terça-feira, 9 de dezembro de 2014

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Uma fada no front

Jorge Adelar Finatto

Rio Guaíba e Porto Alegre. photo: j.finatto

 
Mas também não avisam nada! Foi por acaso que eu notei: a primavera chegou. Olho pela janela e vejo um céu esbranquiçado e murcho. Na água cinzenta do rio arrasta-se uma chata de carvão. E um débil mormaço faz a cidade quase feia. Ah, mas não tem importância. Leio no cabeçalho do jornal: terça-feira, 26 de setembro de 1939. Assim, pois, a primavera chegou, e é de meu dever digirir-lhe as saudações de praxe.
                                                 Rubem Braga, Uma fada no front *

Esses dias falei sobre o livro O lavrador de Ipanema, seleção de crônicas de Rubem Braga (1913-1990), abordando seu amor à natureza e publicado em 2013, em primorosa edição. Agora pesquei na estante, no fim de semana que passou, para reler, Uma fada no front, antologia de crônicas que ele escreveu  no período de julho a outubro de 1939, quando viveu em Porto Alegre. Os textos foram escritos originalmente para o jornal Folha da Tarde.

A edição que tenho é a primeira, de 1994, e teve organização e introdução do jornalista gaúcho Carlos Reverbel, amigo do autor. Conforme conta Reverbel, Rubem Braga chegou a Porto Alegre viajando num vapor, como era costume naquela época. Ao descer no cais da cidade, foi preso juntamente com Reverbel, que o aguardava. A prisão ocorreu por ordem de Filinto Müller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas durante o regime ditatorial do Estado Novo (1937-1945).

Devido à intervenção do proprietário da Companhia Jornalística Caldas Júnior, Breno Caldas, junto ao interventor do Estado, Cordeiro de Farias, a ordem de prisão foi ignorada e ambos foram libertados passadas algumas horas. Breno Caldas contratou Rubem Braga para ser redator do Correio do Povo e para escrever uma crônica diária na Folha da Tarde. A primeira crônica foi publicada na edição de 11 de julho e a última, em 28 de outubro, num total de 91 textos. Desses, Reverbel selecionou 40 para Uma fada no front.

Interessante observar como o jovem Rubem Braga se parece com o velho no modo de escrever. É o mesmo escritor. O cronista tinha na ocasião apenas 26 anos, havia passado por algumas redações e publicado seu primeiro livro, O conde e o passarinho. Na altura já era um escritor no domínio do ofício. As mudanças de vida que vieram depois serviram para ampliar sua visão das coisas, tornando-o mais experiente. Mas o escritor de mérito já estava presente no jovem de 26. Não se tratava mais de uma promessa.

Também chama a atenção a facilidade com que o escritor se apropria em tão pouco tempo da vida de Porto Alegre, do jeito da cidade, seus habitantes, seu rio. Isto sem deixar de lado o que se passava no país e no mundo. Pelo contrário, estava atento a tudo. Na Folha escreveu sobre o início da 2ª Guerra Mundial tão logo eclodiu, com a invasão da Polônia pela Alemanha nazista em 1º de setembro de 1939. Infenso ao totalitarismo, dentro e fora do Brasil, repudiou o nazismo e tudo que representava. Sempre ou quase sempre judicioso nos juízos que fazia:

Deus encheu meu coração de um frio desprezo pelo nazismo e de um cálido amor pela Alemanha. (idem)

A Porto Alegre da época contava 400 mil almas. Uma cidade em que as pessoas ainda possuíam reservas de tempo, de bom humor e disposição para o convívio e o encontro. Um lugar onde os habitantes se cumprimentavam.

Nas crônicas porto-alegrenses de Rubem Braga, encontramos os bondes, a rua da Praia, uma figueira velha, manacás, bambus, jacarandás, Itapoã, Belém Velho, Petrópolis, Associação de Artes Plásticas Francisco Lisboa, o abandono dos índios guaranis, artistas e escritores locais como Carlos Scliar, Telmo Vergara e Erico Verissimo, entre outros temas. A obra trata com lucidez os problemas sociais e o indivíduo no meio deles.

O livro vale por isso e muito mais. É difícil não sentir empatia pelo escritor nascido em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, desde as primeiras linhas. Ele tem o dom de fundir a crônica diária de jornal com o mais intenso e despojado lirismo. Foi, ao lado de Alvaro Moreyra, o mestre da crônica literária no Brasil.

Voltemos à rua da Praia. Voltemos, que hoje é sábado e faz sol. A tarde vai ser linda. Eu, por mim, voltarei. Eu me plantarei no meio da rua, vagarei para cá e para lá. Vagarei triste e vagamente aflito, sem ganhar sorrisos, mas ao mesmo tempo satisfeito porque haverá sol e haverá mulheres lindas andando ao sol e essa coisa boba e simples me comove e me faz bem, muito mais bem que a música e os versos e qualquer outra coisa do mundo. (idem)
 
 A crônica de Rubem Braga convida o leitor a passear por seus aposentos interiores, suas alamedas e pátios. Mesmo quando o autor parece triste, suas palavras passam esperança e um desejo de que tudo dê certo. Nas páginas de Uma fada no front ninguém sai ileso de poesia.
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* Uma fada no front. Rubem Braga, 154 pp. Seleção e introdução de Carlos Reverbel. Iustrações de Joaquim da Fonseca. Editora Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1994. Os excertos são das páginas 87, 31, 112, respectivamente.

O lavrador de Ipanema:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/11/o-lavrador-de-ipanema.html 

sábado, 6 de dezembro de 2014

Mar azul em volta da casa

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
Quem disse que no alto da serra não tem mar? As hortênsias fizeram um mar azul em volta de casa. Começaram a chegar em novembro, foram ganhando corpo e forma.

Refinaram as cores e agora é isso que se vê. Estão grandes e ostentam mil nuances entre o claro azul e o roxo, sem esquecer o encanto da hortênsia cor-de-rosa.

A hortênsia é uma mulher da meia-idade, bonita e discreta, que faz sonhar quando passa com sua sombrinha na tarde de sol.

photo: j.finatto

O mundo em ruínas e eu aqui a falar de hortênsias, dirá, talvez, o raro leitor. Peço desculpa pela evasão. Mas eu não sei o que dizer diante de tanta barbaridade.

Não vou meter minha colher torta no caldeirão apenas pra mostrar que estou contrariado e envergonhado com o triste teatro humano. De fato, o espetáculo é de fazer chorar, começando pela Terra de Vera Cruz.
photo: j.finatto

Sou só um singelo cronista de cidade do interior que não consegue domesticar sequer os próprios fantasmas. Perdoai.
 
As cores da hortênsia mudam a cada dia, na medida em que a planta amadurece. O sol intenso não é bom para a delicada inflorescência. Como existem muitos plátanos no entorno da casa, eles formam como que um guarda-sol protetor.

photo: j.finatto
 
Uma insolação suave é tudo de que necessitam e gostam as hortênsias. São exuberantes sem ser vulgares. Guardam uma discrição que vem de seus ancestrais do Japão e da China.
 
Nunca as hortênsias floriram tanto como neste ano por estas bandas. Nunca o azul foi tão azul e tão vívidas suas variações.  
 
photo: j.finatto

A presença das hortênsias nos remete a uma espécie de paz rural que se traduz em conforto espiritual.
 
As hortênsias embelezam e dissipam as trevas do ambiente. É bom abrir as janelas e encontrá-las, é bom tê-las por perto e navegar pelo mar azul de suas ondas.
 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Porta aberta

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Leio que o mundo dos blogs está à beira do precipício. Um escritor que costumo ler escreveu que estava pensando em abandonar o seu blog por falta de leitores, achava melhor fazer outra coisa.

Faz tempo que ele não publica um texto novo e eu, como seu leitor, sinto falta. Há uma espécie de velório antecipado deste meio de comunicação, democrático por excelência.

Eu detesto velórios. Prefiro as salas de espera das maternidades.
 
Muitas pessoas que têm blog (a maioria, acredito) não dispõem de outra opção, isto é, não têm onde publicar seus textos nos meios impressos tradicionais.

Os blogueiros, com não muitas exceções, estão fora da era de Gutenberg, de onde foram expulsos pela falta de interessados em seus escritos. Faço parte deste time.

Acontece que tem gente escrevendo bem e fazendo boas coisas nesse "velho e moribundo" mundo dos blogs. Não estamos falando, portanto, de falta de páginas interessantes.

Eu vim para a blogosfera impelido pela oportunidade que a internet proporciona, fazendo do indivíduo seu próprio editor, independente de intermediários. Nenhum outro meio é tão instantâneo e livre.

Me acostumei ao novo modo de publicar, que além de tudo dispensa a derrubada de árvores para fazer papel e é extremamente acessível a todos em qualquer lugar do planeta.

Isso não significa que abandonei os livros de papel. Pelo contrário, cada vez amo mais os meus livros. Sou um fantasma do mundo de Gutenberg. Enquanto publico no blog, meu espírito vagueia por sebos e livrarias como alma penada.

Gosto de sentir a textura do papel entre os dedos, o cheiro inefável das folhas. Aprecio levar o livro aonde vou, sinto falta de tocar no objeto.

A minha biblioteca caseira está cheia e quase não tem mais espaço para novas aquisições. Os da família se entreolham toda vez que chego em casa com um novo volume. Devem se consolar, talvez, pensando: ao menos ele não tem outros vícios (que se saiba).

Os livros e a leitura são uma doce e vital cachaça. Como disse Drummond, no poema Explicação, todo mundo tem sua cachaça. Não sou avesso a novidades e estou pensando a sério em comprar um leitor eletrônico de livros.

Não sei se a era dos blogs está no fim. Mas uma coisa eu sei: leitores não vão deixar de existir. Onde houver bom conteúdo haverá leitores por perto.

Mesmo um blog primitivo como este, só de textos e fotografias, encontra alguns interessados. Então, enquanto houver alguém aí do outro lado, estarei por aqui com a porta aberta. 
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Texto publicado em 29/10/2013. 

O quarto alugado


 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Escritores desconhecidos

Jorge Adelar Finatto

Ana Luisa Escorel. photo de Mônica Imbuzeiro, O Globo
 
Um dos prazeres dessa vida interiorana é, aos domingos, ir até a estação rodoviária de Gramado buscar a Folha de São Paulo. Faço isso às vezes. Encomendo pelo telefone e, depois, pego a Destemida e me vou pela estrada até a cidade do famoso festival de cinema serrano. O que a gente não faz por um jornal...
 
Tem suas compensações. Por exemplo, o caderno Ilustrada desse domingo (30/11/2014) trouxe uma interessante matéria de capa, intitulada Ilustre desconhecida. A reportagem informa que a escritora Ana Luisa Escorel, de 70 anos, venceu, no início de novembro, o Prêmio São Paulo de Literatura com seu romance Anel de Vidro.
 
A premiação, a mais importante em remuneração do Brasil (R$ 200 mil), deixou atônito, segundo a matéria, o meio literário. Ou, pelo menos, alguns críticos e escritores que desconheciam a obra ficcional da autora, resumida a dois romances, ambos publicados pela Editora Ouro sobre Azul, por ela fundada, em 2004, e dirigida. O primeiro livro foi O Pai, a Mãe e a Filha, quando contava 68 anos.
 
Ana Luisa é designer formada pela Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro. Declarou ela à repórter Gabriela Sá Pessoa que não se considera "escritora profissional" e que nunca fez parte do meio literário, situando-se nele como uma "outsider" (estranha).

A romancista é filha de Antonio Candido, 96 anos, um dos mais lúcidos intelectuais brasileiros, considerado fundador da crítica literária nacional, e de Gilda de Mello e Souza (1919-2005), ensaísta, filósofa  e influente professora de estética da Universidade de São Paulo. Por parte da mãe, Ana Luisa é prima do escritor Mário de Andrade. E é casada com o cineasta Eduardo Escorel.
 
O que chama a atenção no percurso da autora, a meu ver, é o que representa em termos de estímulo a todos aqueles que, não obstante escrevam com esmero, vivem no anonimato. Principalmente os que têm idade mais avançada.
 
Pessoas que escrevem com dedicação e qualidade e que têm raros leitores, às vezes nenhum, além da família e de alguns amigos. Ana Luisa é exemplo de escritora que faz seu trabalho sem a urgência do reconhecimento imediato, e isto é alentador num tempo em que a maioria busca sofregamente às luzes da ribalta.

A boa literatura, na verdade, independe da idade do escritor. A permanência de uma obra transcende a biografia do criador. O texto vale por si.
 
Há vários outros escritores importantes que surgiram aos olhos do público leitor no tardio da vida. A grande poeta Cora Coralina (1889-1985) publicou, pela primeira vez, aos 76 anos, em 1965. Foi quando veio à luz o livro  Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, uma obra-prima. Desenvolveu notável atividade literária, silenciosa na maior parte do tempo. Disse ela:
 
Mais fácil, para mim, escrever um livro do que publicá-lo.*
 
Ana Luisa Escorel, de quem eu nunca li nada nem ouvi falar, surge no tempo certo, no seu tempo, com a credencial da persistência, da paciência, da humildade, do trabalho silencioso e fecundo. Com sabedoria, afirmou à jornalista da Folha:
 
Quando falo que sou tardia é para incentivar quem também seja.
 
Na próxima ida à livraria, claro,vou atrás de Anel de Vidro, sem mais perda de tempo.
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*Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 4ª edição. Cora Coralina. Global Editora, São Paulo, 1983, pág. 35.
 

domingo, 30 de novembro de 2014

O raio perfumado

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
De como Claudionor, o Anacoreta, emigrou para o planeta FAJ 376, na constelação de Rio Erídano, a 35 milhões de anos-luz. O embarque na nave interestelar em plena Praça da Ausência, sob o olhar incrédulo dos 495 habitantes da cidade. Onde se conta como o fantasma do poeta Rainer Maria Rilke, em suas aparições noturnas na Biblioteca Pública Municipal de Passo dos Ausentes, foi o causador da grande viagem e se dão a conhecer outros eventos.
 
Faz 10 anos que Claudionor, o Anacoreta, afastou-se do mundo. Foi viver em solidão numa caverna do Contraforte dos Capuchinhos. Faz 10 anos que Mocita de La Vega ficou só e não teve mais ninguém depois que ele se foi.

Claudionor  tornou-se um místico conhecido e respeitado em toda a região. Vive em estado de contemplação desde a desilusão amorosa,  aos 20 anos.
 
Eles jamais revelaram o que motivou o rompimento. Foram inseparáveis desde a infância até o fatídico dia em que Claudionor surpreendeu Mocita nos braços do fantasma do poeta Rainer Maria Rilke, na Biblioteca Pública de Passo dos Ausentes, onde ela é bibliotecária.

A paixão literária transfigurou-se entre a jovem guardiã de livros e o bardo. Aparições freqüentes de Rilke na Biblioteca afetaram o coração de Mocita, apaixonada pela obra do poeta, em especial pelas Elegias de Duíno, as quais sabia de cor. O volátil não resistiu aos cabelos negros, à pele alva como o luar e à sensibilidade da bibliotecária que traz no corpo os contornos de um violão.

Claudionor sentiu-se desmoronar depois do que viu - segundo dizem as línguas ferinas. Despediu-se da mãe, a costureira Helena dos Santos Leaens e Bragança, numa cinzenta manhã de julho de 2004. Disse que ia procurar mudas de jasmim na mata, a principal paixão de sua vida depois de Mocita. Nunca mais voltou.

Um ano ficou sumido. Nada menos do que cinco expedições saíram à sua procura. Rastrearam-no pelas matas e até mesmo no fundo de abismos. Concluíram que ele tinha se atirado num dos muitos penhascos que cercam os Campos de Cima do Esquecimento. O corpo fora devorado por onça ou leão-baio, feras que ainda habitam a profundeza da Mata Atlântica.

Isto foi assim até o dia em que o pombo-correio dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer trouxe à cidade um bilhete do superior da ordem informando que Claudionor estava vivo. Vivia em reclusão numa caverna não distante do mosteiro. No informe especificou as cooordenadas do lugar onde o místico se encontrava, "vivendo uma vida nova, voltada ao silêncio e ao encontro com Deus e os Anjos, nas altas esferas do reino espiritual".

A caverna de Claudionor situa-se no alto de uma chapada no Contraforte dos Capuchinhos, a 2 mil metros de altitude. De lá, olhando-se para leste, tem-se a visão azul e distante do Oceano Atlântico. Flores silvestres margeiam o caminho de pedras e grama que vai dar na porta da austera habitação.

A barba espessa e a cabeleira negra sobre a túnica branca escondem o homem ainda moço.
 
Em julho de 2014, outra mensagem de Dom Eleutério, o Benigno, foi entregue pelo pombo-correio na Sociedade Histórica, Geográfica, Literária, Artística, Astronômica, Antropológica, Esportiva, Recreativa, Geológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes, aos cuidados de seu presidente, o filósofo Don Sigofredo de Alcantis.

Enquanto Don Sigofredo comentava o conteúdo da mensagem com Mocita, secretária da sociedade, um fato estranho se passou nos céus da cidade.

Um objeto em forma de bola, achatado nos polos, com cerca de 20 metros de diâmetro por 10 de altura, surgiu do nada e cruzou lentamente o espaço aéreo de Passo dos Ausentes. Movia-se sem qualquer ruído. Depois de sobrevoar o casario e a igreja, parou sobre a Praça da Ausência, a 30 metros do chão. Era uma tarde fria de céu claro, às 4h em ponto. Muitas pessoas foram até a praça ver o que se passava.
 
A nave tinha cor azul-clara. Uma luz branca e gelada pulsava no interior. Possuía seis escotilhas distribuídas circularmente na parte superior. Uma espécie de tubo de alumínio projetou-se até o centro da praça, ao lado do chafariz. Alguém começou a descer por ele num estreito elevador. Era um homem vestindo macacão preto com um distintivo cor de prata no lado esquerdo do peito. Havia no símbolo coisas escritas em caracteres indecifráveis.

Saiu do tubo e disse que queria falar com a autoridade local. Imediatamente buscaram Don Sigofredo. O filósofo aproximou-se levemente arqueado, com a bengala, o terno preto, cabelo e cavanhaque brancos e bigode torcido para cima nas extremidades.

- Boa-tarde, a que devemos a honra da visita - disse Don Sigofredo ao viajante do espaço, com ar de quem já vira coisas suficientes nos Campos de Cima do Esquecimento e não se deixava mais impressionar.

O alienígena retirou os óculos muito grandes. Só então se percebeu que seus olhos eram enormes, do tamanho de uma bola de tênis, e a testa muito maior que a humana.

- Desculpe-nos chegar dessa maneira, sem aviso. Recebemos a missão de vir a este lugar buscar um dos seus que pretende conhecer a nossa civilização. Somos do planeta FAJ 376, da constelação Rio Erídano, interior da galáxia espiral NGC 1637, a 35 milhões de anos-luz do seu planeta.

- Ora bem. Quem é a pessoa que quer nos deixar para ir tão longe, poderia nos dizer?

- Sou eu, Don Sigofredo - disse uma voz na entrada na praça. Era Claudionor, o Anacoreta, que trazia o alforje ao ombro, a longa túnica branca com botões brancos abotoados até o pescoço.

- Fiz contato com esta civilização após anos de meditação. Conversamos com o pensamento. Depois do primeiro contato, Palomar Boavista me ajudou com seu telescópio a localizar no céu a espiral NGC 1637. Eles me convidaram para uma viagem. Vou mas pretendo retornar um dia.

- Que maluquice é essa, menino, sair por aí assim?- interpelou aflito Don Sigofredo. E sua velha mãe, e nós? 

- Não vá, Claudionor - disse uma mulher que se aproximou ofegante entre as magnólias. Era Mocita.

- Claudionor, por favor, não - continuou ela. Temos muito que conversar. Não quero mais viver longe de ti. Queria ir dizer isso lá na tua caverna. Eu sei que faz muito tempo. Mas isso assim não é vida. Quanto tempo perdido, quanta vida morta por nada! - exclamou, enquanto lágrimas escorriam dos seus olhos.

- Peço perdão a todos, mas tenho de partir. Faz parte de um projeto espiritual. Quero conhecer esta civilização que é muito desenvolvida. Vou te levar no coração, Mocita. Nunca te esqueci.  Peço que olhem por minha mãe enquanto estiver fora.

- Senhores, temos que ir - disse o viajante do espaço. São 35 milhões de anos-luz!

- Não vá, Claudionor. Não desista de nós - insistiu Don Sigofredo.

O visitante olhou para Claudionor e ambos entraram no tudo, que se fechou e retornou com ambos à nave. De uma escotilha, Claudionor acenou lá de cima.

A nave distanciou-se um pouco e, em seguida, transformou-se numa grande centelha dourada que disparou pelo céu e desapareceu.

Alguns meses depois, o pombo-correio dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer trouxe um recado de Dom Eleutério. Dizia que recebera uma mensagem de Claudionor informando que estava bem no novo lugar. Um mundo diferente. Mas nem tanto.

- Não era bem o que ele esperava, pois lá também há extratos sociais, inclusive com privilégios de classe.  Apesar de tudo está aprendendo e é bem tratado. Pretende, sim, voltar a Passo dos Ausentes, mais cedo do que se imagina. Anunciou, por fim, que no dia 6 de julho de 2014, às 21h, enviará um sinal até nós pelo cosmos.

No dia marcado, ou melhor, naquela noite, nos reunimos no jardim das camélias da Sociedade Histórica à espera do sinal. Na hora designada, um longo fio de luz amarela projetou-se desde o infinito em direção a Passo dos Ausentes.

O raio luminoso passou sobre a cidade clareando tudo e retornou ao desconhecido de onde viera, desfazendo-se em segundos.

Um suavíssimo aroma de jasmim ficou no ar por alguns minutos.

Então tivemos certeza de que Claudionor voltará um dia.  
 

ilustração: Maria Machiavelli