domingo, 21 de julho de 2019

Charla de Montevideo

Jorge Finatto
 
grafite. Montevideo. o nome do autor será registrado tão logo informado ao blog.
photo: jfinatto


MONTEVIDEO, a cidade do Conde de Lautréamont, do doce de leite, do churrasco, do indefectível mate, de Juan Carlos Onetti, Juan José Morosoli, Galeano e Benedetti, do Teatro Solís, do vinho Tannat, de Nacional e Peñarol, de Torres García. Da Rádio Babel, do Café Brasilero, da gentileza no trato cotidiano, de todas as crianças na escola.
 
Mas é, sobretudo para nós brasileiros, a cidade onde se pode caminhar pelas ruas sem o risco iminente do balaço na cabeça, da facada, do seqüestro, do assalto,  do atropelamento, do estupro. Enfim, um outro planeta pra quem vive no Brasil.

Ostentação, luxo? Nada. As pessoas vivem com a dignidade de quem tem o indispensável. O treinador da seleção nacional de futebol, Óscar Tabárez, 72 anos, é professor de escola pública. Ouvi-lo falar nas entrevistas é uma aula de educação e civilidade. Para ele, antes de ser jogador é preciso ser um bom ser humano. Só convoca atletas que tenham valores éticos. Tão diferente de outros treinadores... Por aí também se explica um país.

Um país como o Uruguai que tem qualidade de vida e cujo governo se preocupa com as pessoas. Não é um paraíso. Mas é um lugar muito mais humano do que outros bem perto daqui, e de longe também. O Uruguai é exceção num mundo profundamente conturbado. Não apenas por coisas como a legalização do aborto e do consumo (regulamentado) de maconha, mas pela implementação de direitos sociais. Conversando com gente na rua e nos táxis, sabe-se que o direito à saúde é uma realidade.

Alguém dirá que o fato de ter uma população pequena (3,5 milhões de habitantes, sendo 1,5 milhão em Montevideo) torna o bem-estar social uma obrigação fácil para o governo. Não é assim. Só a continuidade de gestões sérias e comprometidas com avanços alcança tais resultados. É bom ver isso de perto, confirmando a impressão que tive em outras viagens. A constatação de que um estado social e democrático é possível na América do Sul. O Uruguai é exemplo.

obra do grande artista plástico Torres García. Museu Torres García. Montevideo.
photo: j.finatto
  

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Os últimos mistérios do mundo II

Filipe Penaverde

photo: jorge finatto

 
Reescrituras

Se Jorge Luis Borges reescrevia seus textos (quase sempre o fazia), por que um pobre bardo de arrabalde, em que se misturam Dante e Cabrelino da Montanha, não poderia/deveria fazê-lo para o bem de seus valorosos leitores?

Extremos 

Se há, como dizem, um renascimento da extrema direita, aqui e alhures, é porque a extrema esquerda revelou-se, no poder, inoperante e obsequiosa com a corrupção. Não existem santos nessas igrejas. Só fiéis esperando uma salvação que nunca vem.

Como se muda o mundo, sem mudar antes o coração e as próprias atitudes?

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Um alquimista João

Jorge Finatto
 
João Gilberto. photo: Tuca Vieira, São Paulo 2006.
Wikipédia.
 
 
JOÃO GILBERTO foi um artista raro. A afirmação é clichê, mas um clichê incontornável. Uma notável exceção no mundo da música. Não só pelo talento como pelo comportamento discreto, avesso a badalações, holofotes, polêmicas. Recluso, concentrado no trabalho,  guardava com esmero sua vida privada, fugindo da celebridade.
 
Um criador que deu nova dimensão à música. Com ele o samba ganhou uma graça diferente, com doses inusitadas de silêncio. Saboreava cada palavra, cada acorde. Nada de gritaria. Um dos criadores da Bossa Nova, a música brasileira que o mundo mais conhece.
 
O canto suave, quase um sussurro. O toque personalíssimo ao violão. Tratava o instrumento com a dignidade de um concertista. Com João o violão brasileiro ganha uma nova sensibilidade, conquista outras esferas, à semelhança do que acontece com Villa-Lobos. Cada qual no seu jeito e no seu quadrado.
 
Causava estranhamento ver aquele homem sério, um senhor de terno e gravata, executando peças de música popular, soberbo maestro de si mesmo.
 
Não tolerava gente barulhenta e pouco educada na plateia. Passava pitos quando o ambiente não estava à altura de sua arte. Reclamava do som ruim, do ar-condicionado que desafina instrumentos. Temperamento difícil, obsessivo, nisso parecido com outros gênios.
 
Quando tocava e cantava, João era inventor de harmonias, desbravador de caminhos sonoros, de mundos. Um alquimista no universo da música. O mais rude metal se transforma em finíssimo ouro em sua voz, em suas mãos. 
 
Com os filhos adolescentes Clara e Lorenzo, fui assisti-lo no Teatro do Sesi, em Porto Alegre, no ano 2001. Generoso, prolongou o show muito além do previsto, atendeu pedidos, conversou. Sentiu cheiro de fumaça de cigarro que vinha da parte anterior do palco, indignou-se. O fumante, que permaneceu invisível, tratou de apagar o cigarro e, com o ar limpo, João continuou.
 
Ele lembrou do Guaíba, do pôr do sol de Porto Alegre, da professora Boneca Regina que o tratou como um filhou nas várias vezes em que esteve em sua casa durante os encontros de arte que ela promovia com sua família e amigos. Era 1955, ele contava 24 anos e estava passando uma temporada em Porto Alegre. Morou oito meses no Hotel Majestic, na Rua da Praia, o mesmo onde viveu Mario Quintana, que ele admirava. O antigo hotel é hoje a Casa de Cultura Mario Quintana. 
 
João Gilberto construiu uma obra original, alcançando efeitos incríveis com mínimos recursos. Tal despojamento e excelência só os grandes conseguem. A aparente simplicidade de sua voz e seu violão esconde uma oficina incansável, rigorosa, persistente, como poucas vezes se viu.
 
Morreu João faz poucos dias, em 6 de julho, aos 88 anos, em sua casa no Rio de Janeiro. Retirou-se do palco da vida. A luz do astro apagou-se. Mas há muito ele já era eterno em nossos corações. 

 

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Os fundamentalistas

Jorge Finatto

Panos quentes no frio zero grau de Canela.
photo: jfinatto
 
 
TENHO MEDO de quem nunca duvida das próprias certezas. A rigidez de pensamento tem motivado a grande desolação em que vivemos. Questionar-se sobre o modo de ser e de fazer as coisas, repensar a vida, olhar o outro, é exercício de civilidade cada vez mais raro.

O fundamentalismo, seja laico, religioso ou político, não torna as pessoas mais felizes e nem melhores. Pelo contrário, espalha sofrimento, conflito, morte. O fundamentalista é dono de verdades absolutas, irrenunciáveis. Ele e o grupo a que pertence, incapazes de autocrítica, são pérolas que pairam impolutas sobre os pobres mortais.

No Brasil de hoje, à esquerda e à direita, a irracionalidade tomou conta.
 
Pôr-se no lugar das outras pessoas, ponderar suas razões e sentimentos, está fora de cogitação para o sectário. O que ele quer - ser iluminado que é - é mandar na vida alheia e no país, mostrar o caminho único da ventura e prosperidade.

O fundamentalismo passa longe da tolerância, essa atitude que, sendo menos que o respeito, é, todavia, um primeiro passo na aceitação do diferente.

Prefiro viver numa sociedade com muitas faces do que num hospício, que é para onde nos conduzem a inflexibilidade, o fanatismo, a força bruta, o aniquilamento da alteridade.

A ética da aproximação, como princípio fundamental da existência, é, ainda, a possível ponte para uma convivência razoavelmente civilizada e fraterna.
 

segunda-feira, 1 de julho de 2019

A travessia do cotidiano

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

 
A travessia do COTIDIANO é Odisséia.  As histórias das pessoas comuns, os verdadeiros heróis, quem as contará? Nenhum Homero jamais se debruçará sobre as pequenas memórias que constituem a existência do povo.
 
E, no entanto, não há tesouro mais bonito. São as histórias reais, mais belas e incríveis que as maiores ficções.
 
Cada um é Ulisses e Homero da própria trama. Uma pequena história numa constelação de narrativas.
 
O que resta, no fim de tudo, são histórias humanas sem fim que o vento carrega para as bibliotecas azuis das estrelas.
 

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Scrittura

Jorge Finatto

photo: jfinatto


ESCRITA rente ao sentimento e ao pensamento.
Escrita dentro do cotidiano mas aberta ao sonho e à imaginação.
Escrita sem pedir licença nem perdão.
 

sexta-feira, 21 de junho de 2019

A hora da cocota

Jorge Finatto


 fotos: jfinatto 

Na ponta de um PLÁTANO já sem folhas, na frente de casa, pousaram essas caturritas. É o primeiro dia do inverno. Ali ficaram um bom tempo observando tudo lá de cima. Podiam ver a catedral e o centrinho de Passo dos Ausentes. Talvez cansadas, no fim de tarde, antes do sol se pôr, resolveram fazer uma pausa antes de regressar aos ninhos.
 
Essas criaturas são também conhecidas como periquitos-monges, catorras ou cocotas. Seguidamente estão aqui no quintal comendo araçás e outros frutos do seu agrado. Fazem uma gritaria e andam sempre em bando. Não tenho ideia de onde elas vivem, mas parecem bem e estão sempre atentas. Juntas cuidam umas das outras. E por isso vão mais longe. Se as pessoas fizessem o mesmo no Brasil...


Neste primeiro dia de inverno deram as caras as amigas cocotas. Fiz umas fotos de recordação. Uma espécie de celebração do inverno. De retiro das almas. Completado com a audição do Concerto para Cello em Si Menor, de Dvorák.