terça-feira, 28 de março de 2017

O machado e o sândalo

Jorge Finatto

photo: jfinatto


COISAS QUE CARREGAM UM POUCO de mim: o apito do trem chegando na estação, o apito do navio deixando o cais de Porto Alegre, o som da caixinha de música com bailarina girando. O sorriso da antiga namorada dizendo: que bom que vieste.
 
O galo canta de manhã cedo, eu chegando na casa do avô depois de muito tempo. O abraço. O bule de café, o leite quente, o pão feito em casa, o queijo, o salame, a chimia, a nata. A mesa posta na varanda. Na parede o quadro com a inscrição: o machado fere o sândalo que o perfuma. Vida ingrata. Vida boa.
 
A carreta do velho de capote preto e chapéu cinza passando na Rua São João. A garoa de abril turvando a janela da mansarda. Tudo vivo, pulsando, distante.

Um dia todas as memórias serão presente. Não haverá oblívio nem saudades. Um dia o machado compreenderá que ferir quem só lhe faz bem é maldade pura, e maldade destrói também quem a faz.  Um dia o sândalo poderá viver e perfumar sem medo de ser cortado. E as pessoas se olharão nos olhos.
 

2 comentários:

  1. Quanta poesia perpassa este texto. Memórias, como retratos vivos pincelados de emoção. Beleza de texto.

    Abraço do Ricardo Mainieri

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    1. Memórias nos retirados da dor. Mas na tristeza também existe alegria. Quem já andou, como eu andei, na carreta do homem do capote preto, atravessando aquela ruazinha perdida num canto do universo, sabe a felicidade que é ver o mundo lá de cima... Um abraço.

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