sábado, 30 de novembro de 2013

A despedida do Bacana

Jorge Adelar Finatto

O Bacaninha. photo: j.finatto.


Sentimental e reservado, ele não era de muita conversa. Um tanto melancólico talvez. Parecia sentir saudade de um mundo que um dia foi de alegria e companheirismo entre seus irmãos siameses. Devia ser num lugar perto do mar, com bastante peixe, alimento preferido.
 
Quando ainda era um gato bebê, nunca se viu mais chorão. Chegou aqui em casa no inverno, faz cinco anos. O único jeito de parar de chorar era deixá-lo entrar embaixo dos cobertores. Aí se acalmava, queria contato físico, calor humano (não tinha outro gato para se aquecer).
 
O Bacana tornou-se um adolescente calado, não gostava de reuniões e ruídos. Preferia o silêncio e o recolhimento do escritório a qualquer outro ambiente da casa. Era doce e cálido.

Apreciava também o muro do quintal. E gostava de sentar-se no quiosque em meio a vasos de flores, de onde podia admirar o Contraforte dos Capuchinhos, na lonjura, com suas montanhas azuis.

Caminhava em silêncio como só os gatos sabem fazer.
 
Às vezes, subia no teclado do computador, com o motorzinho de popa fazendo o rom-rom característico. Queria atenção. Só sossegava quando era acariciado, após alguns minutos.

Nessas ocasiões, sentava na estante perto da janela ao lado do volume encadernado de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Depois descia a escada escarpada, ia para o pátio, silente e esguio como uma sombra.

No final de agosto, teve uma doença que o levou embora. Primeiro foi para a clínica veterinária onde ainda havia esperança (não muita) em sua recuperação. Até que veio o telefonema anunciando a morte.

Ficou o silêncio de seus passos pela casa.

Perdi os olhos azuis e a meiga presença do Bacaninha.

Falta um gato no escritório.
 
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Texto revisto, publicado em 9 de setembro, 2012.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Alvaro Moreyra

Jorge Adelar Finatto
 
 
Alvaro Moreyra
 
 

Se um dia tiver de escolher um cronista pra levar para a ilha deserta (essa pequena ilha imaginária que  todo mundo tem, de náufrago, com uma só palmeira, perdida no meio do oceano), este cronista será o porto-alegrense Alvaro Moreyra (1888 - 1964).

O Brasil tem cronistas de valor, o sempre lembrado Rubem Braga é, com justiça, um bom exemplo. Mas nenhum tem a sintaxe tão refinada, natural, despojada e poética de Alvaro Moreyra. Não será exagero dizer que ele fundou a moderna crônica brasileira, conforme afirmou Guilhermino Cesar:

Alvaro Moreyra teve o privilégio de criar a crônica moderna no Brasil. Chegou a ser o mais lido dos nossos cronistas. A influência que exerceu é perceptível em muitos autores que vieram depois. Rubem Braga, por exemplo, parece dever alguma coisa ao autor de Um sorriso para tudo.¹
 
As palavras parecem gostar de ser tocadas pela mão do escritor. Passeiam com ele, brincam, mergulham, saltam da página, seduzem e se deixam seduzir. Adoram estar perto do senhor Moreyra (ele acrescentou o y ao nome em lugar do i).
 
Não há sobras nem há faltas no texto do autor (principal influência literária de Carlos Drummond de Andrade, nos anos de formação, entre os escritores brasileiros).

São breves composições que têm a invulgar capacidade de traduzir sentimentos, pensamentos, estados de espírito, aquarelas da alma que normalmente são difíceis de pintar.
 
A leveza, o humor, a bondade, a delicadeza e a ironia inteligente (que nunca se confunde com grosseria) são sua marca.
 
Dele disse Drummond:
 
Uma impressão de magia singela: com poucas e leves palavras, um y e algumas reticências, ele soube dizer finas coisas, que nos tocaram.²

Um olhar amoroso sobre os seres e a vida é o traço deste artesão do verbo.

A injustiça e o sofrimento das pessoas não passam despercebidos nas páginas deste comunista devoto de São Francisco de Assis.

Poeta, cronista, diretor de revistas importantes onde publicou autores como Oswald de Andrade e Carlos Drummond, produtor e apresentador de programas culturais de rádio, teatrólogo (iniciou o movimento de renovação do teatro em nosso país junto com a mulher, Eugênia Moreyra, através do Teatro de Brinquedo),  Alvaro Moreyra sempre levou Porto Alegre e o Guaíba no coração por onde andou.

Estas impressões vêm a propósito de ter descoberto agora a edição de uma antologia de crônicas do escritor, recolhidas dos vários livros que publicou no gênero. É a primeira publicação desta natureza dedicada ao autor de Havia uma oliveira no jardim. A obra faz parte da Coleção Melhores Crônicas, da editora Global, com seleção e prefácio de Mario Moreyra.

Tomo a liberdade de sugerir aos meus dois leitores que não deixem de levar para casa este livro. Estou certo de que viverão momentos de felicidade na companhia do senhor Arlequim da Silva (pseudônimo de Alvaro).

... E fico a ver navios. É um passatempo. O mar, por ser sempre o mesmo, é diferente sempre. Às vezes, verde, com franjas de espuma. Outras vezes, azul, parado, imóvel. Em certas manhãs, parece uma cauda de pavão... Eu gosto do mar. Paro, horas esquecidas, na areia da praia, olhando as ondas, marujamente, cheio de uma nostalgia deixada em mim pelos portugueses meus ancestrais... E fico a ver navios...
É o que tenho feito em toda a minha vida...³
 
                                         Alvaro Moreyra *

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Foto de Alvaro Moreyra: reprodução de fotografia do escritor publicada na revista  Para Todos, de 19 de março de 1927 (coleção do autor do blog).
 
¹Alvaro Moreyra, Jorge Adelar Finatto. Tchê e RBS. Porto Alegre, 1985. p. 65.

²Cadeira de Balanço, Carlos Drummond de Andrade. Livraria José Olympio Editora, 8ª ed., Rio de Janeiro, 1976.


³Alvaro Moreyra, Coleção Melhores Crônicas, p. 54. Seleção e prefácio de Mario Moreyra. Global Editora, São Paulo, 2010.
 
Leia mais sobre Alvaro Moreyra:
 
A memória do coração:

Páginas de velhas revistas:
 
Teatro de Brinquedo:
 
Este post foi revisto e ampliado, tendo sido publicado pela primeira vez em 07 de março, 2012.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

O caçador de flores

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. nov. 2013


O caçador de flores, na sua floral loucura, busca reter a beleza do que, por natureza, é volúvel ao tempo e perecível.

Sou amador na arte de caçar flores, alguém que se dedica ao ofício por puro prazer estético, sem fazer disso meio de vida ou por espírito de emulação com outros caçadores.

Em setembro, lanço-me mais uma vez na delicada faina, mesmo sabendo que imagens conservam apenas a aparência do que foi belo um dia e depois deixou de ser.

Saio por aí com a Coruja, vetusta máquina fotográfica que me acompanha há séculos, e começo mais um dia de caçada. Esta é a época perfeita.

E haja corola para satisfazer a sanha insana.

O gesto é egoísta, reconheço, típico de quem dá valor excessivo ao deleite das formas, cores e aromas, numa ânsia predatória de fazer arrepiarem-se os campos, jardins e pomares. Tal é a índole do caçador.

photo: j.finatto. nov. 2013

O caçador satisfaz o cruento instinto ao capturar flores em fotografias, escondendo-as em secreto compartimento. Todavia, o segredo não resiste à evidência de que o belo precisa ser compartilhado. Só isso torna completa a alegria da caça.

Um dia as flores secam e morrem, como tudo que é vivo e respira. Alguma coisa delas permanece nas imagens. Será essa, talvez, a possível atenuante para a conduta violenta do caçador, no seu afã de ter consigo todas as flores que puder e mais algumas.

Na cidade grande quase não há flores ao ar livre. Por isso, e por não gostar de viver distante delas, quando estou longe de Passo dos Ausentes, levo comigo as imagens floridas. Um jardim de emergência em meio ao deserto de concreto, para suavizar o feio e o triste.

Nos Campos de Cima do Esquecimento, de onde escrevo essas frágeis linhas de primavera, não faltam flores, graças a Deus. Elas crescem generosamente em todo lugar e a caça é abundante.

O retrato é, talvez, um modo patético de aprisionar o efêmero, alguém dirá. Pode ser. Mas o que não é patético nessa vida, não é mesmo, raro leitor?

photo: j.finatto. nov. 2013
 

sábado, 23 de novembro de 2013

Pescadores limpam as águas

Jorge Adelar Finatto

photo: Luciano Lanes. Divulgação da Prefeitura de Porto Alegre
 
Se queres limpar o mundo, começa limpando a tua casa. 
 
A Ilha da Pintada é uma das ilhas que habitam o rio Guaíba em Porto Alegre. Como todas as ilhas, tem seus pescadores, e os pescadores têm suas histórias. Eles escreveram uma bela página na última quinta-feira. Saíram para o rio em 150 barcos, a fim de recolher a sujeira das águas.
 
O resultado desta "pescaria" foi o recolhimento de 20 toneladas de lixo. Havia de tudo: aparelhos de televisão, sofás, colchões, pneus, tanques de plástico, garrafas pet, para-choques de carro e muita coisa mais.
 
A ação dos pescadores - que incluiu também a limpeza de um fragmento dos rios Jacuí e Gravataí - tem o nome de Pescando Lixo. Trata-se de um mutirão organizado pela Colônia de Pescadores Z-5, da Ilha da Pintada, com a participação de órgãos dos governos estadual e municipal.
 
O diretor da Colônia de Pescadores, Vilmar Coelho, observou que esta foi a nona edição do projeto. Disse ele ao jornal Correio do Povo, de Porto Alegre: "É uma maneira de o pescador aproveitar o tempo parado para retirar o lixo do rio, pois com menos lixo vai ter mais peixe". Acrescentou que falta mais apoio ao mutirão, pois os pescadores não recebem sacos para o lixo nem luvas se proteger. 
 
O "tempo parado" por ele referido decorre de ser época em que a pesca é proibida em face da desova dos peixes, período conhecido como do "defeso".
 
O material recolhido foi entregue ao Departamento de Limpeza Urbana de Porto Alegre para reciclagem. O restante irá para aterro sanitário.
 
Se queres limpar o mundo, começa limpando a tua casa. É a idéia que me ocorre ao ver o gesto dos pescadores da Ilha da Pintada, com sua população formada por descendentes de açorianos e africanos.

Se os habitantes do continente ainda são capazes de desatinos como jogar esse lixo nas águas (até quando?), o ato que nos redime tem que vir dos ilhéus.
 
A salvação virá talvez das ilhas... Nelas o rio limpo e o peixe vivo são o mais importante. Esses barcos em movimento carregam a nossa esperança.
  

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Tara McPherson, a persistência do coração

Jorge Adelar Finatto


 A artista desenha figuras femininas e masculinas com um buraco no peito em forma de coração. São os rompimentos amorosos, as duras perdas, o dilaceramento dos afetos, num mundo que se esforça por afastar o sentimento da vida cotidiana.


Sempre me surpreende a capacidade das pessoas de fazer arte, apesar da estrovenga em que o planeta está mergulhado, mercê do grande empenho destrutivo dos senhores do poder e do dinheiro em todos os países do mundo.

Conheci uma breve mostra do trabalho da americana Tara McPherson. Ela nasceu em São Francisco, Califórnia, em 1976.

Quando surge uma artista como Tara, em condições de observar as coisas do mundo e traduzi-las para nós em forma de arte, devemos agradecer a Deus por isso.

A absurda cultura do consumo, a imposição de personalidades patéticas como referência de valor artístico e sucesso midiático, deixam pouca margem ao pensamento crítico e criativo. É raro alguém desenvolver criatividade em meio a padrões tão rígidos de valorização do pueril.
 
 
Tara desenha figuras femininas (e, às vezes, masculinas) com um buraco em lugar do coração no peito. São os rompimentos amorosos, as duras perdas, o dilaceramento dos afetos, num mundo que se esforça por afastar o sentimento do cotidiano.

Os corações ausentes das musas podem significar, também, entrega, estão batendo em outra parte, no corpo dos seres amados, nessa viagem incandescente e visceral pelo cosmos  à procura do outro que nos enxergue na multidão, nos acolha e nos salve das geleiras da solidão.

Às vezes, a figura feminina flutua leve pelo ar, com aquele buraco no lugar do coração, numa espécie de felicidade.


Em outras pinturas, os corações femininos aparecem sangrando.

A artista desenvolve uma estética pop com raízes na história da pintura universal. Não despreza a tradição, pelo contrário, aproveita-a. E segue seu caminho.

Tara costuma falar do amor aos amigos e do respeito ao próximo comos valores essenciais em sua vida. Gosto muito disso, pois revela um ser humano sensível ao seu semelhante e não preocupado apenas com o próprio umbigo.

Visitei o site oficial dela e o coloquei entre os meus favoritos.
 

A obra em construção de Tara McPherson revela traços em busca de sentimento, claridade e beleza. 
 
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Reproduções de pinturas de Tara McPherson a partir do site oficial da artista:

Leia entrevista com ela na revista Zupi:
http://www.zupi.com.br

Texto revisto e atualizado, publicado antes em 6 de agosto, 2011.
 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Bullock e Clooney perdidos no espaço

Jorge Adelar Finatto

Sandra Bullock, no filme  Gravidade. photo: divulgação
 

Gravidade é um dos melhores filmes que vi nos últimos tempos. Dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón, com roteiro dele e de Jonás Cuarón, estreou em outubro passado. Tem nos papéis principais os atores George Clooney e Sandra Bullock, que interpretam astronautas num vôo nas cercanias da Terra, com a missão de reparar o telescópio Hubble.

As coisas transcorrem normalmente. O comandante Matt Kowalski (Clooney) e a engenheira biomédica Ryan Stone (Bullock) trabalham fora da espaçonave, quando, de repente, uma chuva de detritos provoca a destruição da nave e a morte dos demais tripulantes. Inicia-se então uma terrível luta pela sobrevivência por parte de Matt e Ryan.

A construção das imagens é impressionante. A seqüência das cenas nos leva ao pleno sentimento de desamparo causado pelo fato de se estar a cerca de 400 km acima da Terra, sem qualquer comunicação com os técnicos da Nasa. Os dois viajantes estão perdidos no espaço, soltos no vácuo, sem gravidade, numa região escura, povoada de silêncio. Longe do mundo num ambiente inóspito.

Ali um pedaço de metal, submetido à luz solar, chega facilmente a 260º Celsius, obrigando a utilização de espessas luvas e isolantes térmicos. Na região de sombra, a temperatura despenca para -100º C.

Nesse território obscuro, as estrelas são remotos pontos de luz. A única coisa que brilha, em suaves cores, é o nosso planeta, que surge como um doce jardim em meio ao abismo celeste. Ryan e Matt têm apenas um ao outro.

O resto é solidão e isolamento.

Bullock e Clooney. photo: divulgação

As imagens em três dimensões transportam o espectador àqueles confins, fazendo com que se sinta também perdido, olhando com profunda nostalgia a distante Terra. O cenário é maravilhoso e assustador.

Os astronautas estão à deriva no espaço. Náufragos do infinito, sem galho ou corda em que se segurar. Com a proximidade do fim do oxigênio armazenado no interior do equipamento e com a iminente perda de propulsão que lhes permite deslocamento, a situação torna-se dramática.

Isto é apenas um pálido rumor do que acontece. Tem muito mais.

A história faz pensar tanta coisa.

Entre os possíveis sentidos que o drama sugere, está o da imensa nuvem de solitude e precariedade que cerca aqueles que estão fora do nosso planeta, presos por um fio à vida. Fica a forte sensação de que, sozinhos, não vamos a parte alguma.

Precisamos uns dos outros em nossa precária condição de seres frágeis e pequenos num universo tão vasto quanto difícil. A aventura de viver na Terra e de explorar o espaço exige coragem e solidariedade. Não temos mais do que o outro, que, mais do que algoz, pode ser a nossa inspiração e salvação.

O filme lembra que talvez pior do que passar dificuldades aqui no planeta azul, cercado de gente por todos os lados, é ficar abandonado lá em cima, onde viver é, nas atuais condições, impossível.
 

domingo, 17 de novembro de 2013

A queda do Águia Negra

Jorge Adelar Finatto
photo: j.finatto


Os destroços do aeroplano ainda estão espalhados em volta do chafariz, no centro da Praça da Ausência. Essa queda do Águia Negra não foi apenas a décima oitava na vida do piloto Nefelindo Acquaviva. Mas ao contrário das anteriores, não foi um acidente.

Um traiçoeiro tiro de bombarda, de autoria desconhecida, está na origem do rompimento das relações entre a igreja e a aviação em Passo dos Ausentes.

Nefelindo decolou com o Águia Negra do fundo de seu quintal na tarde de sábado. Sobrevoou cercas e telhados a muito pouca altura. Os vizinhos taparam os olhos com as mãos e baixaram as cabeças, temendo pelo pior.

O ensurdecedor e absurdo objeto voador - espécie de motociclo com asas de besouro, contruído por Acquaviva no galpão do seu pátio - ganhou altitude a duras penas, descrevendo no ar um preocupante ziguezague.

Quando atingiu a marca de 40 metros, Nefelindo iniciou manobra para contornar a torre da igreja e rumar ao sul, na direção de Porto Alegre. O acalentado sonho do pioneiro da aviação em Passo dos Ausentes é aterrissar um dia na capital do Rio Grande do Sul. Com isso quer realizar dois objetivos: chamar a atenção da sociedade para a existência da cidade esquecida, que nem sequer no mapa está, e divulgar a prodigiosa invenção aeronáutica.

No momento em que começava a volta na torre, ouviu-se o assombroso estrondo do tiro de bombarda, cujo projétil passou a poucos centímetros do aparelho, desequilibrando-o nas alturas. O aeroplano bateu no alto da torre contra a cruz, que se partiu e despencou. Em seguida, a nave precipitou-se vertiginosamente, vindo a cair sobre o chafariz no meio da praça. A água amenizou a queda.

Naquela hora a banda municipal ensaiava no coreto. Os músicos correram e retiraram o que sobrou de Nefelindo de dentro do casulo. O médico, Dr. Fredolino Lancaster, 96 anos, único da cidade, compareceu ao local pouco depois da tragédia e fez o atendimento de urgência. Disse que era um milagre o piloto ter sobrevivido. 
Dois dias após, no hospital, pela tarde, todo enfaixado na cama, Nefelindo segurava um charuto entre os dedos, enquanto olhava através da janela. Nuvenzinhas brancas desfiavam entre os fios do negro bigode. Nisso chegou o chefe local da igreja católica, Dom Krauss. O padre usava o chapelão preto em forma de bacia virada para baixo. Dirigiu-se secamente a Nefelindo, com forte sotaque germânico.

- Eu o proíbo de invadir o espaço aéreo da igreja. Se isso acontecer novamente, eu mesmo me encarregarei de atirar contra seu pássaro insano. Acredite, Nefelindo, sou bom atirador.

- Cínico chapeludo - respondeu o aeronauta com a voz cavernosa. A cidade toda sabe que o tiro partiu do pátio da sua igreja. O senhor acaba de decretar o fim do nosso armistício. Nós da aviação não aceitamos intimidação nem ultimatos. Passou o tempo em que a igreja fazia o que bem entendia nesse fim de mundo. Prepare-se para o pior.

- Você não podia andar solto por aí, devia estar no hospício -, disse Dom Krauss, que se retirou furioso do quarto, abrindo espaço com os braços entre as duas enfermeiras que chegaram para atender o sobrevivente.
                              
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Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes, foi até o jardim do hospital e, diante da janela aberta do amigo, executou Adiós Nonino, de Astor Piazzolla.
O perfume das madressilvas impregna o ar nesses tempos de primavera.

Somos ruínas vivas em progresso na nossa pequena cidade. Um lugar onde a neblina veio morar com a solidão. 

Mas temos, como nosso aviador, a ambição dos altos voos.
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Texto revisto, publicado em 24 de setembro, 2010.
Mais sobre o Águia Negra no post de 5 de maio, 2010.