segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Monteiro Lobato e Tia Nastácia: a questão racial na literatura

Jorge Adelar Finatto


Fazer um julgamento de Monteiro Lobato como escritor racista, por conta de certas linhas infelizes que escreveu, é injusto com o homem que denunciou resíduos do sistema escravocrata no Brasil do início do século XX, em páginas memoráveis como no conto Negrinha. Se em alguns textos cedeu à tentação racista da época, em outros mostrou-se revoltado contra o racismo e suas mazelas.Talvez a melhor visão seja reconhecer as contradições do autor, procurando examinar o conjunto de sua obra.  O legado literário do escritor, nele incluída a beleza que é Tia Nastácia, merece essa consideração.


As pessoas valem pelo que trazem dentro de si, nos seus valores, sentimentos, no respeito aos outros. Reduzir alguém a preconceitos sociais, raciais e culturais é inaceitável. Representa a coisificação do indivíduo. O ser humano é muito mais do que isso.  

A consciência da sociedade brasileira evoluiu nas últimas décadas. Esse avanço se traduz no ordenamento jurídico, que tem na Constituição Federal de 1988 a mais alta expressão dessas conquistas. O estado democrático, com suas garantias legais, é a melhor arma contra a intolerância e as violações de direito.

Instalou-se, recentemente, um debate público a respeito do Parecer 015/2010, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. O documento originou-se de denúncia feita por um cidadão de Brasília em relação ao livro Caçadas de Pedrinho (1933), obra de Monteiro Lobato (1882-1948). O requerente, funcionário público que faz mestrado em Educação, apontou situações de preconceito e estereotipia racial no livro, envolvendo o negro e o universo africano, a partir de referências à personagem negra Tia Nastácia e a animais como urubu e macaco. 

O parecer do CNE está na internet. Após análise do caso,  o órgão concluiu, entre outros aspectos, pela necessidade de formar professores capazes de lidar pedagógica e criticamente com obras consideradas clássicas, presentes nas bibliotecas das escolas, que apresentam estereótipos raciais. Recomendou que não sejam selecionados livros para o Programa Nacional Biblioteca da Escola que contenham preconceito ou estereótipo racial. Determinou que, se alguma obra selecionada para o PNBE contiver preconceito, será exigido da editora que insira, na apresentação, nota explicativa e informações sobre estudos relativos à presença de estereótipos raciais na literatura. Essa providência deverá ser adotada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho. Além disso, o parecer reforçou a importância de práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial, ressaltando o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. Devido às fortes manifestações que provocou, o documento será reexaminado pelo CNE em dezembro.

Algumas indagações surgem como matéria de reflexão.

Monteiro Lobato, pelo que escreveu nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, é um escritor racista? A resposta é clara: não. Pelo contrário, é um dos autores mais identificados com a cultura brasileira e sua diversidade. Caçadas de Pedrinho, com a turma do Sítio, é uma bela obra, Tia Nastácia é uma criatura adorável, mulher negra, espiritualmente rica, bondosa, cheia de histórias e uma espécie de guardiã da sabedoria popular.

A outra pergunta: em trechos do livro podem ser identificadas expressões que denotam estereótipo ou preconceito racial? A resposta também é evidente: sim.

Vejamos algumas passagens do livro Caçadas de Pedrinho relacionadas à Tia Nastácia:

"Emília repetiu-a, terminando assim:
- É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém - nem Tia Nastácia, que tem carne preta."

"resmungou a preta, pendurando o beiço."

"Sim, era o único jeito - e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros."

"E você, pretura?" 

"Desmaio de negra velha é dos mais rijos."

Ao longo da obra, há diversas referências a Tia Nastácia como negra e preta. São expressões com carga de preconceito sobre a cor da pele. O mesmo tratamento não é dispensado aos outros personagens. 

Apesar de conter essa linguagem que hoje não mais se aceita, o conteúdo de Caçadas de Pedrinho não é racista, porque não investe contra a etnia de origem africana, não desmerece  a pessoa negra além dessas expressões, nem lhe impõe tratamento infamante, discriminatório ou desumano.

As expressões são, antes, fruto da época e do meio. Lobato não ficou imune. No Brasil com fortes traços escravistas do início do século XX, o tratamento preconceituoso era uma realidade, infelizmente. Caçadas de Pedrinho tem origem no livro A caçada da onça, de 1924. O autor decidiu ampliar a história que foi publicada em 1933 com o novo título.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Um modo silencioso

Jorge Adelar Finatto



O poema é um modo
silencioso
de ser
e dizer
que vim ao mundo
me despedir



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Poema do livro O Habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998. Esses versos foram dedicados ao poeta e irmão Heitor Saldanha.

Foto: Passo dos Ausentes. J. Finatto.

Retratos

Jorge Adelar Finatto



Quem passar por esses dias em Gramado está convidado a fazer uma visita à minha exposição Retratos, que acontece na Cafeteria Bello Gusto, Av. Borges de Medeiros, 2193, centro da cidade. Imagens de Passo dos Ausentes estão lá, pra quem quiser ver, até final de dezembro. A entrada é no amor.


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Foto da exposição: J. Finatto

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Ruminante claro

Jorge Adelar Finatto


Deus me deu esse dia. Me dei a tarde de presente e saí por aí. Nunca vi tão rara composição de cores. A cidade nessa época é um quadro impressionista. Olho as coisas aqui debaixo, tristeza de não ser pássaro. É o que se vê:  luminosa aquarela: verdes, azuis, vermelhos dialogam com rosas, amarelos, brancos, ocres. No itinerário de colinas entre os bairros Moinhos de Vento e Bela Vista, há muita ladeira pra vencer. Jacarandás nas calçadas, buganvílias nos muros. Hibiscos, sim, hibiscos. Do bosque de um desmoronado casarão, escuto velhas conversas de fim de tarde, sob  a invisível pérgula. Os ausentes bebem suco de fruta há pouco colhida. Não vou falar agora do excesso de carros na rua,  do ruído, da fumaça, da fúria dos motoristas. Ninguém vai atropelar esse momento. Prossigo. Lilases flores caídas brilham no chão. Sou parte da aquarela da tarde que declina e nunca mais voltará. Habito o interior dessa misteriosa obra de arte. Do meu jeito: lento, ruminante, claro.
 
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Foto: J.Finatto

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Meus amigos

Jorge Adelar Finatto


Não esqueçam
de me visitar
nas noites
de inverno
quando o medo
cobra caro
e as feridas
não deixam mentir

insolúvel jogo
de espelhos
entre mim
e o que fui

ando bêbado
pela casa
meu coração
é operário
desempregado
com filho pra criar
mulher feia
sem crédito no armazém

me enrosco
em invenções
inúteis
pra repartir contigo
um espaço de ternura

sinto umas
coisas estranhas
caminharem atrás de mim
um cano de fuzil
um casal de velhos famintos
um câncer
e me desagrada não ser
como certos fantasmas

convoco o
silêncio e
suas raízes

inauguro a
manhã

não, eu não sou
uma estrela
um rio
um barco
nada se compara
ao que sinto

preciso todos
ao redor da mesa
principalmente
os desaparecidos
como certos crepúsculos
que a gente vê
fogem e nunca mais

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Foto: J. Finatto

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Neblinense

Farandolino Brouillon

 
Quando hoje a neblina cercou a casa, tudo ficou  branco e deserto como um labirinto no gelo. Os seres e as coisas desapareceram. Silenciosamente fui até a janela. As silhuetas, de modo intermitente, surgiam e submergiam na névoa. Lembrei de quanta gente fugiu do retrato. Nem faz tanto tempo. Não sei mais direito que lugar é esse. Até há pouco estavam aqui, falando, gesticulando, rindo, sofrendo, contando histórias, reclamando, dando a mão. Certas ruas e esquinas moram dentro de mim, certas portas, soltas no espaço, me acenam, certas praças estão abandonadas.  Eu viajo no trem noturno que atravessa  os Campos de Cima do Esquecimento nesse absurdo itinerário. As cartas não escritas estão na mão do carteiro que se extraviou na bruma. Hoje, quando a neblina chegou de repente, envolvendo a casa, perdi meu rosto. Fiquei cego. Havia uma paisagem invisível lá fora e outra em mim. Fui andar no jardim à procura de quem sou. Muitos partiram. Estão todos cobertos, profundamente, em negras nuvens de seda.  Sou habitante de um continente de fantasmas.

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Foto: J. Finatto

domingo, 28 de novembro de 2010

Basquiat, anjo caído, expõe em Paris

Jorge Adelar Finatto


Saído do mundo das ruas, onde pintava grafites,
o artista conquistou as galerias e museus com sua arte.

Alguma coisa no traço de Jean-Michel Basquiat prende o olhar. Os grafites, em geral, cansam e entediam. Parece que só pioram a sensação de solidão e isolamento das grandes cidades. Raramente dizem algo poeticamente revelador. Mas sou teimoso. Sou capaz de parar na rua e ficar diante da parede ou muro, tentando entender e sentir o que é aquilo. Costumo ser vencido pelo vazio.

O grafite atingiu status de arte nos últimos anos graças ao talento de alguns desses artistas de rua.  Notadamente o grafite figurativo, diferente da pichação e daquilo que se limita a simples inscrição de letras ou números. Espaços públicos passaram a ser destinados a esses criadores. Quer dizer, cada vez menos a atividade criativa do grafiteiro é vista como um caso de polícia. Os próprios artistas estão conversando com a turma da riscalhada, pedindo que não estraguem esses ambientes duramente conquistados. 


Quando vi pela primeira vez as pinturas de Basquiat, tentei, depois dos cinco minutos iniciais, desviar o olhar e seguir meu caminho, mas não consegui. Comecei a percorrer a trilha da composição em cada quadro. Ali estava a visão de mundo elaborada esteticamente, com sua origem afro-americana, impregnada com áspero espírito urbano e uma busca intensa de liberdade e denúncia. São grafites figurativos, agora  fora das ruas, nas galerias, com cores e sentidos fortes.

Jean-Michel nasceu no Brooklyn, Nova Yorque, em 22 de dezembro de 1960, e morreu aos 27 anos, em 12 de agosto de 1988, na mesma cidade. Filho de pai haitiano e de mãe filha de porto-riquenhos, tornou-se reconhecido, primeiro, como grafiteiro e, depois, como artista plástico. Ele foi um dos principais responsáveis pelo reconhecimento do grafite como manifestação artística.




Por volta dos 17 anos, começou a pintar em prédios abandonados de Manhattan. A assinatura com que então se identificava era “Samo” ou “Samo shit” (same old shit,  sempre a mesma merda, ou a mesma merda de sempre). Num período, depois de sair da casa dos pais, teve de vender camisetas e postais na rua pra sobreviver. O trabalho de Basquiat chamou a atenção e começou a ser comentado, ganhando rapidamente destaque nos meios de comunicação. Passou a pintar quadros e expor. Constitui-se num raro caso de artista que cedo alcança reconhecimento. Formou, também, uma banda com conhecidos e participou de, pelo menos, dois filmes. Em 1982, teve um namoro com uma cantora pouco conhecida na época, Madonna. Fez parcerias com Andy Warhol.

Uma vida intensa e profissionalmente exitosa, com enorme exposição midiática, não o livrou do convívio com drogas como heroína e cocaína.

Morreu de overdose, no auge da carreira, em seu estúdio.


A obra de Basquiat é reconhecida e valorizada internacionalmente. Não se trata apenas de um caso de marketing. Há muita criação e valor poético nesses traços inquietos, vibrantes, agressivos, questionadores. A expressão do artista atingiu uma identidade que a caracteriza como única.

Olhemos as pinturas de Basquiat. Acaso não haverá no pulso febril e explosivo algo que o aproxima de irmãos mais velhos como Tintoretto e Van Gogh? Essas cores e figuras nos remetem a momentos de emoção, beleza e reflexão.

Basquiat foi um anjo caído na Terra, que muito cedo deixou o mundo. Fallen Angel, título da pintura azul acima.

O Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris está realizando uma exposição com a obra de Basquiat, desde outubro passado, que se estenderá até final de janeiro de 2011. Filas de quase 500 metros formam-se para a visitação. O interesse das pessoas se explica por se tratar de uma grata descoberta no território atualmente rarefeito de valores das artes plásticas.

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Imagens: foto e pinturas de Basquiat. Fonte: site oficial do artista: basquiat.com

© The Estate of Jean-Michel Basquiat / AUTVIS, 2010 

English text:

http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/03/coming-from-streets-where-he-painted.html