domingo, 12 de dezembro de 2010

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia. Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase. Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é lugar de barbaridades. Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu.

O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O que eu fui.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar. Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão.

Bailei no ar como folha de plátano no outono, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama.

Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim.

As iluminações. Passamos a frequentar a Praça da Ausência, nas tardes amarelas daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Camafeu cravado na minha alma. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o num lugar secreto, bem no fundo de mim.

Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar. Não canto outros amores, que não tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim. Arlequim e seus guizos, seus versos de algibeira, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse. Bazófias.

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Blasona. Explorador de musas, ladrão de amores. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que eu nunca toquei.

Eu calado sonhador do fim do mundo. Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei.

Quem me visse, a face esculpida da dor. Veio o inverno. Invernos.

O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que foi quase feliz.

O sem camélia.
 
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Imagem: Pierrô (Gilles). Autor: Antoine Watteau (1684-1721). Museu do Louvre, Paris. Fonte: Wikipédia.
Maiores detalhes sobre o drama de Pedrolino em A fala do Arlequim, post de 30/10/10, e Alberta de Montecalvino, post de 8/11/10.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A casa do anjo

Jorge Adelar Finatto


Antes de começar a chover, arredaram uns móveis bem pesados lá no céu. Um barulho espesso e fundo me fez pensar que talvez fosse a mudança de um anjo. Um anjo bom e humano com suas asas de plumas perfumadas, levando seu chapéu, suas estantes de livros, bicicleta, cama, armários.

Um anjo, quando se muda, deve ter muita coisa pra levar com ele: cartapácios com registros, caderno de milagres, álbuns de fotografia das pessoas por quem tem cuidados, pinturas com paisagens dos campos do Senhor.

As roupas do anjo devem ser brancas como nuvem, inclusive as botas.

Gostava que o meu anjo da guarda viesse mais pra perto de mim.

Meu coração anda necessitado de amigo com sabedoria e consolação. Ele podia até ficar morando aqui comigo. Se quisesse, podia subir no telhado, sentar perto da chaminé, lugar calmo e iluminado, de onde se tem uma boa vista do mundo.

O meu anjo da guarda. Há de expulsar a solidão que toma assento na sala. Nunca mais nenhum mal vai me acontecer. Quando de noite o medo se acercar de mim, o anjo me dará sua mão forte. Então eu dormirei como um menino. E vou sonhar outra vez.

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Foto: Colonia del Sacramento. Uruguai. J. Finatto

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O astrônomo do farelo

Jorge Adelar Finatto


O astrônomo do farelo procura a estrela perdida.

Entre o sagrado e o profano da vida pequena, ele busca beleza nas coisas mais simples. Como o explorador de cavernas que, na escuridão e na umidade,  tateia a fresta de luz que o conduz à primeira claridade do mundo.

Um dia - sempre tem um dia - o astrônomo do farelo perdeu a  sua estrela. Era uma pequena estrela azul e brilhante. Era uma estrela risonha, íntima e calma que habitava sua alma.

Quando ele a tocava com a ponta dos dedos, muito suavemente, ouvia a doce e misteriosa música que vinha do seu interior. Um dia, de repente, ela desapareceu.

Por ela, ele se tornou um homem calado e triste.  Um oco cresceu no seu coração. Ele ficou assim, torto no mundo. Passa as noites olhando o céu. Um homem ferido a bordo de uma louca procura.

O homem que perdeu a sua estrela.
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Foto: J. Finatto
Publicado no blog em 1º/8/10

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A travessia

Jorge Adelar Finatto

No fim da tarde, saí com um livro debaixo do braço.  Em direção ao café da esquina (todos os cafés do planeta ficam numa esquina). Ali  tem sempre uma mesa perto da janela, um cheiro de café passado na hora, uma vista bucólica da praça. Mas pra chegar lá é preciso vencer três tristes avenidas. Por elas voam doidos e impiedosos motoristas. Quando cheguei na beira da mais difícil, na saída de uma insana rótula, parou uma caminhonete com duas mulheres. Fizeram sinal para atravessar. Fiquei atordoado. Será isso possível? O normal é ser maltratado, humilhado, quando não atropelado, friamente, nessa vida de pedestre. Não sabia o que fazer. E se, quando estiver no meio da via, o veículo avançar ferozmente na minha direção, tendo eu de correr em desespero até cair? E se, depois disso, as moças fizerem ainda o famoso sinal com o dedo médio ereto, como vou me sentir? Indefeso embora, resolvi cumprir o fado de patético caminhante. Para meu espanto,  elas aguardaram gentilmente a travessia. Naquele momento de  pura epifania, pensei que nem tudo está perdido, o ser humano tem um futuro pela frente, preciso acreditar mais nas pessoas, etc., etc. Pedestre é um ser não apenas acuado como  deveras sentimental.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Monteiro Lobato e Tia Nastácia: a questão racial na literatura

Jorge Adelar Finatto


Fazer um julgamento de Monteiro Lobato como escritor racista, por conta de certas linhas infelizes que escreveu, é injusto com o homem que denunciou resíduos do sistema escravocrata no Brasil do início do século XX, em páginas memoráveis como no conto Negrinha. Se em alguns textos cedeu à tentação racista da época, em outros mostrou-se revoltado contra o racismo e suas mazelas.Talvez a melhor visão seja reconhecer as contradições do autor, procurando examinar o conjunto de sua obra.  O legado literário do escritor, nele incluída a beleza que é Tia Nastácia, merece essa consideração.


As pessoas valem pelo que trazem dentro de si, nos seus valores, sentimentos, no respeito aos outros. Reduzir alguém a preconceitos sociais, raciais e culturais é inaceitável. Representa a coisificação do indivíduo. O ser humano é muito mais do que isso.  

A consciência da sociedade brasileira evoluiu nas últimas décadas. Esse avanço se traduz no ordenamento jurídico, que tem na Constituição Federal de 1988 a mais alta expressão dessas conquistas. O estado democrático, com suas garantias legais, é a melhor arma contra a intolerância e as violações de direito.

Instalou-se, recentemente, um debate público a respeito do Parecer 015/2010, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. O documento originou-se de denúncia feita por um cidadão de Brasília em relação ao livro Caçadas de Pedrinho (1933), obra de Monteiro Lobato (1882-1948). O requerente, funcionário público que faz mestrado em Educação, apontou situações de preconceito e estereotipia racial no livro, envolvendo o negro e o universo africano, a partir de referências à personagem negra Tia Nastácia e a animais como urubu e macaco. 

O parecer do CNE está na internet. Após análise do caso,  o órgão concluiu, entre outros aspectos, pela necessidade de formar professores capazes de lidar pedagógica e criticamente com obras consideradas clássicas, presentes nas bibliotecas das escolas, que apresentam estereótipos raciais. Recomendou que não sejam selecionados livros para o Programa Nacional Biblioteca da Escola que contenham preconceito ou estereótipo racial. Determinou que, se alguma obra selecionada para o PNBE contiver preconceito, será exigido da editora que insira, na apresentação, nota explicativa e informações sobre estudos relativos à presença de estereótipos raciais na literatura. Essa providência deverá ser adotada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho. Além disso, o parecer reforçou a importância de práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial, ressaltando o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. Devido às fortes manifestações que provocou, o documento será reexaminado pelo CNE em dezembro.

Algumas indagações surgem como matéria de reflexão.

Monteiro Lobato, pelo que escreveu nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, é um escritor racista? A resposta é clara: não. Pelo contrário, é um dos autores mais identificados com a cultura brasileira e sua diversidade. Caçadas de Pedrinho, com a turma do Sítio, é uma bela obra, Tia Nastácia é uma criatura adorável, mulher negra, espiritualmente rica, bondosa, cheia de histórias e uma espécie de guardiã da sabedoria popular.

A outra pergunta: em trechos do livro podem ser identificadas expressões que denotam estereótipo ou preconceito racial? A resposta também é evidente: sim.

Vejamos algumas passagens do livro Caçadas de Pedrinho relacionadas à Tia Nastácia:

"Emília repetiu-a, terminando assim:
- É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém - nem Tia Nastácia, que tem carne preta."

"resmungou a preta, pendurando o beiço."

"Sim, era o único jeito - e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros."

"E você, pretura?" 

"Desmaio de negra velha é dos mais rijos."

Ao longo da obra, há diversas referências a Tia Nastácia como negra e preta. São expressões com carga de preconceito sobre a cor da pele. O mesmo tratamento não é dispensado aos outros personagens. 

Apesar de conter essa linguagem que hoje não mais se aceita, o conteúdo de Caçadas de Pedrinho não é racista, porque não investe contra a etnia de origem africana, não desmerece  a pessoa negra além dessas expressões, nem lhe impõe tratamento infamante, discriminatório ou desumano.

As expressões são, antes, fruto da época e do meio. Lobato não ficou imune. No Brasil com fortes traços escravistas do início do século XX, o tratamento preconceituoso era uma realidade, infelizmente. Caçadas de Pedrinho tem origem no livro A caçada da onça, de 1924. O autor decidiu ampliar a história que foi publicada em 1933 com o novo título.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Um modo silencioso

Jorge Adelar Finatto



O poema é um modo
silencioso
de ser
e dizer
que vim ao mundo
me despedir



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Poema do livro O Habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998. Esses versos foram dedicados ao poeta e irmão Heitor Saldanha.

Foto: Passo dos Ausentes. J. Finatto.

Retratos

Jorge Adelar Finatto



Quem passar por esses dias em Gramado está convidado a fazer uma visita à minha exposição Retratos, que acontece na Cafeteria Bello Gusto, Av. Borges de Medeiros, 2193, centro da cidade. Imagens de Passo dos Ausentes estão lá, pra quem quiser ver, até final de dezembro. A entrada é no amor.


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Foto da exposição: J. Finatto