terça-feira, 3 de julho de 2012

Ruy Castro e os discos de vinil

Jorge Adelar Finatto

Foto feita durante encontro dos amigos Ruy Castro (dir.) e Ivan Lessa no Rio
photo:Ruy Castro (à esquerda) e Ivan Lessa. Autora: Heloísa Seixas. Divulgação

Em belo artigo publicado domingo último, no caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo, o escritor e jornalista Ruy Castro recorda seu amigo Ivan Lessa, também jornalista e escritor, falecido em Londres, aos 77 anos, em junho passado.

O texto intitula-se Sonho de Ivan Lessa era estacionar no passado. Merece ser lido tanto pelo sabor literário que Ruy consegue dar ao que escreve como pelas informações que traz. Interessante, entre outras, a parte em que ele fala sobre a coleção de discos de vinil de Lessa. Começa assim:

"Quando os cds surgiram e tomaram a indústria fonográfica, em fins dos anos 80, todos os patetas do mundo nos desfizemos de nossas coleções de LPs. Era como se, de repente, aquele formato de disco que por 40 anos nos servira tão bem - e no qual nos habituáramos a ouvir a perfeição - se tornasse portador de lepra."

Eis o acesso:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1112857-sonho-de-ivan-lessa-era-estacionar-no-passado.shtml

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A photo acima, que ilustra o artigo, está creditada a Heloísa Seixas, escritora, mulher de Ruy Castro.

Mais sobre discos de vinil:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/musica-de-todos-os-dias.html

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A música de todos os dias

Jorge Adelar Finatto

photo: Edu da Gaita, 1959

Escrevi sobre o toca-discos que comprei para escutar meus velhos discos de vinil.* Agora estou na fase de limpar, organizar e, claro, ouvi-los. São todos elepês (long-play, disco grande), como se dizia, em oposição aos compactos. A experiência é uma feliz redescoberta.

Reencontro gravações primorosas. O som do vinil é o som original da gravação, com as nuances todas, os detalhes, a limpidez que não há no cd. Parece que existe mais transparência, como se estivéssemos na sala diante dos músicos. O som do cd soa mais abafado.

Talvez isso não passe de impressão, não sou expert no assunto. Mas como disse aquele velho filósofo grego, numa tarde de calor, sentado debaixo de uma oliveira, enquanto olhava o mar e os barcos, na beira do Mediterrâneo: o que é de gosto regala a vida. Acho mesmo um milagre que a simples passagem de uma agulha pelos microssulcos do vinil produza a maravilha.

Entre os discos que já organizei, estão Please, please me, Beatles, 1963; Minas, Milton Nascimento, 1975; Meus caros amigos, Chico Buarque, 1976; Feito em casa, Antonio Adolfo, 1977; Amoroso, João Gilberto, 1977; Sol do meio-dia, Egberto Gismonti, 1978; Edu da Gaita, Edu da Gaita, 1979; Roberto Sion, Roberto Sion, 1981; A música livre de Hermeto Paschoal, Hermeto Paschoal, 1985; Balãozinho, Eduardo Gudin, 1986; Canta, canta, minha gente, Martinho de Vila, 1988; Three windows, The modern Jazz Quartet, 1988; La grande réunion, Stephane Grappelli e Baden Powell, 1989; Grandes compositores, Dorival Caymmi, 1990; Cartola ao vivo, Cartola, 1991(gravação de 1978).

A arte das capas é, em geral, feita com capricho, havendo esmero na concepção e montagem de textos e imagens.

No disco do gaúcho Edu da Gaita (Eduardo Nadruz, 1916 - 1982), por exemplo, está reproduzida a página de sua carteira de trabalho onde, no campo profissão, foi registrado: músico excêntrico. O ilustre funcionário público escorregou no adjetivo. Desconhecia, talvez, que se tratava de um dos mais importantes e respeitados artistas brasileiros, senhor de uma carreira brilhante com seu instrumento, a harmônica de boca.

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*Uma viagem sentimental
 http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/uma-viagem-sentimental.html

Foto de Edu da Gaita: site oficial do artista:
http://www.edudagaita.com.br/

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Risco luminoso

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto



O que nos liga à vida é um fio muito tênue. Traço de luz, sopro divino. A gente nunca sabe quando o encanto vai se quebrar. A obra do artista é grito em meio ao nada, risco luminoso na escuridão profunda. Aquele que cria acende a lamparina, levanta o archote. A arte registra o mistério e a  fragilidade da nossa passagem pelo mundo.

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Risco, em espanhol, significa penhasco alto e escarpado. Em português, uma acepção possível é de traço numa superfície, como papel, por exemplo: um esboço, um desenho, uma gravura, uma fotografia,  um texto.
Viver é sempre um risco, seja no sentido de uma narrativa ou de um perigo. Vivemos e corremos muitos riscos. O risco, inclusive, de um sentimento de leveza e felicidade.

terça-feira, 26 de junho de 2012

A casa do seu Wolf

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Araucária e azul. Passo dos Ausentes.


A casa do seu Wolf era uma construção alemã em estilo bávaro, localizada na rua Lucas de Oliveira, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. Às vezes passo por ali, pois é o caminho que faço a pé para a banca de jornal, quando estou na cidade. Sempre fico feliz de ver que a velha casa continua no mesmo lugar. 

Uma majestosa araucaria angustifolia (pinheiro brasileiro) existe ainda  no pátio em frente. Ao lado, algumas árvores resistem, como abacateiros que, nessa época de início de inverno, exibem rechonchudos abacates. O terreno da casa é íngreme, eleva-se para os fundos numa inclinação acentuada, mede cerca de 25 metros de frente por mais ou menos 100 de comprimento.

Quando tinha nove, dez anos, morei na rua Dona Eugênia, perto do seu Wolf. Havia poucos edifícios. Nas casas simples, algumas de madeira, viviam famílias de origem alemã, negra, portuguesa, uruguaia, judia, italiana e outras, numa diversidade humana típica do nosso país.

Éramos meninos e meninas pobres e remediados, formávamos uma comunidade fraterna. Brincávamos juntos quase todos os dias. Em festas como São João e carnaval,  os adultos participavam. Eram comemorações feitas na rua, especialmente na Lucas.

De vez em quando, no forte verão, o seu Wolf e a mulher dele nos convidavam pra tomar banho na piscina que tinham entre pés de mamão, laranjeiras, uvas e canteiros de verduras. E lá passamos muitas tardes alegres da infância.

Colho essa recordação toda vez que caminho naquela rua.

Sei que a vida de uma araucária pode durar bem mais de 200 anos. Parece muito. No entanto, certas lembranças vivem pela eternidade dentro de nós.

O que o coração diz é que a casa do seu Wolf, há muito tempo, já não é mais apenas a casa do seu Wolf. Um pedaço da nossa infância está lá, à sombra do vetusto pinheiro.

sábado, 23 de junho de 2012

Cartas a um jovem poeta

Jorge Adelar Finatto

photo de Rilke, 1900.Fonte: Wikipédia.

"As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. " ¹

Dois livros do poeta Rainer Maria Rilke (Praga, na época Áustria-Hungria, 4/12/ 1875 - Valmont, Suíça, 29/12/1926) marcaram para sempre a minha sensibilidade. São eles Cartas a um jovem poeta e Elegias de Duíno.

Rilke foi um escritor vigoroso, trabalhador, solitário e paciente, que experimentou, em toda profundidade, as dificuldades e alegrias do ofício de escrever. Construiu uma das obras mais importantes da literatura em língua alemã. Seu legado é universal e atrai leitores em todos os lugares do planeta.

Para ele, nada mais estranho ao universo da poesia e da criação do que a busca por notoriedade, a sede insaciável de autopromoção, o culto despudorado do próprio umbigo. Isto não produz a verdadeira obra de arte, mas a massa informe e pretensiosa de objetos que apenas simulam uma aproximação com o ato criador.

Para Rilke, que considerava indispensáveis a Bíblia e os livros do poeta e escritor dinamarquês Jens Peter  Jacobsen, é necessário mergulhar na introspecção e no silêncio como alguém que vê, sente e nomeia o mundo pela primeira vez.

Nessas breves linhas, quero me deter um pouco em Cartas a um jovem poeta. É um livro composto por dez cartas que enviou, entre 1903 e 1908, ao jovem poeta Franz Xaver Kappus, que lhe pediu conselhos. Ao invés de deter-se na análise crítica dos textos - a que era avesso - procurou abordar questões concernentes à formação do indivíduo, ao mergulho na condição humana, ao convívio com a própria e irrenunciável solidão na busca de respostas.

assinatura do poeta

Diz-nos o autor:

"O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação."²

É um livro que se destina não apenas a pessoas que se interessam por poesia e literatura. Fala da vida em sua dimensão mais secreta e profunda, fala de circunspecção para tentar entender as coisas do mundo, os outros, para compreender melhor a si mesmo e talvez criar.

Não se trata de um professor que fala ao aprendiz, mas de um ser humano sensível que se dirige a outro e compartilha o que reuniu de melhor, de forma humilde e sincera.

As reflexões de Rilke sobre o fazer literário são preciosas: escrever só quando sentir necessidade, não dar muita atenção à opinião da crítica, evitar assuntos sentimentais, cuidar da linguagem, voltar-se para seu interior, sem deixar de observar o ambiente no qual se vive.

Mas não há receitas. Cada um faz o próprio caminho, é o que nos ensina o poeta.

Nestes tempos em que tudo tem sua expressão medida pelo valor comercial e midiático, a palavra de Rilke continua viva e fecunda, mostrando-nos que pode haver algo além da vaidade estéril e do entretenimento barato:

"A arte também é apenas uma maneira de viver. A gente pode preparar-se para ela sem o saber, vivendo de qualquer forma. Em tudo o que é verdadeiro, está-se mais perto dela do que nas falsas profissões meio-artísticas. Estas, dando a ilusão de uma proximidade da arte, praticamente negam e atacam a existência de qualquer arte. Assim o faz, mais ou menos, todo o jornalismo, quase toda a crítica e três quartos daquilo que se chama e se quer chamar literatura."³

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¹Cartas a um jovem poeta. Rainer Maria Rilke. Tradução de Paulo Rónai. Editora Globo, Porto Alegre, 1978, pág. 21.
² Idem, pág. 55.
³ Idem, págs. 75/76.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

La vieja de atrás (A velha dos fundos)

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

Marcelo e Rosa

Está em cartaz em Porto Alegre La vieja de atrás (A velha dos fundos), um belo filme argentino (mais um). Um trabalho delicado, que trata de solidão, anonimato, dificuldade de fazer amigos na grande cidade e, também, de solidariedade. Um filme que enche o coração e faz pensar. O comentário a seguir escrevi no blogue em 10 de agosto de 2010, logo após assistir a sua exibição no Festival de Cinema de Gramado daquele ano. Revi agora o filme e continuo achando que vale muito a pena.

Seres devastados por uma irremediável solidão. A incomunicabilidade das pessoas em suas vidas pequenas e sofridas. As difíceis relações de afeto num mundo em que não se para para olhar e sentir o outro. A busca dolorosa, às vezes desesperada, de alguém para compartilhar a vida e amenizar o deserto.

La Vieja de Atrás (A Velha dos Fundos), dirigido por Pablo Meza, que também assina o roteiro, foi exibido no Festival de Gramado, na noite de domingo (o8/08/2010). É mais um bom exemplo do tipo de cinema que se faz hoje na Argentina. Um filme que apanha o indivíduo no ato difícil de viver,  que se preocupa em desvelar a vida interior dos personagens, com os pensamentos e sentimentos que os movem e lhes dão uma face.

Rosa (atriz Adriana Aizenberg) é uma velha senhora, na volta dos oitentanos, viúva há muito tempo, sem filhos, que vive sozinha num pequeno e obscuro apartamento numa rua movimentada de Buenos Aires. Marcelo (ator Martín Piroyansky) é um jovem tímido, vindo do interior, de la pampa, para estudar medicina na capital. De família pobre, sobrevive de fazer biscates, como distribuir papéis com anúncios, de mão em mão, pela calçada. Até que o dinheiro de Marcelo acaba e ele não consegue mais pagar o aluguel do apartamento em que mora, localizado no mesmo andar que o de Rosa. Um belo dia entram no elevador, que em seguida tranca. São obrigados a conversar, olhar-se. Rosa interessa-se em ajudar o rapaz e o convida a morar com ela. O mais que se passa daí em diante é pura condição humana.

Diferentemente de certos filmes brasileiros que tenho visto, em que há uma forte tendência para o documentário naturalista, percebo nos filmes dos vizinhos do Rio da Prata uma "ocupação" sensível e delicada do assunto humano. Não se nega a realidade, mas esta se coloca enquanto cenário ou circunstância na qual os personagens existem e agem como seres pensantes, emocionalmente vivos. Não são meros marionetes manipulados por um destino implacável, supostamente realista.

A impressão que se tem, ao final, é de que Rosa e Marcelo vão sair da tela caminhando em direção à plateia, tal sua verdade emocional e complexidade psicológica. Um belo filme.
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Foto: personagens Marcelo e Rosa. Divulgação (cinema.cineclick.uol.com.br)
O Cavaleiro da Bandana Escarlate é comentarista de cinema do blogue. No momento, prepara a bagagem para a cobertura do 40º Festival de Cinema de Gramado, edição 2012, a realizar-se entre os dias 10 e 18 de agosto próximos.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

O cinamomo

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Existe um edifício na rua Dona Eugênia, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, que tem um pequeno jardim na frente. Neste jardim vive um velho cinamomo.

Passei por lá no último sábado, o tempo estava um pouco nublado e frio. Me dirigia à banca de jornal que tem ali perto, onde costumo ir quando estou pela cidade.

Sempre que passo naquele lugar olho para o meu amigo cinamomo. Às vezes me pergunto se ele ainda se lembra de mim. Eu jamais pude esquecê-lo. Morei naquele edifício quando tinha nove, dez anos.

O cinamomo fazia parte das brincadeiras da meninada do prédio e da rua.

Pouca gente sabe - até porque existem hoje poucos cinamomos - mas essa árvore tem minúsculas flores que, na primavera, produzem um dos mais doces e suaves perfumes que conheço.

O meu velho cinamomo está lá, florido, soltando seu perfume em mais uma primavera das nossas vidas. A todos distribui seu aroma generosamente.

De certa forma, somos sobreviventes de um tempo e de um jardim.

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Texto publicado em 27 de setembro, 2010.