar mais alto e frio do Rio Grande do Sul).
 
Na livraria, antes dos livros, dei uma passada no café e bebi um copo de hidromel acompanhado de uma fatia do delicioso bolo caseiro. A pausa serviu também para tirar os solavancos do corpo e a poeira da roupa, fruto da descida vertiginosa pelo Contraforte dos Capuchinhos por estrada de chão batido.
 
photo: j.finatto
 
Me dirigi depois sem demora ao terceiro andar da livraria, onde está o belo e silente sebo. Escolhi dois livros. Um de uma autora inglesa de quem nunca ouvira falar, George Eliot, nome fictício de Mary Ann Evans (1819-1880). Intitula-se O Moinho do Rio Floss. Li as primeiras páginas e me agradou a descrição do cenário rural. É uma edição de aspecto razoável, datada de dezembro de 1945. Publicada pela Livraria José Olympio Editora, de inestimáveis serviços prestados aos leitores do Brasil, a obra tem tradução de Oliveira Ribeiro Neto.  Apesar de vetusta, muitas das 559 páginas precisam ainda ser abertas com espátula. As páginas têm a cor meio ocre de folhas de plátano no outono.
 
O outro livro é de ensaios, Vivendo pela palavra, da escritora americana Alice Walker (1944), autora do famoso A Cor púrpura, que virou filme de sucesso. Trata-se de publicação da Editora Rocco, de 1988, com tradução de Aulyde Soares Rodrigues, 190 páginas. Estou já pela metade da leitura e gostando muito (não li nada dela antes).


photo: j.finatto
 
Alice tem uma abordagem simples da vida, ao mesmo tempo em que extrai sofisticadas sínteses de suas observações. É uma ativista dos direitos humanos. Neste livro de 27 ensaios, escritos entre 1981 e 1988, publicados antes em revistas, ela fala de relacionamentos, começando com seu pai, traz lembranças de sua vida familiar de menina pobre e negra no sul dos Estados Unidos, aborda política, racismo, viagens, homossexualismo, bichos, natureza, dificuldades no convívio com seus cabelos (e a superação delas), e personagens que conheceu, como o grande poeta Langston Hughes (este lembrado no texto O velho artista, a respeito de outro belo personagem, o Sr. Sweet).

Abrimos uma página, ao acaso, e lá encontramos sua infância rural, na Georgia, fim dos anos 1940, e vemos um velho tocando violão e cantando blues, ao lado do forno quente que assa biscoitos, na cozinha cheirosa. E tem também uma cadeira de carvalho feita pelo avô, os problemas afetivos e materiais da família, e muito além disso, mais tarde, o mundo e suas mil faces.

photo: j.finatto

A escritora pensa e sente a condição de mulheres e homens negros de seu país e do resto do mundo. Denuncia a opressão onde a percebe e mostra o valor e a beleza das pessoas, independente de raças, e suas difíceis circunstâncias. Tudo isso com sensibilidade, numa linguagem cálida, não raro de mãos dadas com a poesia.

Os livros não têm resposta pra tudo, é verdade, nem podem nos salvar. Mas nos ajudam a viver. Abrem caminhos para o que não conhecemos, fora e dentro de nós. Nos completam.
 
Os escritores trabalham como um moinho que vai sentindo e meditando as coisas da vida, re-moendo os fatos e as circunstâncias, deles extraindo sentidos. O resultado são palavras que nos entregam com a suma dessa experiência e suas revelações.

Começou a entardecer. Me despedi do pessoal da livraria e voltei pra estrada rumo de casa. Com esses dois livros e a alma mais leve do que quando cheguei.

photo: j.finatto