domingo, 1 de agosto de 2021

Rua de mulheres

 Jorge Finatto

Obra: Totenklage, de Hermann Scherer
Kunsthaus, Zurich, foto: Jfinatto

     Beco das minhas tristezas.
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas...
 
(fragmento de Última Canção do Beco, Manuel Bandeira) 

A Rua São João, onde vivi até os seis anos, era um resumo do mundo. Tinha toda gente ali. Gente muito pobre, gente remediada, gente com algum dinheiro metida a besta. Eu morava com os avós a meio caminho entre o início e o fim da rua. Meus amigos vinham dos dois lados.

Era uma rua de terra batida, pedras soltas. Por lá passavam carretas puxadas por bois levando lenha, tarros de leite, cestos com frutas, etc., além de conduzir pessoas para compras no centro da cidade, para a estação de trem, para a missa, hospital, visitas a parentes e cemitério. Às vezes corríamos atrás e pagávamos carona enquanto o carroceiro não percebia.
Tinha meninos e meninas de origem africana, italiana, árabe, portuguesa, alemã, sei lá mais o quê. De tempos em tempos apareciam uns ciganos que acampavam com suas tendas, seus tachos e panos coloridos, ficavam um tempo e depois iam embora.
O pai de um amigo era mágico, outro fazia vinho no porão, um outro emprestava dinheiro, outro via o futuro nas folhas da videira, tinha também um carteiro, uma benzedeira e uma parteira, Dona Noca (que me trouxe à luz).
Havia uma família que assaltava bancos. Eu era muito amigo do menino desta família. A polícia ia lá de vez em quando e levava o pai e os irmãos mais velhos dele. Depois eles voltavam. Até que um dia a família anoiteceu e não amanheceu, foram embora de madrugada pro Paraná. Nunca mais vi o Paulinho.
A vida não tinha novidades. Uma noite um vizinho (Luís, o comunista) estendeu um grande lençol branco na frente de sua casa e começou a passar um filme. Aquilo foi um assombro, mexeu com todo mundo. Dali por diante passou a exibir filmes duas vezes por mês. Levávamos as cadeiras de casa, pipoca e outras coisas. O Natal era triste como as noites de domingo para nós, pobres. Mas os dias de cinema eram a maior alegria graças ao Luís. Diziam que filmes, projetor e etc. ele tinha trazido da Rússia.
Diziam os homens mais velhos que a nossa rua tinha sido rua de mulheres há muitos anos. Algumas venerandas senhoras ainda viviam por lá mas já então aposentadas do ofício e com família.
Contavam eles que as mulheres da vida recebiam os homens das mulheres que não eram da vida para oferecer-lhes coisas que não tinham com as esposas. Era um complemento necessário para a harmonia do casamento, segundo falavam enquanto jogavam truco. E, além do mais, evitava que os rapazes buscassem sexo com meninas casadoiras retirando-lhes o selo da virtude.
As putas eram fiadoras dos "bons costumes e da moral". Viviam, porém, no subsolo, no qual a "gente de bem e honesta", hipocritamente, insistia em enterrá-las. Eu não entendia nada daquilo.
Mas depois tudo se esquecia, porque era talvez o melhor a fazer. Afinal, São João era o Apóstolo que a todos iluminava na treva, na injustiça, na dor. O homem que escreveu o Apocalipse não havia de nos deixar à deriva no abismo da condição humana.

A Rua São João foi nossa ilha de Patmos, lugar humilde e esquecido. Fragmento de uma civilização da qual era apenas um minúsculo reflexo. O apóstolo, porém, vivia lá conosco e, comovido, deve ter escrito muitas histórias daquele pequeno mundo.

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