domingo, 22 de junho de 2014

O Lobo Antunes perdido

Jorge Adelar Finatto

 
E aqui ando eu, todo arrepiadinho, a esgalhar uma crônica. Estamos em janeiro, este lugar é frio como o caraças, tenho as mãos geladas. As pernas também. Não despi o sobretudo. De vez em quando o telefone aos gritos: não atendo. Se calhar morri.

António Lobo Antunes, Quarto Livro de Crônicas, p.  325, Publicações Dom Quixote, Portugal, 2011.

Tem gente que passa a vida a ler livros. Eu não alcancei essa ventura. Sempre li quando pude, nos interstícios entre o trabalho, o cuidado da família, os estudos, a leitura de livros técnicos a que a profissão obriga. 
 
Li obras importantes enquanto levava os filhos pequenos na pracinha. Meu filho mais velho aprendeu a andar de bicicleta enquanto eu lia A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e Angústia, de Graciliano Ramos. A filha brincava na areia com baldinho e pá enquanto eu lia O Nome da Rosa, de Umberto Eco.
 
Inventava tempo para ler. Valeu a pena, e como! As horas mais intensamente vividas foram essas com os filhos e os livros.
 
Levo sempre um livro comigo. É um antídoto para o tédio e a angústia das salas de espera, das filas, dos aviões. E uma boa companhia no território republicano dos cafés. Raramente sento à mesinha sem um livro.
 
Por conta desse hábito, sofri um duro prejuízo há uma semana. Fui a um café na cidade de Gramado. Antes de entrar resolvi pagar uma conta no caixa-eletrônico do banco. Coloquei o livro sobre a máquina enquanto manuseava o cartão e o documento. Pendurei ao lado o guarda-chuva (chovia bem naquele sábado, 14/6/14). Fiz o pagamento e saí.
 
Sentei à mesa perto da janela, um vasinho de violeta ao centro, pedi um cappuccino. O costume. No instante em que fiz o gesto de abrir o livro, o quinto volume das crônicas do António Lobo Antunes (que trouxe de Lisboa, não existe no Brasil), me dei conta de que o esquecera na agência bancária.
 
Abandonei o cappuccino fumegando na xícara e me fui rua afora, apressado no frio e na chuva,  com o coração aflito. Inútil. O livro não estava mais lá. Não havia ninguém na agência (fechada no fim de semana).
 
Nos poucos minutos que durou o meu esquecimento, alguém tomou o Lobo Antunes e escafedeu-se. Aquilo estragou meu dia. Durante a semana, fiz contatos com o banco para saber se a criatura tinha devolvido o livro. Não.
 
Em suma, perdi o Lobo Antunes que busquei do outro lado do Oceano Atlântico. Não tenho sentimentos negativos em relação a quem me levou o livro, mas também não vou testemunhar a seu favor no Juízo Final, pelo contrário. O mínimo que lhe desejo é um judicioso purgatório.
 
Como diz o ditado, mais tem Deus a dar que o diabo pra tirar. Trouxe na mala, também, o volume 4 das crônicas. Isso serve de algum consolo. Tenho lido vários livros nos últimos tempos, mas sempre, no intervalo entre uns e outros, pego na estante as crônicas do Lobo.
 
Criou-se entre mim e esse autor - um animal solitário na floresta de palavras a percorrer iluminadas trilhas e a descobrir cálidas fontes - um encantamento, uma cumplicidade, que só a literatura consegue explicar. E nisso ninguém toca.
  

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O aborto e o Papa

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto, janeiro, 2010
 
O presente artigo foi escrito e publicado em março de 2010. Pelas questões que suscita, republico-o, acreditando que vale a reflexão sobre um tema tão importante quanto delicado. Observo que em dezembro de 2012 o Uruguai aprovou a lei que autoriza a interrupção voluntária da gravidez no prazo de até doze semanas de gestação ou 14, em caso de violação. Foi o segundo país a descriminalizar o aborto na América Latina; o primeiro foi Cuba.
 
A frase na parede de um prédio público, quase à beira do Rio da Prata, me fez parar sob um sol forte, a poucas quadras do belo e tradicional Teatro Solis, em Montevideo, em janeiro passado.
 
O Uruguai é um país de gente que lê, opina, discute, participa. O que me motivou a fotografar?
 
Primeiro, o argumento. Se o Papa fosse mulher, uma papisa, portanto, a questão do aborto teria mesmo outro tratamento? Será que a compreensão do problema do aborto é uma questão só de gênero?
 
Segundo, eu não tenho opinião definitiva sobre o assunto e não faço julgamento moral a respeito. O que eu queria é entender.
 
O grafite montevideano expressa a opinião de milhões e milhões de mulheres no mundo inteiro.

O aborto é, com efeito, uma questão de gênero. Mas não só. Gerar ou não uma vida no próprio ventre é, em boa medida, uma decisão da mulher, por diversas razões.
 
A rejeição da gravidez ou a omissão dos homens em relação ao fato é uma delas.
 
A legalização do aborto é uma das faces de um problema maior, mas está longe de ser a principal.
 
A afetividade, a sexualidade e a responsabilidade pela geração da vida estão intimamente ligadas. Fazer sexo, sexo casual, é diferente de fazer amor.
 
A indústria da propaganda, em geral, separa o corpo e o sexo do resto. Existem corpos lindos, mas não existe espírito nesses corpos.
 
Corpos maravilhosos de mulheres são utilizados para vender qualquer coisa. O mesmo também acontece agora com corpos masculinos.
 
A erotização começa na infância, através dos comerciais, filmes, programas, séries e novelas de televisão.
 
Coisas como compromisso nas relações, autoestima, estima e respeito pelo outro são tratadas de maneira residual.
 
Em vários países o aborto foi legalizado.
 
No Brasil, a discussão permanece e sua prática ainda é crime, salvo nos casos em que não houver outro meio de salvar a vida da gestante e quando a gravidez resultar de estupro (desde que precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal).
 
Dizem os defensores da legalização que mulheres pobres, que não querem mais ter filhos, muitas vezes são levadas a fazer aborto em condições sub-humanas, longe do sistema público de saúde, com elevado índice de letalidade, enquanto mulheres com boas condições econômicas pagam por procedimentos particulares e recebem melhor atendimento.
 
Informação do Ministério da Saúde estima em 1,4 milhão de abortos clandestinos no Brasil por ano, conforme dado colhido do site Themis, Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre.
 
Dizem também os defensores do aborto que a mulher tem o direito de dispor do próprio corpo.
 
Os que são contra a autorização afirmam que a mulher não pode interromper uma vida que já não lhe pertence, mas é de outra pessoa depois da concepção.
 
Eu não sou especialista no assunto, mas também não sou hipócrita.
 
O aborto é um tema a ser tratado por toda a sociedade, mulheres e homens.
 
Tratado, sim, mas num espectro mais amplo do que a mera legalização, que, pelo que vejo, acabará acontecendo.
 
Está na hora de pensar a sexualidade humana de modo mais responsável, penso eu. Isso é mais do que simplesmente distribuir milhões de camisinhas (preservativos) no carnaval e achar que está tudo certo (como órgãos de saúde pública costumam fazer no Brasil).

Creio que se faz necessário criar redes de apoio a gestantes, substituindo a ameaça da criminalização pelo diálogo acolhedor, pela orientação assistencial. E o Estado deve preparar o sistema de saúde para receber e tratar situações de aborto a fim de evitar que tantas vidas sejam perdidas ou mutiladas,
 
Este grafite na parede de um edifício, em Montevideo, sob o sol escaldante do Rio da Prata em janeiro de 2010, me fez parar e tentar entender.

 
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Texto atualizado, publicado anteriormente em 9 de março, 2010.

terça-feira, 17 de junho de 2014

A canção dos guarda-chuvas

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto

Um guarda-chuva não é só um guarda-chuva. Não é simplesmente uma armação de varetas móveis coberta de tecido, conforme nos informa o Dicionário Aurélio. Aqueles que, como eu, têm o guarda-chuva em alta estima sabem do que estou falando.

Estava retornando a Passo dos Ausentes, vindo de Porto Alegre. Passei pela serrana Canela, que é o caminho para os Campos de Cima do Esquecimento. As ruas de cidade estavam povoadas de guarda-chuvas. Costuma ser assim no inverno. Grandes e coloridos, os chapéus-de-chuva canelenses habitam o ar pendurados em fios.

Sob o céu azul uma multidão de umbelas. Um regalo para os olhos e o coração.

photo: jfinatto, 9/6/14

Decidi parar e tomar um café. E também photografar, antes de seguir viagem.
 
Os guarda-chuvas estão entre os objetos mais belos já construídos pelo homem. A sua forma e a sua funcionalidade são irretocáveis. Não por outra razão, sofreram pouquíssimas modificações ao longo dos séculos.

Os exemplares mais antigos remontam a mais de 3 mil anos, na Mesopotâmia, espaço geográfico correspondente hoje ao Iraque e cercanias. Ali, nos vales dos rios Tigre e Eufrates, surgiram os primeiros.

photo: j.finatto, 9/6/14
 
Eu, quando sinto o banzo se acercar de mim, lanço mão do meu guarda-chuva. O guarda-chuva é um amigo fiel e um bom confidente.

Poucos sabem, mas o fato é que, com o tempo, o guarda-chuva desenvolve sentimentos e até uma alma, tornando-se um ser amoroso e devotado.
 
photo: j.finatto, 9/6/14
 
Não poucas vezes os guarda-chuvas desagravam seus donos dando judiciosas pancadas na cabeça de indivíduos maus.

Quando o vento soprou, os guarda-chuvas fizeram uma animada dança, balançando as umbelas. Do toque do vento dedilhando as varetas brotou uma estranha canção que me fez sonhar com um lugar misterioso.

Um guarda-chuva verde se descolou e saiu voando rua afora. Dobrou a esquina e prosseguiu rumo ao horizonte. Entrou em órbita em torno da Terra, misturando-se a todos os outros guarda-chuvas perdidos e abandonados do mundo.

Uma legião de umbelas forma um luminoso colar que abraça o planeta e é visível nas noites claras de junho, quando o frio e a solidão avançam sobre as horas.
 

domingo, 15 de junho de 2014

O apanhador de estrelas

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 
 
Escrever é estar vivo. Compartilhar isso com o outro é uma forma de claridade . Navego pelo universo a bordo do calepino silencioso, sem sair do lugar. O texto no computador vem depois da viagem.

Esse sentimento aconteceu durante uma bruta falta de luz que lançou a casa e toda a rua e talvez o bairro todo no mais profundo breu.
 
Saí pelos armários e gavetas às cegas, apalpando em busca de coisas capazes de substituir a luz elétrica que desaparecera, pra continuar as anotações que estava fazendo.
 
Me senti um apanhador de estrelas, perseguindo velas, fósforos, lanternas, isqueiros, lamparina a óleo, qualquer coisa que pudesse iluminar a escuridão que me cercava naquele momento.
 
Não tenho apreço pelo lado escuro. O breu das almas, o breu da vida, me desacostuma da alegria. Gosto de claridades.
 
A escuridão me desabriga.
 
Por fim, encontrei uma vela de tamanho razoável com força de moer o escuro. Caderno à mão, retomei a busca de extrair o incomunicável, o desconhecido, o lado escuro dentro de mim, na esperança da rara luz que verte da palavra.
 
O homem é palavra.

O que é um texto, raro leitor, senão um telescópio mirando a espessa névoa dos corações? Quem, senão a palavra, pode vasculhar esse vasto território, dar-lhe alguma voz, forma e sentido?

Quem, senão a palavra, pode nos valer perante nós e o outro?
 
Palavra sem esquecer de ser silêncio. Palavra e silêncio.
 
Na noite calada, o apanhador rumina o escuro, visita distâncias, ruínas, abraça ausências, faz apontamentos, cultiva paciência, estuda as anotações de outros exploradores do universo, ajusta as lentes do seu instrumento. Deseja querer.

É noite de outono, frio, beira do inverno. Viajo pelo cosmos, visito o brilho azul de estrelas que já se apagaram, desvelo sombras inumeráveis, vou à procura do que é e respira, quero conhecer um pouco esse mistério.

O apanhador espreita a noite infinita do mundo em busca de um sinal, um movimento, uma luz generosa e tênue que ilumine os aposentos interiores da casa chamada ser humano.

Eis que a calma luz penetra aos poucos pelas frestas, por debaixo da porta, através do postigo. A luz suave e benigna. 
 
Palavras criam asas, inauguram o vôo.
 
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Texto revisto e atualizado, publicado antes em 9 de janeiro, 2013.

sábado, 14 de junho de 2014

Gosto de saber

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto


Gosto de saber
que num dia longe
-  agosto 1986 -
alguém retirou
da Biblioteca Municipal
        e talvez leu
o livro que escrevi
há tanto tempo

os poemas
         agradecem
ao leitor
a luminosa fuga
do claustro

o nome gravado
esferograficamente
na ficha de leitura
que hoje descubro

a ele ofereço
dedico e consagro
        essa tarde
                 inverno
julho
1995

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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Anne Frank, 85 anos, para não esquecer

Jorge Adelar Finatto

Anne Frank. Fonte: Wikipédia
 
Anne Frank nasceu em 12 de junho de 1929 e hoje estaria completando 85 anos. Uma entre as inumeráveis vítimas do nazismo alemão, morreu de tifo entre o final de fevereiro e início de março de 1945, aos 15 anos, no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, depois de ter passado por Auschwitz (Polônia), onde sua mãe perdeu a vida. Os corpos de Anne e de sua irmã Margot foram jogados numa vala comum e nunca foram encontrados.
 
De 12 de junho de 1942 (quando completou 13 anos) até 1º de agosto de 1944, ela escreveu o seu famoso diário, publicado postumamente. Nele relata o dia-a-dia no Anexo Secreto de uma antiga casa, na beira de um canal, em Amsterdam, onde viveu escondida com sua família e outras 4 pessoas, entre 6 de julho de 1942 e 4 de agosto de 1944. Os afundados no esconderijo tentam desesperadamente escapar da perseguição movida contra os judeus.
 
Um delator, cujo nome até hoje não se sabe ou se sabe e não se divulga por razões obscuras, entregou-os aos agentes sanguinários de Hitler. O Diário de Anne Frank é um documento que todos deveriam conhecer. Para saber como foram aqueles dias. Para jamais esquecer.
 
Espero poder contar tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e ajuda.
(O Diário de Anne Frank, 12 de junho de 1942)*

Um domingo de outono em Amsterdam, fim de novembro, 2011. O vento corre sobre os telhados e canais, enquanto a garoa cai gelada. O fato de ser domingo, muito frio e úmido, não afasta as cerca de 200 pessoas que aguardam na fila para entrar na casa (hoje museu) onde viveu Anne Frank nos últimos dois anos de sua vida, antes de morrer no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha. Estou no fim da fila. Poucos minutos depois outra extensa fila se forma atrás de mim. São pessoas de todas as idades e nacionalidades.

Anne escreveu nesta casa o seu diário, no tempo em que aqui esteve mergulhada com a família no Anexo Secreto, durante a ocupação nazista da Holanda, na Segunda Guerra Mundial. Pelo fato de serem judeus, os Frank, como milhões de outros, foram implacavelmente perseguidos pelo nazismo alemão. Em 1933, haviam se mudado da Alemanha, seu país de origem, para Amsterdam, a fim de fugir do regime de Hitler.

Otto Frank construiu este refúgio na parte dos fundos do imóvel onde funcionava sua empresa, situada na rua Prinsengracht, 263, à beira de um canal. Fez isso prevendo o dia em que teriam de mergulhar (sumir) para não ser presos e assassinados. Em 6 de julho de 1942, trouxe a família para cá. O esconderijo foi chamado de Anexo Secreto.

Deixaram para trás o apartamento onde viviam ele, a esposa Edith e as duas filhas, Anne e Margot. Na parte da frente da casa continuou o negócio, comércio de alimentos, cuja propriedade Otto passou para o nome de outros (os judeus não podiam exercer atividade empresarial), embora, na prática, continuasse a dirigi-lo. Mais quatro pessoas juntaram-se a eles no anexo. Amigos fiéis se encarregaram de levar alimento e outros produtos ao grupo. Com o passar dos dias, tudo foi escasseando.
Diário de Anne Frank

Em 4 de agosto de 1944, o esconderijo foi denunciado (nunca se soube quem foi o delator ou se soube e não se divulgou). As oito pessoas foram presas, levadas para campos de concentração e todos, com exceção de Otto, morreram. Anne e sua irmã morreram de tifo no campo de Bergen-Belsen no fim de fevereiro ou em março de 1945, poucos dias antes da libertação deste campo. Foram enterradas em valas comuns como os outros.

Além das irmãs Frank, outras 28 mil pessoas perderam a vida no campo naquele período, em função da fome, do frio e das doenças. A maioria dos prisioneiros, nos últimos seis meses, era de mulheres. Edith morreu em Auschwitz-Birkenau. Otto sobreviveu a Auschwitz. Em 1947, publicou o diário de Anne, que havia sido encontrado na casa depois da invasão dos nazistas e da prisão dos oito. Anos mais tarde, o prédio transformou-se na Casa de Anne Frank, museu que guarda a memória daquelas vidas e daquele tempo terrível.
 
Autenticidade
 
Houve quem duvidasse e ainda duvide da autenticidade do diário. Argumentou-se que uma menina entre os 13 e os 15 anos não teria conhecimento nem maturidade suficientes para escrevê-lo com tal profundidade. Na apresentação do livro, informa-se que após a morte de Otto Frank, em 1980, aos 91 anos, os documentos (diário e outros papéis que o integram) foram entregues ao Instituto Estatal Holandês para Documentação de Guerra, em Amsterdam. Consta que o referido instituto mandou fazer uma profunda investigação a respeito, a qual concluiu por autênticos os documentos.

O texto passou, é certo, por revisões gramaticais, ortográficas e de estilo antes da publicação. Houve alguma seleção do que seria publicado, o que, em princípio, é natural: apenas uma parte do que se escreve se transforma depois em livro.

Realmente chama a atenção que uma pessoa tão jovem tenha escrito essas páginas. Todavia, cada indivíduo é um mundo e talentos há que se revelam muito cedo. Por outro lado, é sabido que o sofrimento acelera ferozmente o amadurecimento do ser humano, que em condições tais queima etapas e se vê obrigado a antecipar uma visão realista do mundo.

Sobre o diário manifestaram-se com admiração pessoas como o ex-presidente americano John F. Kennedy, o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela e o escritor italiano e ex-prisioneiro de Auschwitz Primo Levi.
O testemunho

Para mim, é praticamente impossível construir a vida sobre um alicerce de caos, sofrimento e morte. Vejo o mundo ser transformado aos poucos numa selva, ouço o trovão que se aproxima e que, um dia, irá nos destruir também, sinto o sofrimento de milhões. E, mesmo assim, quando olho para o céu, sinto de algum modo que tudo mudará para melhor, que a crueldade também terminará, que a paz e a tranquilidade voltarão. Enquanto isso, devo me agarrar aos meus ideais. Talvez chegue o dia em que eu possa realizá-los! (Diário, 15 de julho, 1944)

Páginas do diário. Fonte: Fundação Anne Frank
  
O relato de Anne Frank é, antes de tudo, vivo. Prende o leitor pela forma como é construído e pela matéria-prima com que trabalha. Anne conta como eram os dias no Anexo Secreto, as angústias, os conflitos, as perplexidades, tristezas, pequenas alegrias, esperanças e o medo sempre à espreita.

O texto surge como exercício de liberdade (a única possível naquelas condições) e resistência num ambiente absolutamente adverso. O confinamento de mais de dois anos num espaço pequeno, a convivência difícil de pessoas fragilizadas física e psiquicamente, o cerceamento da individualidade e dos sonhos, o desespero, a ausência de direitos elementares, tudo isso faz do diário um documento único.
 
O testemunho de Anne Frank conta uma história que deverá ser lembrada para sempre. Vale para todos nós. O nazismo continua atuante, seja através de organizações clandestinas, seja em coisas como o racismo e no ódio aos direitos humanos.

Existem ainda os que acreditam na superioridade de algumas raças, nações e culturas. Esse tipo de gente acha que os 'inferiores' precisam ser submetidos a qualquer custo e não economiza esforços nesse sentido.

Contra a barbárie aniquiladora do outro precisamos estar atentos e lutar.

A palavra de Anne Frank, no seu apelo à dignidade da vida em contraste com a brutalidade diabólica e insana do totalitarismo, nos ajuda a refletir e a nos posicionar. E, sobretudo, a não esquecer os crimes cometidos contra a humanidade.

__________________

*O Diário de Anne Frank, tradução do inglês para o português de Ivanir Alves Calado, Edições BestBolso, 11ª edição, Rio de Janeiro, 2010.

Fundação Anne Frank, Basel, Suíça
http://www.annefrank.ch/ 

Casa Museu Anne Frank, Amsterdam, Holanda
http://www.annefrank.org/en/
 
Texto atualizado, publicado antes em 16 de fevereiro, 2012.

Leia também:

Memórias de adolescência (depoimento de Nanette Konig, colega de Anne Frank):
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,memorias-de-adolescencia-imp-,749200

terça-feira, 10 de junho de 2014

O homem que roubou o sol

Jorge Adelar Finatto

pintura: Maria Machiavelli


Um homem de coração triste pode entristecer a vida de muita gente.
O sol está preso no sótão da casa do homem sem esperança.

Em uma manhã de infinita tristeza, ele ergueu os braços, apanhou o sol com as duas mãos, como se fosse uma laranja, e o levou para o trevoso lugar. Desde então, não mais o devolveu para a rua onde mora.
 
- Nunca, nunca mais vou soltar o sol -, disse a um grupo de meninos e meninas que foram até a frente de sua porta pedir a libertação do astro-rei.

- Ninguém mais vai ver a luz nem receber calor nessa rua.
 
À noite, os vizinhos observam a estranha claridade que escapa pela claraboia. Raios iridescentes giram entre si, perpassam o espaço e vão em direção ao vazio do universo.

Nenhum, no entanto, fica para iluminar aquele pequeno lugar mergulhado na sombra.
 
O homem triste tem uma pedra enorme, pesada e fria, no coração. Uma lápide com uma inscrição feita numa estranha, obscura língua que ninguém entende. Ele não consegue mais falar nem sentir.

O roubo do sol foi um ato de desespero, de revolta com coisas más que aconteceram na sua vida. Ao agir dessa maneira, privou a rua e seus habitantes de luz, calor e alegria.
 
É preciso trazer urgentemente de volta o homem triste para o convívio da rua, antes que tudo em volta dele congele, antes que os corações esfriem, antes que desapareça a vida daquele lugar.
 
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Pintura: Maria Machiavelli, artista plástica em Passo dos Ausentes.
Texto revisto, publicado antes em 12 de setembro, 2011.