quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A tua mão e a minha

Farandolino Brouillon


Todos os medos, todas as mágoas, todas as dores, sem esquecer os abismos. O puro arrepio de fazer a humana travessia, de ermo em ermo. Todos os suspiros, todos os tormentos, todos os erros, sem esquecer a ingratidão. Amanhã será outro amanhecer, outro sentimento, outra tarde de garoa como essa sob o guarda-chuva da memória. Amanhã serei o que vai embora. O neblinense que deixa tudo pra trás e vai em busca do caminho perdido. Há uma ponte desconhecida esperando na bruma? Irei através dela sem medo. Amanhã as folhas do outono. O vento de abril cercando os caminhos. Amanhã serei o que levanta da escuridão. Coração camélia vermelha. A tua mão e a minha.
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Farandolino Brouillon é poeta em Passo dos Ausentes.
Fotos: J. Finatto. Parque Laje de Pedra.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A palavra

Jorge Adelar Finatto


A palavra me salva
dá a transparência
que preciso

não quero
o isolamento volumoso
do jardim secreto

o destino sem fio
do pássaro errante

busco a felicidade
possível
na face oblíqua
da chuva

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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Foto: J. Finatto

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Julio Cortázar e Porto Alegre

Jorge Adelar Finatto



A literatura passa um sentimento de permanência das coisas. Nós passamos, as palavras escritas ficam. A maior parte dos livros dura mais tempo do que as pessoas.

Os escritores que escolhemos para nos acompanhar na travessia são fundadores dessa eternidade de papel. Os livros fazem parte do que somos.

A lembrança mais remota que associo ao nome do escritor argentino (e que escritor!) Julio Cortázar (1914 - 1984) é dos primeiros tempos de estudante universitário em Porto Alegre. O ano 1976, tinha dezenove anos. Estava lendo Histórias de Cronópios e de Famas e As Armas Secretas. A fila do restaurante universitário era torturante pra quem tinha que ir pro trabalho cedo da tarde como eu. Estudante pobre, precisava trabalhar pra sobreviver, como muitos. Nas filas do ru, lia Cortázar. Então, aquele era também um bom momento do meu dia a dia. Depois li outros livros dele.

Agora, lendo Papéis Inesperados (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht), livro de 490 páginas, com textos inéditos do escritor, publicado originalmente em 2009, vinte e cinco anos após sua morte, reencontro Cortázar. No Brasil, o livro foi lançado em 2010 pela Civilização Brasileira.

Os textos - encontrados em uma velha cômoda, na casa onde morou o autor, em Paris, por sua viúva Aurora Bernárdez - são poemas, contos, outras histórias de cronópios e de famas, episódios de Um tal Lucas, um capítulo de O Livro de Manuel, discursos, prólogos, artigos de arte e literatura, crônicas de viagens, etc.

A felicidade de encontrar material novo do autor, tantos anos depois, é muito grande.

O dado inusitado e, para nós que amamos a literatura de Julio Cortázar, muito gratificante foi descobrir uma menção a Porto Alegre no texto Never stop the press, onde se lê a frase "uma vista escolhida do Tirol e/ou de Bariloche e/ou de Porto Alegre" (pág. 117).

Sei que Cortázar gostava do Brasil, onde esteve pelo menos em duas ocasiões, e que admirava, por exemplo, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, além de apreciar nossa música, especialmente Caetano Veloso, mas ignoro se alguma vez esteve em nossa cidade.

De qualquer forma, ver Porto Alegre nesse texto de Julio Cortázar, ainda que só de passagem, dá o que imaginar. Pensando bem, acho que ele tinha muito a ver com essa cidade povoada de barcos e crepúsculos, jardins escondidos no fundo de casas desaparecidas, silenciosos gatos que caminham sobre muros cobertos de hera, ruas esquecidas, fantasmas.
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Publicado em 11 de agosto, 2010.
Fotos: capa de Papéis Inesperados e Julio Cortázar (
http://www.juliocortazar.com.ar/)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Os sem-leitor

Jorge Adelar Finatto


Existe um ser cada vez mais raro na face do universo.

Astrônomos passam as noites em claro, mirando os telescópios para o desconhecido, na incansável busca.

No momento em que traço essas linhas, inúmeras expedições científicas partem pelo cosmo à procura dele.

É quase tão belo como a estrela da manhã. É mais luminoso que a aurora boreal. É mais precioso que o mais raro diamante.

Por causa dele, blogueiros do mundo inteiro invadem as noites oferecendo seus serviços. Impressionantes editores perdem o sono à sua menor lembrança.

O ser em questão - o misterioso - é o senhor da lista dos mais vendidos, o sonho dos famélicos e maltrapilhos fazedores de livros. Por ele, Cervantes e Thomas Mann foram às vias de fato, Dom Quixote e Hans Castorp romperam relações.

Macunaíma, Anjo Malaquias e Urutu Branco não trocam mais e-mails. É o início do fim dos tempos, ou quase isso.

Os cafés literários perderam o sentido sem a poderosa presença do desaparecido.

As livrarias estão repletas de musas e personagens desempregados. Seria cômico, não fosse o fim de uma era.

Onde andará aquele que é a razão do meu trabalho?, perguntam-se miríades de escritores e poetas, na fria solidão.

A Academia Sueca devia criar o Prêmio Nobel de Leitura, em homenagem a ele, o inefável.

As noites de autógrafos, hoje, só são bem-sucedidas quando é ele quem assina os livros, enquanto os autores esperam a vez na infinita fila.

Não vereis dele mais que o fugidio vulto esgueirando-se no labirinto dos blogs e soturnas bibliotecas.

No entardecer de ontem, cerca de 150 bardos - entre maus, razoáveis e bons - cometeram suicídio no cais de Porto Alegre. Sob o olhar aterrorizado das mães e gritos desesperados das namoradas, os suicidas foram ao fundo do rio com grossos volumes amarrados ao pescoço.

Mais de mil caravelas estão partindo nessa hora de Lisboa em busca de um rastro do indizível em alto mar.

O impensável está acontecendo.

Escritores enlouquecidos batem-se em sangrentos duelos nas praças e ruas da cidade.

As últimas notícias dão conta de que livros famintos estão atacando e devorando escritores. Invadem seus locais de trabalho e, com requintes de crueldade, cometem o bárbaro crime.

Aproveitam-se da solidão literária das vítimas, que começa no ato de criar e se estende até o texto sem leitor, e as destroçam.

Depois só restam folhas brancas, embebidas em sangue, espalhadas no chão.

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Publicado neste blog em 12 de fevereiro, 2010.
Foto: J. Finatto

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Cativo

Jorge Adelar Finatto


Você me habita em todo lugar
de sol a sol

eu vivo nessa ilha
cheia das tuas pegadas
e gemidos

caminho contra o vento
cabeça erguida
                         olhar atento
nesta manhã
                         setembro

com meus doze corações
incendiados
esperando a tua chegada

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Do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.
Ilustração: Maria Machiavelli

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A volta da ave perdida

Jorge Adelar Finatto


O jaó era dado como extinto no Rio Grande do Sul. Na semana passada, veio a boa notícia. Um exemplar dessa espécie foi encontrado numa cidade da região central do Estado. O nome do lugar não é revelado para evitar a ação de caçadores. Os autores da descoberta são estudantes de biologia da Universidade da Região da Campanha, conforme noticiou o jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Também conhecida como jaó do litoral e jaó da mata, o nome científico da ave é crypturellus noctivagus.

O jaó gosta de viver perto da água e no interior da mata, esse ambiente que é alvo de insana cobiça por parte de derrubadores de árvores, adeptos da caça e especuladores imobiliários, entre outros predadores. É uma vergonha para o ser humano quando uma espécie entra em risco de extinção. Esta, quando ocorre, é obra do bicho homem, que mata outros seres vivos de forma desnecessária e covarde.

Esperamos que o reencontro da solitária ave signifique uma oportunidade de permanência de sua espécie na natureza e, por extensão, uma chance mais de sobrevivência da gente humana no planeta. Nosso futuro está condicionado ao destino dos outros seres. Todos devemos ter o compromisso de preservar o que resta da mata e da fauna. A hora já está passando. A notícia da volta do jaó é motivo de alegria e, sobretudo, de redobrados cuidados.

Se o jaó está vivo, estamos todos um pouco mais vivos também.

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Foto do jaó. Fonte: Wikipédia. Autor: Marcos Massarioli. Ano: 2008.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Sem medo nem rancor

Frederico Vasconcelos


Final dos anos 60, em Recife, a tropa de choque, fortemente armada, impedia a passagem do enterro. No caixão, o corpo do padre Henrique, um assessor de dom Hélder Câmara que se dedicava a recuperar jovens viciados em drogas.

Na véspera, o padre fora encontrado no meio de um matagal, mãos e pés amarrados e com marcas de incrível violência em todo o corpo.

Ombro a ombro, os policiais militares fechavam a rua e não permitiam a passagem do féretro e das muitas faixas de protesto contra a ditadura.

Sem hesitar, o frágil dom Hélder toma a frente do cortejo, avança com passos firmes, seguido pelos sacerdotes que erguiam o caixão do companheiro assassinado.

O bloqueio é rompido. O comandante recolhe a tropa, que volta a surgir, alguns quarteirões adiante, agora todos perfilados, com os capacetes na mão, cabeças abaixadas, como num silencioso e incomum pedido de perdão.

A coragem pessoal de dom Hélder era um exemplo de resistência naqueles tempos de terror e trevas. Sem as pompas do cargo, o arcebispo morava sozinho numa casinha de pequenos cômodos, cujo muro havia sido metralhado, de madrugada, mais de uma vez.

"Vocês conseguem ver aqueles dois homens, ali em frente, atrás das plantas?", perguntou uma noite, sorrindo, ao se despedir depois de uma entrevista. "Eles estão escondidos, mas dizem que é para me proteger", ironizava.

"Às vezes, eu imagino colocar uma máscara, apenas para pregar um susto neles", comentou, brincando. Dom Hélder não tinha medos nem rancores.

O encontro fora coordenado pela corajosa jornalista, depois deputada, Cristina Tavares (que morreu em 1992). Cristina, como outros amigos, chamava-o apenas de "Dom". Da entrevista também participaram o jornalista Jeová Franklin e este repórter.

Publicada em "O Pasquim", capa de edição em março de 1970, ela teve o mérito de romper a longa censura imposta pelo regime militar a dom Hélder.

Como disse Janio de Freitas, realmente foi uma graça do destino tê-lo conhecido.

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Este artigo foi originalmente publicado na Folha de São Paulo, edição de 03/9/1999. Neste blog, veio à luz pela primeira vez em 13 de agosto de 2010. Agradeço ao Frederico e à FSP a autorização para reprodução. J. Finatto

Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) , um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.

Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.

Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).

Foto: Dom Hélder Câmara (1909-1999). Fonte: www.google.com.br, Imagens de Dom Hélder. Nota do blog: o crédito será dado ao autor da foto tão logo tenhamos a informação.