Sou como os trilhos cobertos de hera da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. Vive em mim o sentimento das chegadas e partidas dos trens, o vai-vem humano, o sentido da transitoriedade das coisas.
Digo sempre às magnólias do meu jardim: nunca esqueçam de mim. Me chamo Juan Niebla, músico de profissão. Meu instrumento é o bandoneón. Tenho 89 anos, sou cego desde os 16. Ditei essas linhas fugidias ao poeta Heitor dos Crepúsculos.
As sombras espalham suas sedas sobre mim. O pior cego, digo eu, é o que não consegue mais sonhar. Realidade sobeja desfaz a alma, empareda o coração.
À noite todas as coisas se dispersam. É quando o peso de existir se concentra em tons de solidão. Sozinho no escuro, altas horas, recordo minha mãe e o menino que eu fui. Eu mesmo acendo o fogo no fogão a lenha e preparo o café, que bebo fumegante com os biscoitos comprados na padaria de Mocita de La Vega.
Ligo o rádio elétrico na mesa da cozinha e fico escutando estações do Uruguai e Argentina. Nesse momento toca o Noturno nº 2 de Chopin, que eu amo. Nesses enquantos, convoco seres que povoam o território do oblívio: pais, irmãos, primos, primas, tios, tias, amigos, certa mulher, um perfume, pessoas que não estão mais aqui, mas é como se estivessem. Não quero deslembrar. Sou formado por essas criaturas.
Digo sempre às magnólias do meu jardim: nunca esqueçam de mim. Me chamo Juan Niebla, músico de profissão. Meu instrumento é o bandoneón. Tenho 89 anos, sou cego desde os 16. Ditei essas linhas fugidias ao poeta Heitor dos Crepúsculos.
As sombras espalham suas sedas sobre mim. O pior cego, digo eu, é o que não consegue mais sonhar. Realidade sobeja desfaz a alma, empareda o coração.
À noite todas as coisas se dispersam. É quando o peso de existir se concentra em tons de solidão. Sozinho no escuro, altas horas, recordo minha mãe e o menino que eu fui. Eu mesmo acendo o fogo no fogão a lenha e preparo o café, que bebo fumegante com os biscoitos comprados na padaria de Mocita de La Vega.
Ligo o rádio elétrico na mesa da cozinha e fico escutando estações do Uruguai e Argentina. Nesse momento toca o Noturno nº 2 de Chopin, que eu amo. Nesses enquantos, convoco seres que povoam o território do oblívio: pais, irmãos, primos, primas, tios, tias, amigos, certa mulher, um perfume, pessoas que não estão mais aqui, mas é como se estivessem. Não quero deslembrar. Sou formado por essas criaturas.
Muitas vozes falam através de mim e do bandoneón, a voz dos ausentes. Sim.
Habito o interior de uma pintura, dentro de um lago profundo e silencioso. Ali me sento e lembro. E sonho também. E rezo nesses confins.
Vivo tão ausente que, às vezes, passo por mim e não me reconheço. Quando estou há muitos dias desaparecido, saio a me procurar, saber o que houve, por onde andei, o que fiz, com quem falei. As ausências.
Amanhece. Estou na velha estação de trem, sentado no banco de madeira, de peroba rósea, com o bandoneón ao colo. Espero o próximo comboio. Dizem que nunca mais virá. Eu tenho fé que sim, sim, um dia chegará, e quando isto acontecer estarei aqui para receber os passageiros com música.
Sou o músico da estação, fui contratado por concurso público em 1940, quando tinha 15 anos. Trabalho desde então na estação do trem de ferro. Atuo também na Banda Municipal e na Orquestra de Câmara de Passo dos Ausentes. Deus e os amigos sabem.
Sou cego e minha luz vem da música. A música é a minha claridade. O ambiente à minha volta começou a perder o foco. Um dia as formas e os contornos do mundo me abandonaram. Passei a ver borrões de luz. Até que veio a escuridão completa.
Trago recordações felizes de quando enxergava. A nossa casa entre as árvores na margem do Lago da Ausência. A face da minha mãe me olhando e rindo enquanto estendia roupa no varal.
Os pássaros e os peixes, mil cores. Lembro com clareza o azul e o branco.
O frio nesta época é excessivo. Recolho-me cedo da tarde ao Café dos Ausentes, que fica na estação. Passo horas conversando com o dono do estabelecimento, Nefelindo Acquaviva. Danado inventor de aparelhos voadores, seguidamente se espatifa no chão com seus inventos. É um milagre que ainda esteja vivo. Coisas voam sem parar na cabeça do meu amigo.
Ultimamente, Nefelindo anda mais contemplativo que de costume. Eu conheço esse silêncio. Nesse estado de espírito, limita-se a navegar pelos céus de Passo dos Ausentes no seu dirigível que pode carregar até três pessoas. Eu sou um dos costumeiros e raros passageiros.
Ninguém quer pôr a vida em risco numa geringonça voadora qualquer. Eu não ligo. Embarco no pássaro-invenção do amigo. Gosto de sentir o vento batendo na cara quando sobrevoamos o Vale do Olhar em direção ao Contraforte dos Capuchinhos. Um dia ainda vamos atravessar o oceano, ele promete. Eu acredito.
Converso muito, também, com o fantasma de Heitor dos Crepúsculos, suicida arrependido que perambula pela ruas e praças de Passo dos Ausentes. Um bom sujeito, uma das tantas almas perdidas que vagam pelos Campos de Cima do Esquecimento.
Trago recordações felizes de quando enxergava. A nossa casa entre as árvores na margem do Lago da Ausência. A face da minha mãe me olhando e rindo enquanto estendia roupa no varal.
Os pássaros e os peixes, mil cores. Lembro com clareza o azul e o branco.
O frio nesta época é excessivo. Recolho-me cedo da tarde ao Café dos Ausentes, que fica na estação. Passo horas conversando com o dono do estabelecimento, Nefelindo Acquaviva. Danado inventor de aparelhos voadores, seguidamente se espatifa no chão com seus inventos. É um milagre que ainda esteja vivo. Coisas voam sem parar na cabeça do meu amigo.
Ultimamente, Nefelindo anda mais contemplativo que de costume. Eu conheço esse silêncio. Nesse estado de espírito, limita-se a navegar pelos céus de Passo dos Ausentes no seu dirigível que pode carregar até três pessoas. Eu sou um dos costumeiros e raros passageiros.
Ninguém quer pôr a vida em risco numa geringonça voadora qualquer. Eu não ligo. Embarco no pássaro-invenção do amigo. Gosto de sentir o vento batendo na cara quando sobrevoamos o Vale do Olhar em direção ao Contraforte dos Capuchinhos. Um dia ainda vamos atravessar o oceano, ele promete. Eu acredito.
Converso muito, também, com o fantasma de Heitor dos Crepúsculos, suicida arrependido que perambula pela ruas e praças de Passo dos Ausentes. Um bom sujeito, uma das tantas almas perdidas que vagam pelos Campos de Cima do Esquecimento.
No cair da noite, volto pra casa com meu capote de lã azul-marinho, meu chapéu de aba, os óculo escuros, o bandoneón que levo nas costas como mochila e a bengala de bambu cor de açúcar queimado, construída especialmente para mim pelo honorável Akira Munefusa, sensível artista e poeta que vive numa cabana na beira do Lago da Ausência.
Anoiteço outra vez.
Vou tomar café com meus fantasmas.
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Do livro Histórias de Passo dos Ausentes. Registro na Biblioteca Nacional, Escritório de Direitos Autorais, nº 663.190, livro 1.277, f.. 316.
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