sexta-feira, 16 de maio de 2014

O dinossauro postal

Jorge Adelar Finatto

 
As cartas são - ou foram - uma bela forma de comunicação entre as pessoas. Havia quase um ritual: pensar, sentir, escrever, pôr no envelope, levar ao correio. E depois a expectativa da resposta.
 
Era um mundo diferente com tempos diferentes. A vida era mais lenta. Com menos pressa, vivia-se a longo prazo. Amanhã todos seriam felizes. As coisas amadureciam, cada uma tinha seu momento.

Agora é só rapidez, angústia. Falta tempo pra viver. E faltam cartas perfumadas!
 
Durante muitos anos mantive uma caixa postal na agência dos correios em Porto Alegre. Era jovem, pobre e mudava de endereço com certa freqüência (mesmo detestando mudanças). Era o modo seguro de não extraviar a correspodência. 

Essa caixa postal foi a sala de uma morada espiritual, solta no espaço, de etérea arquitetura, lírica e afetiva. Uma espécie de caverna entre nuvens onde recebia amigos para conversar, trocar idéias, fazer projetos, compartilhar sonhos, saber da vida, do mundo.

Tudo isso, claro, em textos manuscritos com tinta azul. Vivia na luta do estudo e do trabalho, carregava muitas esperanças. Ia duas ou três vezes por semana no correio abrir a caixa.

Não havia outra maneira de trocar mensagens para a maioria das pessoas, além da carta. O telefone, caro e acessível a poucos, limitava-se a uso eventual e para conversas ligeiras.

Na caixa postal recebi cartas que encheram meu coração. Entre outras, de Carlos Drummond de Andrade, Ênio Silveira, Moacyr Félix, João Antônio, Ferreira Gullar. Mesmo escritores importantes como esses dispunham-se a escrevê-las a seus leitores. Hoje, mesmo com a facilidade do e-mail, essa troca pouco acontece. As distâncias, como as vaidades, aumentaram. Isso não há tecnologia que resolva.

Não vou falar mal do e-mail e de outros recursos eletrônicos. Cada um tem seu valor e ocasião. Vale lembrar que a troca de informações por celular (telemóvel) já salvou vidas em acidentes e tragédias. As novas tecnologias não são inimigas da comunicação postal. Outros fatores colaboram para seu desuso.

A carta demanda um tempo e um estado de espírito que talvez não existam mais.

Salvo se algo diferente acontecer, as cartas estão perto da extinção. Há uma geração inteira que não se utiliza delas. Os meios eletrônicos de comunicação ocuparam seu espaço: mensagens rápidas, curtas, sinais, abreviaturas, quase em código. Poucos, por exemplo, escrevem abraços e beijos: disparam abs. e bjs.

Com o fim das cartas perde-se importante fonte de pesquisa documental. Estudos culturais e literários valiosos foram feitos sobre correspondências de remetentes e destinatários.

As cartas lançam luzes sobre a vida de indivíduos, suas obras, e sobre as sociedades nas quais viveram. Com base em e-mails isso dificilmente será possível.

A correspondência de Van Gogh e seu irmão mais novo Theo (que o sustentou até a morte, sendo responsável, em boa medida, pelo aparecimento da obra do genial pintor holandês) é uma das mais ricas e reveladoras que vieram a lume. Nas cartas, Van Gogh abre sua alma, reflete sobre a existência e a arte com profundidade e sentimento.

Não sei há quanto tempo não escrevo nem recebo uma carta. As últimas foram no século passado. Talvez não volte a escrever nunca mais. Por isso guardo as velhas cartas com cuidado na gaveta. De vez em quando releio alguma e me enterneço. Me sinto testemunha de um tempo extinto. Sou um dinossauro postal.

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Cartas perdidas:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/03/cartas-perdidas.html
O silêncio de Van Gogh:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/12/o-silencio-de-van-gogh.html
 

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