segunda-feira, 20 de junho de 2022

McCartney, 80 anos

 Jorge Finatto

photo: Paul McCartney. 2021. Autor: Raphael Pour-Hashemi. Fonte: Wikimedia


Não sou fã incondicional dos Beatles. A minha relação com o grupo sempre foi discreta (motivo de preocupação para eles, claro). Não é uma questão de querer ser diferente, mas de gosto. Aprecio diversas músicas, mas não tenho nenhum disco. Um perfeito ser das cavernas.

Mas nada como um dia depois do outro. Acompanhei a passagem de Paul McCartney por Porto Alegre em 2010 (até porque não se falava noutra coisa na imprensa). Ele tinha 68 anos. Posso dizer que fiquei com boas razões para admirá-lo. A começar pelo esforço que fez em comunicar-se em português (muito bem, por sinal) com o público presente ao seu show. Vejo nisso uma manifestação de consideração com as pessoas, tão fãs quanto qualquer súdito da rainha.

Admirável também a sinceridade nas entrevistas, fazendo questão de mostrar-se como a pessoa que é, sem mitologia. Falou sobre seu vegetarianismo, seus filhos, sua carreira. Tratou todo mundo com gentileza, mas sem falsas intimidades. Cantou como se a voz estivesse ainda nos anos 1960. Foi simpático a ponto de, em pleno estádio de futebol lotado, repetir com a telúrica assistência "ah, eu sou gaúcho!".

Uma lição nesses tempos em que o planeta aderna com o peso de tantos egos inflados. Portanto, passei a gostar do cara e curtir seu trabalho. Como é bom poder dizer isso.

No sábado passado, 18 de junho, Paul completou 80 anos. Mando-lhe daqui um abraço (sou aquele que não foi ao seu show).

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Bom dia, Mano Bisol

 Jorge Finatto


Neste mês em que faz um ano da morte de José Paulo Bisol (26 de junho, 2021), reproduzo este texto que escrevi e publiquei aqui no blog em 7 de fevereiro de 2012.



pinturas: Maria Machiavelli



Habitava sozinho a quitinete diante do rio Guaíba. Um microcosmo formado por uma sala, que também era quarto, uma cozinha, um banheiro e uma janela.

Uns livros empilhados contra a parede, um radinho de pilha para ouvir as músicas da rádio da universidade, as últimas notícias (o mundo estava por acabar, só não se sabia o dia).

Havia também quatro baratas (as sibilas) e algumas traças de saudosa memória. 

Naquele mínimo universo, não havia liberalidades de espaço, de dinheiro (que se contava aos centavos para o ônibus e o prato feito do almoço) e muito menos de ternura.

Tudo minimalista.

Ele, as sibilas, as traças e os livros povoavam aquele território perdido, cercado de austeridade e solidão por todos os lados.

Sobre a pia da cozinha, o fogãozinho com duas pequenitas bocas. Essas bocas, como a dele, estavam sempre famintas.

O calado morador não sabia e nem tinha disposição para cozinhar. Comer sozinho, todos os dias, deixa o cara meio bicho. O que saía (ao amanhecer e antes de dormir) era uma singela e morna taça de café com leite, pão e manteiga.

Solidão, farelo de pão. A festa das baratas.

Lá fora, na rua, a ditadura militar.

Às sete horas da manhã (que é quando os justos abrem os olhos para o sol que roça a veneziana), ele ligava o radinho para ouvir na, Rádio Gaúcha, Bom dia, Mano, o ensaio falado do filósofo, poeta, desembargador aposentado e político José Paulo Bisol.


A cortina musical era a linda Voo sobre o horizonte, tocada pelo conjunto Azymuth (o cd com essa e outras músicas foi relançado pela Livraria Cultura, na sua Coleção Cultura).

Aquele era o momento de reunir forças antes de ir para a batalha. A palavra do Bisol tinha afeto, esperança, companheirismo. Carregava uma energia capaz de empurrar o vivente para o núcleo duro da realidade.

Havia naquelas frases um entusiasmo, uma ideia de que tudo na vida é possível. E, naquela altura, era mesmo.

(Palavras acendem um coração apagado.)

Com o bornal ao ombro e uma esperança difusa no peito, o sobrevivente saía então para enfrentar o mundo onde ganhava o pão como revisor de livros.

Gracias, Mano Bisol!