quarta-feira, 25 de julho de 2012

A volta do barco de papel

Jorge Adelar Finatto

barco: j.finatto


Saio a navegar no meu barco de papel pra esquecer o mundo.

Eu, quando quero dar férias à realidade, entro no barco colorido e parto em viagem pelo Guaíba.

Dessa vez reforcei a embarcação. Tomei uma folha de papel mais resistente à intempérie, fixei melhor as dobras. Levantei mais a vela. Na parte interna, coloquei utensílios mais leves.

Um forte vento sul, porém, apanhou o barco no meio do rio. Agitou as águas de tal modo que as ondas começaram a jogar o barco pra cima. O pior era a queda livre na volta. O corpo ficou todo dolorido.

Pra piorar a situação, desabou uma tempestade.

Frágil, o barquinho foi se desmanchando. A vela foi a primeira peça a ruir.

Filipo, o papagaio que me acompanha nas navegações, achou que daquela não escaparíamos.

- Vamos morrer, capitán!

- Tenha fé, nobre Filipo -, disse-lhe eu. Não desanimemos numa hora dessas, amigo. As nuvens más haverão de dissipar-se.

O peixinho Moisés, nosso companheiro de aventuras, nadava aflito ao lado do pequeno veleiro.

Quando o barquinho, enfim, se transformou numa pasta branca de papel, eu respirei fundo antes de afundar no Guaíba.

Mas não era dia de morrer.

A ventania, na sua fúria, nos empurrara pra perto da margem.

Ao cair no rio, a água bateu na altura da cintura. Filipo, que estava encolhido e agarrado no meu esquerdo ombro, gritou animado:

- Conseguimos, capitán!

Moisés respirou aliviado, deu um salto de felicidade e voltou para o interior do rio.

A navegação em barco de papel é uma arte.

Como toda arte, tem sua ciência e seus segredos.

O que é preciso pra navegar desse jeito? Bem pouca coisa.

Uma folha branca, lápis de cor, imaginação e um coração quase feliz.

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Texto publicado em 20 de outubro, 2010.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Pergunta a ti mesmo

                               Atapoã Feliz

photo: j.finatto


Ao contrário do que muita gente pensa, todas as coisas, inclusive as inanimadas, têm muita serventia. Até uma simples samambaia de plástico serve para ornamentar uma sala.

Forçoso é concluir, então, que não estamos aqui à toa.

Fixado este ponto, pergunta a ti próprio a que vieste.

Indaga que legado de tua autoria ficará para a Humanidade...

Medita, procura descobrir quais são as tuas tendências, aversões e preferências.

Lembra que desenvolver nada mais é do que retirar o envoltório grosseiro, camada por camada, e com elas livrar-te-ás, em definitivo, das imperfeições, até ressurgir, deslumbrante, o verdadeiro Eu.

Anota que todos os bons pensamentos, convertidos em boas ações, farão a retirada das substâncias toscas sobrepostas, tornando cada vez mais leve o fardo que na tua invigilância colocaste no teu alforje.

Antes de criticares uma obra literária, científica ou artística do teu irmão, indaga a ti próprio se já fizeste algo semelhante. Se a resposta for negativa, não tens capacidade para criticar porque tu és inexperto. Se afirmativa, nem pensarás em censurar um trabalho do teu colega.

Observa que, segundo a Sabedoria Antiga, quanto mais desejares o bem ao próximo e menos para ti próprio, mais leve será o fardo e menor o número de vezes de peregrinação que repetes por insondável evo...

Verás que não será nenhum gesto magnânimo de tua parte; apenas estarás recompondo o que tiraste indevidamente.

Percebe que os obstáculos encontradiços aqui e ali já se repetiram por várias oportunidades e ainda não conseguiste transpor; caso contrário, não reapareceriam.

Não percas tempo com as recordações que te aborrecem; também não deixes os maus pensamentos povoarem a tua mente, verdadeiras âncoras que nos impedem de atingir a meta. Substitui por algo agradável. Sempre que ocorrer um mau pensamento, lembra daquela flor orvalhada ou da sombra de uma grande árvore, tantas vezes quantas forem necessárias, até cessarem as investidas do hóspede pernicioso. Dali para frente, a substituição será automática.

Se ainda não escreveste um livro, não plantaste uma árvore, não fizeste uma música, não pintaste uma paisagem, nem tiraste uma foto,

Dá um sorriso!

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O autor é Desembargador do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.  Compositor, editor do site Omapala, de música:
http://www.omapala.mus.br/

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Violeta foi para o céu

Jorge Adelar Finatto

fonte: divulgação

A vida é mais forte que uma tela, um poema, uma canção. 
Violeta Parra

O filme Violeta foi para o céu, dirigido pelo chileno Andrés Wood, oferece-nos uma visão da história da cantora, poeta, compositora, folclorista e artista plástica Violeta Parra (Chile, 1917-1967). Acaba de entrar em cartaz em Porto Alegre e se trata de um ensaio muito bem elaborado sobre a vida da artista.

Impossível resumir uma vida num filme. Nenhuma vida cabe em tão pouco. O ser humano é muito mais rico, difícil, complexo e secreto. Violeta foi para o céu cumpre a missão de traçar um perfil humano da grande mulher e criadora, chamando a atenção para seu legado. A obra é baseada no livro homônimo (Violeta se fue a los cielos, 2006), do filho Ángel Parra.

O filme não é linear, aborda de forma fragmentada diversos períodos da trajetória de Violeta, com uma sintaxe interessante e ao mesmo tempo tensa. Não mitifica a personagem, mostra-a em diversas faces, como uma pessoa que experimentou o desamparo, a dor, a alegria, momentos de glória, amor, desamor.

Ela, que teve uma origem humilde, nascida em família pobre, desde muito cedo iniciou-se na arte. O pai, professor de primeiras letras e tocador de violão, morreu ainda jovem. Os laços de família, no entanto, eram fortes e amorosos.

photo: cena do filme Violeta foi para o céu. Divulgação

Tendo entre seus irmãos o poeta Nicanor Parra, Prêmio Cervantes de Literatura  2012, o mais importante de língua espanhola, a menina Violeta cresceu no interior chileno, no meio do povo, a tudo observando com curiosidade, dotada de espírito crítico e com uma intuição fora do comum. Além disso, possuía um imenso talento para a criação, na música e artes plásticas (chegou a expor seus trabalhos no Museu do Louvre, em Paris).

Entre as músicas de Violeta que ganharam o mundo, conhecidíssimas entre nós, encontramos Gracias a la vida e Volver a los 17, hinos de vida e sensibilidade. Como artista consciente, ela não ficou indiferente à injustiça contra os pobres e à falta de amor no mundo. Ao mesmo tempo, viu que o amor, às vezes, também pode ser fonte de grande sofrimento.

Destaque especial merece o desempenho de Francisca Gavilán, simplesmente notável no papel de Violeta, a tal ponto que nos leva para o lado de lá da tela, com sua envolvente e intensa interpretação. É como se estivéssemos junto de Violeta, nas trilhas da vida e de suas lindas canções.

sábado, 21 de julho de 2012

Os tempos da casa velha

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. casa em estilo enxaimel. Nova Petrópolis


A casa de madeira de pinheiro, onde vivi a infância, está de pé até hoje. Antes de mim, outras gerações viveram nela e outras vieram depois. Talvez, se encostar o ouvido naquelas vetustas paredes, ouvirei ecos de conversas sumidas no tempo.

O poeta Mario Quintana escreveu, em algum lugar, que o problema da arquitetura moderna é que ela não constrói casas antigas. Não é verdade?

Seria possível dizer, também, que o problema do presente é que não traz de volta as pessoas amadas que se foram. O leitor não deve levar em conta a melancolia da frase. Triste seria não ter tempos nem pessoas queridas para recordar.

Poucas coisas me passam um sentimento tão forte de permanência quanto as casas velhas, como essa aí da foto. Cada vez mais raras nas cidades brasileiras, quando vejo uma tenho a sensação de estar diante de um sobrevivente.

A ideia de perenidade, ilusória embora, está no pátio, na pérgula coberta de jasmim rosa, nas folhas de uma parreira ancestral, numa fonte em meio ao jardim. As casas em geral duram mais que seus construtores e moradores. E, cada vez que se derruba uma casa, um bocado de história afunda junto.

Vivemos uma época em que pouco se olha para as pessoas e coisas antigas que ainda restam. Habitamos o eterno presente, como se nada de interessante pudesse haver nem antes e nem depois. Isso não apenas é um erro, como nos remete a uma irrecusável solidão.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Meus amigos

Jorge Adelar Finatto




Não esqueçam
de me visitar
nas noites
de inverno
quando o medo
cobra caro
e as feridas
não deixam mentir

insolúvel jogo
de espelhos
entre mim
e o que fui

ando bêbado
pela casa
meu coração
é operário
desempregado
com filho pra criar
mulher feia
sem crédito no armazém

me enrosco
em invenções
inúteis
pra repartir contigo
um espaço de ternura

sinto umas
coisas estranhas
caminharem atrás de mim
um cano de fuzil
um casal de velhos famintos
um câncer
e me desagrada não ser
como certos fantasmas

convoco o
silêncio e
suas raízes

inauguro a
manhã

não, eu não sou
uma estrela
um rio
um barco
nada se compara
ao que sinto

preciso todos
ao redor da mesa
principalmente
os desaparecidos
como certos crepúsculos
que a gente vê
fogem e nunca mais

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Poema do livro Claridade, Jorge Adelar Finatto, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.
 

terça-feira, 17 de julho de 2012

Teatro de Brinquedo

Jorge Adelar Finatto

Eugênia Alvaro Moreyra, cerca de 1920

Sempre cismei um teatro que fizesse sorrir, mas que fizesse pensar. Um teatro de reticências...
                                                                                                   Alvaro Moreyra
 
O Teatro de Brinquedo, criado pelo casal Eugênia e Alvaro Moreyra, em 1927, é considerado o primeiro movimento importante de renovação da arte cênica brasileira. A experiência constituiu-se na criação de um teatro de arte em oposição ao que era feito até então. Integrado por pessoas que não dependiam do palco para sobreviver, o movimento abriu novos caminhos para a nossa dramaturgia.

O que se fazia em teatro até a iniciativa do gaúcho Alvaro (poeta, escritor, jornalista, teatrólogo, cronista {1888-1964}) e da mineira Eugênia (considerada a primeira repórter brasileira {1898-1948}), com poucas exceções, eram espetáculos de feição popular. Mas popular no mau sentido: pouca qualidade, desorganização, com o único intuito de distrair a plateia e faturar.

A respeito do que queria com o Teatro de Brinquedo, disse Alvaro semanas antes de estreia, em 1927: "Um teatro de ambiente simples, até ingênuo, bem moderno, para poucas pessoas cada noite (...) Representaríamos os nossos autores novos e os que nascessem por influência nossa. Daríamos a conhecer o repertório de vanguarda do mundo todo. Os espetáculos de uma peça seriam um gênero. Seria outro gênero a apresentação de programas com pantomimas, de lendas brasileiras, canções estilizadas, comédias rápidas, motivos humorísticos. Nesses programas, tomariam parte poetas dizendo os seus poemas, músicos tocando as suas músicas".

Para a época, era uma proposta avançada. E Alvaro tinha consciência disso. Por essa razão, não alimentou ilusões de que o público iria aderir de imediato à nova ideia. Segundo ele, o Teatro de Brinquedo era "da elite para a elite". Isto é, buscava chamar a si aquelas pessoas da pequena burguesia que não freqüentavam a plateia por falta de espetáculos de qualidade. Durante a década de 20, a elite só comparecia ao teatro para assistir a companhias estrangeiras, principalmente portuguesas, francesas e italianas.

Alvaro e Eugênia queriam ver no palco, também, trabalhos que pensassem a realidade e a cultura brasileiras. Naquela época, chegaram a fazer montagens na periferia do Rio de Janeiro.

Alvaro Moreyra, revista Para Todos, 1927

O casal Moreyra sabia que o projeto não poderia contar com atores profissionais, porque estes precisavam daquele outro espetáculo, com casa cheia. O grupo, portanto, seria integrado por gente amorosa do palco "senhoras e senhoritas da sociedade do Rio, escritores, compositores, pintores. Tudo gente de noções certas. O teatro da elite para a elite. Teatro para as criaturas que não iam ao teatro".

O nome Teatro de Brinquedo veio do fato de os cenários serem muito simples, imitando caixas de brinquedo, com muita graça e certo tom lúdico. A estreia aconteceu em 10 de novembro de 1927, no Salão Renascença do Cassino Beira-Mar, no Rio, com a encenação da peça Adão, Eva e outros membros da família, de Alvaro Moreyra.

A iniciativa contou, ao longo do tempo, com a participação de gente destacada no meio cultural, como Felipe D'Oliveira, Olegário Mariano, Antônio de Alcântara Machado, Di Cavalcanti, Lúcio Costa, Tarsila, Hekel Tavares, Aida Procópio Ferreira e muitos outros.

Em 1937, o casal criou a Companhia de Arte Dramática Alvaro Moreyra, contratada, após concorrência, pelo Ministério da Educação do Governo de Getúlio Vargas. O Ministro Gustavo Capanema criara, no ano anterior, a Comissão do Teatro Nacional, que tinha entre os objetivos desenvolver a atividade teatral e promover estudos sobre o teatro.

Durante as apresentações, que ocorreram em 1937 e 1938, a companhia Alvaro Moreyra encenou peças de Ibsen e Pirandello, entre outros autores, em Porto Alegre, Rio e São Paulo. Além das peças, Alvaro realizava as "tardes culturais", nas quais havia palestras e coversas informais com o público sobre a história do teatro.

No Rio, o trabalho foi realizado no Teatro Regina. Gustavo Dória, no livro Moderno Teatro Brasileiro, publicado em 1975 pelo Serviço Nacional de Teatro, observa que, por essa época, Eugênia aproveitou um grupo de atores afastados do palco e organizou, com o apoio da Casa dos Artistas, um conjunto que percorreu os subúrbios da cidade, apresentando-se em circos, pavilhões, cineteatros e clubes. No repertório, havia Mãe, de José de Alencar; O noviço, de Martins Pena; O Rio, de Carlos Lacerda; Hedda Gabler, de Ibsen (protagonizada por Eugênia); Magda, de Sudermann, e Uma mulher e três palhaços, de Achard.

O Teatro de Brinquedo e, depois dele, a Companhia de Arte Dramática Alvaro Moreyra cumpriram um valioso papel, colaborando para renovar a nossa dramaturgia e, ao mesmo tempo, para abrir espaço aos que vieram depois.

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Texto reproduzido do livro Alvaro Moreyra, Jorge A. Finatto, Editora Tchê, Porto Alegre, 1985.
Foto de Eugênia: fonte: Wikipédia. Autor desconhecido.
Leia também:
Alvaro Moreyra:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/03/alvaro-moreyra.html

sábado, 14 de julho de 2012

O cavaleiro invisível

Jorge Finatto


Dom Quixote e Sancho Pança, por Gustave Doré (1832 - 1883)


Um homem só, caseiro, beirando os cinqüentanos, cansado da vida pequena e vazia na qual nada acontece, resolve ir ao mundo em busca de aventura, justiça e amor.

A vida que vive não é a venturosa vida dos livros, é outra, enfadonha e triste. O melancólico senhor, habitante da região de La Mancha, na Espanha, mergulhou nas histórias de cavalaria, a elas dedicou seu tempo e sua alma, de tal modo que esqueceu o mundo real.

Vendeu até mesmo parte de suas terras para comprar volumes e mais volumes de livros de cavaleiros andantes.

O valoroso fidalgo, de modestas posses, alto e seco de carnes, revolta-se: é preciso espelhar o sonho na realidade, plantar uma flor no solo ressequido da realidade.

Alonso Quijano vai ao mundo à procura daquilo que mudará o imóvel destino, quer reviver em si as lendas da cavalaria, e tecer outras, delas extraindo glória, reconhecimeno e o amor de sua amada, a não menos inventada Dulcineia del Toboso.

O que nos diz o Quixote é que a vida cotidiana é insuficiente. Falta vida à vidinha.


Dom Quixote, por Gustave Doré
 

A figura imortal criada por Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1615)¹ é o resumo da alma humana em suas maravilhas, esperanças, desesperos, contradições e tragédias.

O Cavaleiro da Triste Figura saiu pelas estradas poeirentas e bosques da Espanha para resgatar os oprimidos, dar ânimo aos infelizes, levantar os desvalidos, socorrer os caídos, lutar contra todas as injustiças, e para salvar a si mesmo.

Montado no magro Rocinante ele vai, armado cavaleiro andante, com escudo, espada e lança, tendo por companheiro Sancho Pança, muito louco e meio sensato, um pouco mais ajuizado que o amo, montado em seu jumento.

A vida tal como é não basta. É necessário inventar outra, erguer a aurora da escuridão. É preciso viver intensamente os dias que passam velozes e irrecuperáveis.

Viver com a urgência de quem se despede. Viver como quem morre.

"Eu, Sancho, nasci para viver morrendo."²

Ninguém no mundo terá jamais autoridade para censurar Dom Alonso pelo desvario e fracasso da louca odisseia. Só os secos de espírito o fariam.

Não será essa busca o anelo secreto que habita o coração de tantos homens e mulheres na difícil jornada através do mundo hostil e trevoso, sonhando e lutando por uma outra existência, que faça valer a pena ter nascido?

Há talvez um Dom Quixote adormecido e invisível em cada um de nós, à espreita da hora da rebeldia.

"Cada qual é artífice de sua ventura"³, ensinou-nos o Quixote.

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¹ Dom Quixote de la Mancha. Miguel de Cervantes Saavedra. Edição ilustrada por Gustave Doré, três volumes. Tradução de Almir de Andrade e Milton Amado. Ediouro Publicações S.A, Rio de Janeiro, 2002.
² idem, terceiro volume, p.307.
³ idem, ibidem, p. 379.
Fonte das ilustrações: Wikipédia.