sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

La dulzura puede cambiar el mundo

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto


A frase me chamou a atenção enquanto tomava um café no Café Brasilero em Montevideo. Em tempos de radicalismos como os que vivemos, de todos os lados, ler algo assim alivia a alma.

Sim, a doçura pode mudar o mundo. Um pouco de açúcar nas relações, em todas as relações, faria muito bem ao planeta. Salvaria muitas vidas, despertaria os corações para a amizade, para o encontro, para a tolerância e o respeito.

Ninguém tem a verdade toda a seu lado. É preciso colocar-se no lugar do outro, é preciso tentar enxergar e entender suas razões e até suas sem-razões.

Para os que reivindicam direitos absolutos, em qualquer atividade ou situação da vida, vale lembrar que a liberdade e a democracia só se sustentam quando existem limites. Todo direito encontra limitação em outro direito. Sem limites, de uns e de outros, não há vida possível em sociedade. 

A propósito disso, em muito boa hora o filme argentino Relatos Selvagens, que tem o extraordinário Ricardo Darín como um dos atores, foi indicado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. São relatos que tratam justamente da falta de limites no comportamento das pessoas e das terríveis conseqüências que podem resultar.

Eduardo Galeano, em photos no Café

A frase do título está escrita nas embalagens de açúcar da marca uruguaia Azucarlito, que acompanham o cafezinho. Raras vezes um slogan foi tão feliz. Lê-lo, nestes tempos revoltos, é motivo de esperança.

O Café Brasilero fica na Calle Ituzaingó, 1447, na Ciudad Vieja. Foi fundado em 1877 e é patrimônio cultural de Montevideo. Freqüentado por escritores, artistas e poetas, recebe também estudantes e turistas. Entre os freqüentadores históricos, Eduardo Galeano e Mario Benedetti (já falecidos, infelizmente). O atendimento é atencioso e o lugar merece uma visita.

Interior do Café

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Azucarlito - Galeria:
 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

El pajarito triste

Jorge Adelar Finatto

Visão do Rio da Prata. Montevideo. photo: jfinatto, 14/01/2015
 
- Eu necessito desesperadamente de um amigo. Não quero alguém que me julgue, por favor.  As verdades, sobretudo as mais duras e profundas, não me interessam neste momento. Não quero um juiz nem um psiquiatra. Preciso de um amigo.
 
Um passarinho no galho de um plátano, aqui em Montevideo, me disse essas coisas. Eu caminhava pela Ciudad Vieja, hoje à tarde, quando ele me chamou. Sentei no banco da Plaza Constitución para escutá-lo. O passarinho triste tinha o cabelo espetado como os pássaros de sua idade, mas não andava com o bando.

Plaza Constitución. photo: jfinatto
 
Era um pássaro poeta e me falou de sua solidão. Eu não sou pássaro, mas compreendi perfeitamente o que dizia. Fiquei com dó do bichinho. Mas o que eu podia fazer? Sou um estrangeiro na cidade, conheço pouco o lugar, não tenho amigos aqui, estou só de passagem.

- Converse comigo, ele disse. Fazia um tempo agradável, a brisa corria na praça e na Peatonal Sarandí.

- Sinto falta de um amigo pra conversar coisas corriqueiras, do dia a dia, banalidades ou coisas sérias, não importa. Conversar sem medo, até tarde, até as cinco da manhã, você compreende? Como aquelas conversas de gente que não se vê há muito tempo.

- Qualquer coisa, nada misterioso, num café qualquer. Só ir pra casa dormir quando o sol espalhar o leque com os primeiros raios alaranjados sobre o Rio da Prata. Um amigo sem hora pra ir embora.

Antes que eu dissesse alguma coisa, ele saiu voando entre as árvores e desapareceu na tarde montevideana.

Enquanto estiver aqui, conte comigo, pajarito. Vamos montevidear pelas calles do Conde de Lautréamont, Mario Benedetti e Eduardo Galeano.
 

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O barco mais triste do mundo

Jorge Adelar Finatto

photo antiga de Coimbra e do Mondego*

A minha paixão por barcos e navegações sempre me leva a cidades de mar ou rio. Sou um bicho das águas.

O fato de ter nascido e de viver numa cidade serrana é apenas uma das contradições que me definem.

O sonho menino de ser marinheiro jamais me abandonou. Contudo, nunca vesti a farda azul-marinho ou branca. Em contrapartida, conheço o suspiro das cordas que seguram os navios no cais.

A nostalgia das velas enfunadas não sai do meu coração.

Em Coimbra, existe um barco de passageiros com o nome de Basófias, fundeado no pequeno cais, perto do centro da antiga cidade portuguesa.

Resolvi um dia ir ao encontro do Basófias e fazer um passeio pelo Mondego, o rio que me faz sentir saudades de todos os rios do mundo.
Ocorre que, nas três ocasiões em que fui ao cais, não consegui realizar a navegação.

Numa das vezes, o barco estava em manutenção; noutra, não havia passageiros além de mim; numa outra ainda, o tempo mau do inverno não permitiu levantar âncora.

Em suma, nunca consegui viajar pelo Mondego no Basófias. A nave permaneceu, no meu imaginário, como um barco que jamais sai do cais.
 
A tripulação do Basófias é composta por marinheiros uniformizados a rigor, afáveis no trato. A pose e o orgulho náuticos não deixam dúvida de que estamos diante de calejados navegadores.

Às vezes, fico recordando as minhas tentativas vãs.

O Basófias, nas amarras que o impedem de lançar-se ao rio e cumprir o destino para o qual nasceu, é o barco mais triste do mundo.
 
De certa forma, o Basófias da minha lembrança é a metáfora da existência de muitos. Por isso, dele me enterneço.

Porque é o retrato de tantas vidas que ficam à margem, esperando no cais, esperando uma viagem que nunca acontecerá.
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Texto revisto, publicado antes em 03 de março, 2010.
* O crédito da imagem será dado tão logo informada a autoria
 

domingo, 11 de janeiro de 2015

Nelson Jungbluth

Jorge Adelar Finatto
 
Rendeira, 1981. Hotel Laje de Pedra. N.Jungbluth. photo: jfinatto

Convivi menos do que gostaria com o artista plástico Nelson Jungbluth (1921-2008). Os primeiros contatos foram para convidá-lo a fazer a capa do Caderno de Literatura nº 15, da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, em 2007. O tema daquele número foi O Brasil que veio da África. A capa, assim como toda a revista, ficou uma beleza.

detalhe Rendeira
 
Devo ter ido à casa do artista umas três, talvez quatro vezes. Falamos ao telefone em outras ocasiões. O último encontro foi num jantar, em Porto Alegre, com a escritora Helena Jobim, irmã do maestro Tom Jobim, para o qual o convidei.

Vendedor de peixes, 1981. Hotel L.de Pedra. N.Jungbluth. photo: jfinatto
 
Apesar do pouco tempo que durou nossa relação, sentia-me como se já o conhecesse há muito. Havia histórias, muito talento, generosidade e simplicidade no seu ateliê, no subsolo de sua casa. Era muito bom conversar com o Nelson, principalmente ouvi-lo. Ele tinha muita energia e entusiasmo pela vida e pelo trabalho.
 
Trabalhou com grande sucesso na publicidade (entre outras coisas, criou a Rosa-dos-ventos como símbolo da Varig, sendo responsável também pela identidade visual da empresa desde que nela entrou em 1946).

Um dia resolveu abandonar tudo para dedicar-se somente a sua arte. Foi um bem para arte.

Moça com cerâmicas, 1981. Hotel L. de Pedra. photo: jfinatto
 
A obra que construiu é original e vigorosa. É fácil identificar seu traço, nas formas, temas e cores vivas de suas pinturas.

A figura do gaúcho, nas suas mãos, ganhou encanto.
 
Tomando café da tarde no Hotel Laje de Pedra, o que faço com certa freqüência, essas recordações me vieram ao reencontrar alguns dos quadros de Nelson na parede. Há vários. Estão ali há muitos anos e não me canso de admirá-los. Fiz as fotos para ilustrar essas breves memórias e homenagear o amigo. 
 
detalhe Vendedor de peixes
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photos tiradas em 10/01/2015


sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O coração da noite

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 

A noite é breve. Não tenhas medo.

A noite tem pele trevosa e entra por tudo.

Há quem pense que é longa, misteriosa e sinistra.

Mas calma, a escuridão não se demora nos teus olhos, no portão, nas gavetas, nos espelhos, nas portas e nos retratos.

A noite passa. Não penses na morte.

Quem habitou a noite sabe que ela dura um suspiro.

Por isso, não tenhas receio nem te desesperes com a ausência provisória de luz.

A noite é apenas o descanso das seivas.

Só a noite dos loucos e dos moribundos não tem fim. É povoada de angústia, tristeza, dolorosa espera.

Em breve virá o amanhecer como nunca.

Quem vai apagar o breu profundo nos corações?

A pior escuridão é a que vem da alma.
 

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Os caminhos do amor

Jorge Adelar Finatto
 
Angela Gheorghiu
 
Esses dias Juan Niebla, o tocador de bandoneón da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes, relembrou como ganhou seu primeiro instrumento.* Foi numa viagem a Buenos Aires acompanhando Alberta de Montecalvino, a Senhora da Biblioteca.
A convite dela, que recém entrara na viuvez, Niebla enfrentou uma viagem de oito dias de trem até a capital argentina. Isso foi em 1956. Uma dama não podia, naqueles quandos, fazer viagem tão longa pelas terras do fim do mundo sozinha.
O velho músico disse que o motivo da viagem foi um encontro com o escritor cego Jorge De La Brume com quem Alberta trocava cartas havia três anos. Ele queria muito conhecê-la pessoalmente, mas a cegueira o impedia de vir a Passo dos Ausentes. Ele então a convidou para um encontro na capital argentina e ela, mulher independente, sensível, o coração pulsante de viúva fresca e jovem, não hesitou em ir ao seu encontro.
De La Brume morava com a mãe. A velha senhora recebeu os visitantes com fidalguia. Entre o escritor e  Niebla estabeleceu-se de imediato afinidade, e não só pelo fato de ambos serem privados de visão.

Havia entre eles crepúsculos, versos de Homero, cidades medievais, o temor do Finisterra, alamedas da memória a percorrer juntos. A tal ponto que o escritor presenteou o músico cego de Passo dos Ausentes com seu bandoneón de estimação, que habitava entre os livros na biblioteca.
 
Na tarde daquele dia memorável de inverno (julho), Juan Niebla tocou para De La Brume, sua mãe e Alberta Les Chemins de L’amour, do francês Francis Poulenc (1899-1963), valsa composta em 1940. Alberta contou que viu lágrimas caindo dos olhos fixos do escritor.
Impressionado com a história, prometi a Juan que procuraria o que tinha de melhor na interpretação da vieille valse. E foi nesse caminho que descobri a diva romena – nesse caso o epíteto tem toda razão de ser – Angela Gheorghiu, cantora lírica. Ela é sublime. Parece um anjo cantando.

Um anjo que veio para a Terra fazer a humanidade esquecer suas dores enquanto canta.
 
Juan Niebla e eu nos reunimos uma vez por mês desde então, no silêncio do escritório, para ouvir os discos de Gheorghiu. Além de boa cantora, ela é um mulherão. Dessas que derrubam um exército só com o olhar. Felizes nós que a descobrimos.
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Angela Gheorghiu canta Les Chemins de L’amour, de Francis Poulenc:
https://www.youtube.com/watch?v=Bo98WClIiG0 

domingo, 4 de janeiro de 2015

Os Conjurados

Jorge Adelar Finatto

Borges em photo de Diane Arbus
 

On his blindness
 
Ao fim dos anos me rodeia
uma insistente neblina de luz
que as coisas a uma coisa reduz
sem forma nem cor. Quase a uma idéia.
A vasta noite elemental e o dia
cheio de gente são essa neblina
de luz duvidosa e fiel que não declina
e que espreita no amanhecer. Eu queria
ver uma face alguma vez. Ignoro
a inexplorada enciclopédia, o prazer
de livros em minha mão, reconhecer
as altas aves e as luas de ouro.
Aos outros resta o universo;
à minha penumbra, o hábito do verso.
                                                       J.L. Borges¹
 
Um dos últimos grandes escritores a habitar o planeta, Jorge Luis Borges (1899-1986) nos deixou este belo livro antes de morrer na Suíça, em Genebra, aos 86 anos. Os Conjurados é uma espécie de testamento poético-existencial do grande autor argentino. Composto de breves textos, alguns em forma de poema e outros em prosa poética, foi a sua última obra, publicada em 1985.
 
Hoje, infelizmente, não temos muitos autores da dimensão de Borges. Resta, talvez, uma meia dúzia, se tanto, desse nível. O que se vê, em tempos de vaidade globalizada, são performers e pseudoescritores colocando balaios de livros nas livrarias do mundo inteiro todos os dias, buscando vorazmente as luzes dos meios de comunicação, a fama instantânea, o dinheiro. O recolhimento silencioso ao trabalho é exceção.

Está cada vez mais difícil encontrar um ser humano que não tenha publicado ao menos um livro na vida... E que obras lamentáveis colocam-se nas estantes e quantas florestas derrubam-se para editá-las... Aliás, eu não me excluo da malta, pois já andei publicando algumas coisas também...
 
Borges está sepultado no cemitério de Plainpalais, em Genebra. Segundo alguns, o enterro naquela cidade se deu por decisão unilateral de María Kodama, secretária do escritor durante muitos anos, que com ele se casou dois meses antes da morte. Para esses, Borges queria ser enterrado no histórico Cemitério da Recoleta em Buenos Aires.²

Mas eu não quero falar de intrigas envolvendo a senhora Kodama. Prefiro recordar aquele dia em que comprei, na estação rodoviária de Porto Alegre, esse pequeno livro de valor extraordinário. Foi numa banca de jornais e revistas que o encontrei, eu tinha acabado de chegar de uns dias no meio do mato, numa casinha à beira de um riacho, com cheiro de flor de laranjeira à volta.

Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdições, agora, são o que é meu. (...) Não há outros paraísos a não ser os paraísos perdidos.
                                                                 J.L.Borges ³

Isso foi em janeiro de 1986. O livro veio junto com a edição  recém-lançada da revista Status, da Editora Três. Provavelmente seria a edição do mês de dezembro e vinha com o aviso: Não pode ser vendido separadamente. Trata-se de edição histórica, bilíngüe, publicada no mesmo ano em que a obra foi lançada na Espanha pela  editora Alianza Tres. A tradução, que parece muito boa, é do jornalista Pepe Escobar, que afirma na contracapa:

Em sua última coletânea de poemas, o último sábio sobre a Terra continua fiel a suas pátrias - Shakespeare, a névoa da cegueira, espadas, reflexos, labirintos, espelhos, Genebra. Mas o habitante principal desses versos tecidos na penumbra é sem dúvida a morte (...)

Borges é um acontecimento muito antigo na minha vida. Encontro nele a felicidade do escrever, e a melancolia também, e o desespero discreto da cegueira, e a sabedoria acumulada de outras épocas, de outras vidas talvez, vividas essencialmente através dos livros que leu e das histórias que resgatou do oblívio em conversas pelo mundo afora. Era um conversador interessado, gentil, não raro alegre.


Os Conjurados foi um dos nossos encontros, quem sabe o mais luminoso. Senti vontade de reler o mestre (que nunca se apresentou como tal) nesses dias em Porto Alegre e fui até a estante. O primeiro livro dele que pesquei foi justamente Os Conjurados.

A entrega de Borges nesses textos é total. Identificamos em cada um não apenas o escritor senhor de seu ofício, construindo magia com as palavras, mas um ser humano se revelando.

Os Conjurados é como uma despedida, um solo de violoncelo no fim da tarde, um adeus amoroso a todos os que ficam e, principalmente, a celebração da vida pela comunicação escrita. Retornar ao livro e reencontrar nele, tanto tempo depois, a maravilha é uma grata emoção. Recomendo de coração.

Não há poeta, por medíocre que seja, que não tenha escrito o melhor verso da literatura, mas também os mais infelizes. A beleza não é privilégio de uns quantos nomes ilustres. Seria muito raro que este livro, que abarca umas quarenta composições, não entesourasse uma só linha secreta, digna de acompanhar-te até o fim.  
                                                                   J.L.Borges 4
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¹Os Conjurados, Jorge Luis Borges, p.59. Tradução de Pepe Escobar. Editora Três,  São Paulo, 104 pp., 1985.
²Blog de Ariel Palacios:
³idem a 1, p. 63.
4idem a 1, p. 9.
Veja também: Borges e a névoa do tempo:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/jorge-luis-borges-e-nevoa-do-tempo.html