Jorge Finatto
No ato trágico de morrer da xícara-mãe, os fragmentos renasceram individualmente, dando inicio a novas "vidas".
EXISTE BELEZA nos cacos de uma xícara quebrada.
Juntei os restos de louça espalhados no chão do escritório, acondicionei-os em folhas de jornal velho para descartar no lixo seco. Depois subi a escada Santos Dumont, retornando ao trabalho.
Juntei os restos de louça espalhados no chão do escritório, acondicionei-os em folhas de jornal velho para descartar no lixo seco. Depois subi a escada Santos Dumont, retornando ao trabalho.
Enquanto labutava nesse ofício inútil que é escrever (e ninguém ler), percebi num canto do escritório uma reminiscência da xícara em forma de lasca colorida.
As cores e o formato daquele caco me chamaram atenção. Descobri que havia encanto naquilo. Fui em seguida até o lixo e resgatei os outros pedaços.
As cores e o formato daquele caco me chamaram atenção. Descobri que havia encanto naquilo. Fui em seguida até o lixo e resgatei os outros pedaços.
O objeto xícara havia se partido acidentalmente ao cair da escrivaninha (dentro havia folhas secas de erva cidreira). Deu origem a vários outros miniobjetos com formas, cores e volumes próprios.
No ato trágico de morrer da xícara-mãe, os fragmentos renasceram individualmente, dando inicio a novas "vidas". No ato de renascer, receberam a marca intransferível da solidão que caracteriza as coisas e os seres viventes.
Sei, por experiência de quem é astrônomo do farelo, observador de miudezas, que não existem outras lascas iguais a essas.
São entes novos no mundo. Estão aí com sua particular verdade, têm uma face própria, uma maneira de estar, uma sombra, ocupam certo espaço, a claridade os ilumina todas as manhãs, existem.
No ato trágico de morrer da xícara-mãe, os fragmentos renasceram individualmente, dando inicio a novas "vidas". No ato de renascer, receberam a marca intransferível da solidão que caracteriza as coisas e os seres viventes.
Sei, por experiência de quem é astrônomo do farelo, observador de miudezas, que não existem outras lascas iguais a essas.
A asa da xícara-mãe ficou incólume, contudo não é mais uma asa. Aderente à superfície convexa, lembra antes uma bela orelha renascentista.
Orelha que escuta talvez uma voz ausente, que se perdeu no tempo, ou uma canção impossível.
Libertou-se, a asa, da antiga e rígida obrigação. Ninguém mais poderá tratá-la ou esperar dela que se comporte como se singela asa fosse. É uma nova entidade, um corpo mutante com uma estética própria. Perdeu a natureza acessória com que veio à existência.
Orelha que escuta talvez uma voz ausente, que se perdeu no tempo, ou uma canção impossível.
Libertou-se, a asa, da antiga e rígida obrigação. Ninguém mais poderá tratá-la ou esperar dela que se comporte como se singela asa fosse. É uma nova entidade, um corpo mutante com uma estética própria. Perdeu a natureza acessória com que veio à existência.
De certo modo, os fragmentos estão mais vivos do que quando formavam um todo orgânico e fechado. Aproveitaram a chance, gozam agora de uma liberdade que antes não conheciam.
O que aconteceu com os cacos foi um reviver após a morte da mãe que os aprisionava. Estão soltos no mundo, rebentos recém paridos, cada um a seu jeito. Como todos os seres, correm riscos, o futuro é incerto e padecem de solidão. O preço de estar vivo.
Olho os restos sobre a escrivaninha. São parecidos com tudo que vive e sofre e existe apesar de tudo. Aprenderam na pele que cair um tombo, bater com a cara no chão, ficar reduzido a estilhaços, pode ser, às vezes, o caminho para um novo, jamais imaginado, venturoso recomeço.
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Texto revisto, publicado em 30 de abril, 2013.
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