quinta-feira, 7 de maio de 2015

Heráclito e o espelho

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto. vôo sobre o Guaíba

 
Heráclito de Éfeso (540 - 480 a.C) disse que ninguém entra ou se banha no mesmo rio duas vezes. A aguda percepção de pensador, que não só pensava como vivia o pensamento, referia-se ao fato de que tudo muda incessantemente, o homem, o rio e todas as coisas.
 
Para o filósofo, tudo está em movimento. O mundo é a unidade dos opostos. Dia e noite, sol e chuva, doença e saúde, agudos e graves, macho e fêmea, inverno e verão, guerra e paz fazem parte de um todo.
 
Heráclito acredita, porém, que um pensamento sábio governa tudo. Há uma justiça no cosmos que orienta o destino dos seres e dirige a vida. Os eventos ocorrem na hora certa.
 
Nós não somos sempre os mesmos, mudamos, conforme o velho filósofo. O nosso corpo muda constantemente através das células, o pensamento ganha altura por meio da contemplação, da meditação e da ação.

No que me concerne, diante de minhas notórias limitações, espero que as mudanças me levem a ter mais sabedoria, mais esperança e mais bondade (que a maldade está sempre de prontidão e agindo em toda parte).
 
O rio não é o mesmo. O tempo escorre, eterna mutação, areia descendo na ampulheta.

Alteridade sempiterna das águas, o vôo premonitório das aves.
 
Nada é o mesmo. Não cessamos de mudar. (Só na morte não há transformação.) 
 
Às vezes, diante do espelho, pergunto quem é aquele que me observa do outro lado. Será mais feliz do que todos os que vieram antes dele? Estará mais só? Terá as mesmas dúvidas? Ainda quer mudar a vida, fazer coisas novas?

Ninguém se vê duas vezes do mesmo modo no espelho, caro Heráclito. É sempre outro que está lá.
 
Essa manhã, quando mirei o espelho, o estranho nem sequer me olhou nos olhos. Tomou café, escovou os dentes, fez a barba automaticamente, passou a mão nos cabelos, arrumou a gravata e foi por seus caminhos. Passou o dia distante de mim. Longe, longe. Um perfeito estranho mora no meu espelho.
 
Num momento em que ele se distraiu, olhei através da janela do gabinete e vi um pássaro atravessando o céu sobre as águas do Guaíba.

E vi também belas nuvens brancas cruzando o rio. À medida que passavam, sua forma, sua cor e seu interior foram mudando, até que veio a chuva. O outro sentiu desalento. Eu fiquei feliz, porque a chuva me dá felicidade.
 
É impossível deter esse rio, essas nuvens, esse pássaro, esse outro que me escapa no fundo do espelho e teima em me levar por caminhos onde não quero ir.

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Informações sobre Heráclito em Dicionário dos Filósofos. Denis Huisman. Livraria Martins Fontes Editora Ltda. São Paulo, 2004.
Clique sobre a imagem e veja mais detalhes. Texto revisto, publicado antes em 7, fev, 2013

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