Artistas e intelectuais: é justamente a minha família. Somos uma raça que se destaca em qualquer parte do mundo pela pobreza sem drama, pelo desleixo e pelas pupilas ardentes de curiosidade. Em solidão somos sombrios, sempre ruminando um ódio qualquer ou uma insatisfação que é quase um alimento, mas reunidos somos alegres, informais, carentes de afeto e generosos. (trecho da crônica O lar dos artistas)²
José Carlos Oliveira
TENHO COMPRADO livros em sebos (alfarrabistas como se diz em Portugal). Livros que, em geral, estão fora de catálogo ou são de difícil acesso. O que me chama atenção é o bom estado dos volumes que adquiri. Em nenhum deles encontrei uma assinatura, um risco, uma sublinha ou garafunha. As páginas estão limpas como se tivessem saído ontem da gráfica.
Tão diferente dos meus livros, nos quais faço notas a caneta nas páginas, sublinho, coloco a data e o local onde os comprei, se estava chovendo, o meu sentimento naquele quando. Os meus são livros cheios de rastros.
Quero falar de um em especial, dos vários bons livros que encontrei nos sebos. Trata-se de Flanando em Paris, do escritor José Carlos Oliveira (1934-1986). Natural de Vitória, Estado do Espírito Santo, publicou suas crônicas durante muitos anos na imprensa e foi um dos grandes do gênero no Brasil. Pois este livro tem sido um dos meus melhores companheiros ultimamente.
Impressiona como o autor está vivo nestas linhas. A intimidade que estabelece com o leitor, nunca forçada, é admirável. É um diálogo espiritual entre pessoas que estão à vontade numa mesa de café, olhando a vida em volta, com tempo para sentir e conversar.
Vejo, engulo, assimilo, transformo: quando a digestão se completa, estou mais rico. Mas a digestão é lenta, são necessários anos de ruminação. (trecho da crônica O artista sem fome - 1)³
O texto encantador de Carlinhos Oliveira é cálido, cúmplice, convivente. Acompanha o leitor em sua árdua jornada pelo dia, na dura faina de viver. Instiga-o a olhar o mundo e refletir, sem perder a poesia do cotidiano.
Flanando não é um livro de impressões de um turista qualquer pelas ruas de Paris, cidade que amava e onde esteve algumas vezes. São cartões-postais da alma de um artista da palavra de profunda e abrangente sensibilidade.
Pequeno na estatura, vespertino e notívago, escasso em recursos financeiros, mas com enorme poder de observação e registro do humano, escreveu estas páginas memoráveis.
São crônicas solidárias com as pessoas, seus conflitos, alegrias e sofrimentos. O escritor não se conforma com a desumanização e não se dá por vencido, apesar da dureza da existência.
Os textos espelham o olhar de um poeta, filósofo, jornalista, arqueólogo do espírito, antropólogo das esquinas e cafés parisienses. Um observador profundamente brasileiro e ao mesmo tempo universal.
Só posso dizer que é uma leitura venturosa. Flanando em Paris é um coração pulsante e belo no corpo da língua portuguesa.
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¹Blog do Amarildo:
https://amarildocharge.wordpress.com/2011/07/30/jose-carlos-oliveira-caricatura/
²Flanando em Paris. José Carlos Oliveira. Seleção, organização e notas por Jason Tércio. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005.
³idem.
Adelar, lembro-me de ter lido uma entrevista sobre ele, numa das páginas
ResponderExcluiramarelas da revista Veja, aquela dos bons tempos, os anos setenta e
oitenta.Nela se delineava o cronista, o boêmio, o observador da vida. Nunca
li nada completo sobre ele, mas os excertos que trazes mostram um cronista
com o domínio de sua arte. Vou ver se encontro coisas dele, perdidas pelo
ciberespaço. Valeu, o toque.
Abraço.
Ricardo Mainieri
Vale mesmo a pena, Ricardo. É um esteta e um ser humano em quem não faltam humanidade e capacidade de comover-se. Um escritor que nos amplia a visão das coisas e torna a literatura um território respirável para além das vaidades. Um grande abraço.
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