sexta-feira, 14 de abril de 2023

La que nunca tuvo novio

                                               Jorge Finatto

                  

                   a Nena com amor



A nostálgica e suave melodia deste tango de 1930 (de Augustín Bardi e Enrique Cadícamo) me levou a encontrar a mulher que nunca teve namorado, que triste!

E a vi horas sem fim na janela do bairro pobre, olhando a rua vazia, onde algum moço passava de vez em quando, e ela então sonhava. Mas o moço apenas passava diante de sua janela, todos os moços passavam e se iam para outras ruas, outras moças.

Ela morava com a mãe, cuidava da casa e dos sobrinhos. Na calle com casas coloridas e flores humildes nas janelas, num bairro distante.

Uma ruazinha perdida no continente, um lugar escondido de Deus, um ermo esquecido ao sul do planeta. Igual a tantos no mundo. Lá ela morava.

Aos sábados, la que nunca tuvo novio se enfeitava com um vestido florido que ela mesma fizera e se ia pelas ruas do barrio com a sombrinha amarela doendo sob o sol. 

Olhava as poucas vitrines, conversava na praça com as vizinhas, tomava refresco do vendedor ambulante. Comia algodão doce sentada no banco. Esperava...

Depois voltava sozinha pra casa por ruas estreitas. Assim passaram-se os anos. As amigas de infância se casaram, depois as filhas delas. A vida passou. Ninguém nunca entrou na sua vida. E as vizinhas diziam: la que nunca tuvo novio. Pobrecita!

Essas coisas eu vi e senti enquanto ouvia o tango no bandoneón de Rodolfo Mederos. Caminhei pela calle triste da pobre moça que nunca teve namorado. E chorei por ela.

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photo: Colonia del Sacramento, Uruguay, j.finatto. 

Texto revisto, publicado antes em 25 maio 2015.


sexta-feira, 7 de abril de 2023

Juiz e réu, encontro extra-autos

 Jorge Finatto


Era quase meia-noite quando saí do consultório do dentista. Tinha viajado cerca de 500 quilômetros até Porto Alegre, dirigindo o inefável Monza. Cheguei e fui direto para a consulta.

Na época, 1996, jurisdicionava a vara criminal da comarca de Santo Ângelo, na Região das Missões do Rio Grande do Sul, perto da Argentina. Os compromissos e a grande distância da capital faziam raras essas viagens.

Tinha deixado o carro no estacionamento de um posto de gasolina, do outro lado da rua. Era preciso encher o tanque. Havia apenas um funcionário àquela hora tardia e ele veio me atender. 

Enquanto o veículo abastecia, ele se aproximou e disse que me conhecia. Ah, sim?, de onde - perguntei-lhe.

- O senhor é o juiz que me julgou e me condenou no processo criminal em que fui réu.

Era tarde, uma noite fria de agosto, quase ninguém na rua. Eu não sabia o rumo que aquela conversa ia tomar. Não recordava daquele rosto, por mais que me esforçasse. O homem falava pausadamente.

Não sabia o que dizer, então falei:

- Mas então, como vai a vida? Vejo que estás trabalhando, isso é muito bom.

Impassível, ele limpava o vidro dianteiro. Continuou:

-  Eu andava perdido, tinha problema com drogas, vieram os furtos. O senhor não se lembra de mim. Sabe por que eu não esqueci? Porque me tratou com respeito nas audiências, durante todo o processo. Me tratou com educação. Quando alguém na sala começou a me agredir com palavras, mandou que cessassem as agressões e que todos ficassem calmos. Nunca vou esquecer.

Depois, paguei a gasolina, agradeci o serviço, desejei-lhe sucesso na vida e fui embora.

Este fato me impressionou pelo tipo de percepção que revela. O que mais marcou aquele indivíduo não foi tanto a condenação (talvez esperasse o resultado), mas a maneira como foi tratado no ambiente judicial.

A instrução de processos criminais costuma ser penosa para os acusados e especialmente dolorosa para as vítimas.

O processo é instrumento de realização de justiça e, portanto, de humanização da sociedade. Nele não pode haver espaço para vingança, humilhação, maus-tratos. O que se busca é a aplicação da lei e dos princípios que movem o Direito, visando restaurar a ordem jurídica.

Nesse sentido, o respeito entre todos os envolvidos na relação processual é fundamental.

Para muitos dos que chegam ao Judiciário na condição de réus, em ações penais, a sala de audiência é a escola que faltou lá atrás, infelizmente. O dever mínimo do Estado, em tal situação, é garantir um tratamento digno às pessoas, respeitando cada uma nas suas circunstâncias.

O modo como nos tratamos uns aos outros define o tipo de sociedade em que queremos viver e o país que estamos construindo.

O fato de sentir-se respeitado durante o andamento do processo talvez tenha contribuído para aquele homem refletir e mudar seu comportamento. É o que espero, do fundo do coração.

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Publicado em 11 de maio, 2012.