terça-feira, 20 de outubro de 2020

Pensar com o coração

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


Não fiques justo demais, nem te mostres excessivamente sábio. Por que devias causar a ti mesmo a desolação? Eclesiastes 7:16

Começar a pensar  é começar a ser atormentado.¹ Albert Camus


Pensar causa dor. Os caminhos do pensamento levam à desolação. Mas, sem ele, onde a alegria, a descoberta do mundo, a esperança, o êxtase? Talvez a fuga do desalento esteja em pensar com sentimento. Em outras palavras, pensar com o coração, sentir com o pensamento, como disse Fernando Pessoa. Ouçamos o poeta:

"Sentir é compreender. Pensar é errar. Compreender o que outra pessoa pensa é discordar dela. Compreender o que outra pessoa sente é ser ela. Ser outra pessoa é de uma grande utilidade metafísica. Deus é toda a gente." ²

A razão solitária, isolada do sentir, é um lugar profundamente ermo. Uma paisagem vazia e inóspita. Um cálculo matemático, se feito com razão e sensibilidade, é muito mais belo. Olhemos as cores, formas e movimentos dos corpos celestes. Onde entra o sentimento nisso? Entra na motivação do olhar, naquilo que nos move a tentar compreender, nas razões e emoções que nos levam a pôr nossa força vital nessa direção.

A natureza está construída, em toda sua extensão e profundidade, sobre alicerces de ciência e beleza. Em toda coisa existente há um pensamento e um desejo que a precedem, a volúpia da criação. Quanto mais observo e reflito sobre a obra do mundo e da vida, mais admiro a mão de quem a concebeu. Deus é um artista perfeito e apaixonado pelo que faz e fez. E tem todos os motivos para isso. 

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¹ O Mito de Sísifo. Albert Camus. Editora Record, 16ª ed. Tradução: Ari Roitman e Paulina Watch. pág. 19. Rio de Janeiro. 2019.

² http://arquivopessoa.net/textos/1709

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Brinquedo de criança pobre

 Jorge Finatto

do meu jardim. photo: jfinatto

Uma das alegrias da minha infância eram os brinquedos caseiros. Brinquedos rústicos de criança pobre, feitos com materiais descartados. Não obstante humildes, nos levavam a viajar pelo cosmos, expandindo nosso universo.

O porão da velha casa de madeira, lá na Serra, não abrigava somente quinquilharias. Era uma oficina de brinquedos. O artesão desse mundo mágico, que transformava latas de azeite em belos carrinhos e caminhões, era o primo Nego (Rogério). Eu era auxiliar de feiticeiro.

De suas mãos saíam também carrinhos de lomba com rodas de rolimã (rolamentos de aço), cavalinhos, balanços pra pendurar no plátano à beira do Arroio Tega, arcos e flechas, pernas de pau, trenzinhos, espadas, escudos, revólveres, espingardas, bonecos, aviões. Tudo trabalhado com serrote, martelo, lima, formão, goiva, torno, lixa e pedaços de madeira que buscávamos na madeireira perto de casa.

Os brinquedos dos outros meninos e meninas da rua também eram caseiros, mas não se comparavam aos nossos (na nossa imodesta opinião). 

Devia haver uma espécie de museu para esses brinquedos de antigamente. Cheios de imaginação e criatividade, povoavam de fantasia nossas brincadeiras e nos levavam além do mundo em preto e branco.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Beija-flor no galho pensador

 Jorge Finatto

photo: Clara Finatto. Canela/RS

Na tarde de neblina e frio desta instável primavera, o beija-flor cisma.

Pensando na vidinha, no galho pensador, ele faz uma pausa. Que ninguém é de ferro. 

Fica um tempo, dá uma saída e depois volta. Não se incomoda que o observem da janela. Tampouco que abelhudos lhe façam fotos. Há um pote com líquido de néctar no galho ao lado que muito o agrada. E não só a ele: tem irmãos ou amigos que vêm ali toda hora todos os dias. 

No que estará pensando? 

Há de ter lá os seus compromissos o beija-flor, uma casa pra voltar, filhos pra criar, contas a pagar, preocupações de quem vive neste mundo de Deus.

Mas, nesse momento, ele precisa ficar sozinho e em silêncio. Precisa disso pra saber quem ele é. 

Porque, às vezes, na dura faina da sobrevivência, a gente esquece quem é.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

"E se todos nós vivêssemos?"

 Jorge Finatto

duas rosas. photo: jfinatto

                                                

Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos? 
Carlos Drummond de Andrade, no poema O medo


A palavra morte é a palavra da moda. Nunca se pronunciou tanto como neste 2020. A boca fala o que o coração sente, parafraseando Mateus 12:34. Se for assim, atravessamos um momento em que o medo é um sol escuro no céu da nossa angústia. 

Não se trata apenas de uma palavra e seu sombrio significado, mas da vida que perdemos nos últimos 8 meses. A pandemia da covid-19 retraiu passos, limitou movimentos, mudou itinerários, mostrou que ninguém tem controle sobre nada. 

Temos ideias, projetos, sonhos, concentramos esforços em determinada direção. Mas o resultado final é imponderável.

O dia de amanhã é inescrutável como a face de Deus. 

O dia de hoje, por outro lado, tem um peso às vezes insuportável. Pelas perdas de muitas vidas todos os dias, pelo risco de que a peste nos alcance e nos leve para onde não queremos ir. Uma danação.

Não sei como isto vai acabar. Sei que mudanças estão ocorrendo rapidamente e coisas que antes pareciam improváveis tornam-se realidade. 

Para nós, do Brasil, que vivemos um dia a dia de enorme desestruturação social, violência, injustiça, indiferença dos governantes e da própria sociedade, a peste é só uma página a mais no triste livro da nossa história. Temos à volta todo o resto a nos sufocar. 

Olhemos as queimadas na Amazônia e no Pantanal e suas gravíssimas consequências sócio-econômico-ambientais. A desordem do clima, a destruição da fauna e da flora, os problemas na produção de alimentos, a tremenda poluição. 

Sem esquecer a depressão psicológica diante da falta de perspectivas em relação ao futuro.

Estou/estamos exaustos diante de tanto sofrimento. Ainda que não nos atinja diretamente (conservar-se com saúde é o que mais importa), o ambiente está carregado demais, difícil demais, dolorido demais. 

Precisamos celebrar a alegria de viver outra vez. Não imagino como a travessia se dará. Mas acho que virá aos poucos, como uma manhã de sol após a noite de tempestade. Será uma alegria diferente, que passará longe da celebração privada, fechada em si mesma, egoísta, excludente. Uma alegria simples, dividida entre todos. Como respirar.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Conversa com meu anjo da guarda

 Jorge Finatto

photo: jfinatto

O anjo de Jeová acampa-se ao redor dos que O temem. E ele os socorre. (Salmos, 34:7)


DIZIAM OS ANTIGOS que cada pessoa tem o seu anjo da guarda. Anjo bondoso e santo que vela o sono, releva os erros, protege dos perigos, aconselha, sabe perdoar. Anjo zeloso e guardador que anima o coração e ajuda a viver.

Não sei se os anjos ainda estão por aqui, tal o estado em que os homens deixaram o mundo. Se pudesse fazer um pedido, pedia ao meu anjo que inventasse depressa a máquina de desmorrer.

Sim, para acabar de vez com o problema do desnascimento. Porque desnascer, ou deixar de caminhar sob o sol, é coisa a mais triste, sem nenhum sentido, um desperdício enorme de tempo, trabalho, sonhos e esperanças.

Uma vez expulso o desnascer de nossas vidas, quanta coisa bonita vamos fazer e conhecer! Teremos os dias necessários para consertar o que ficou torto, o que não deu certo.

Vou aproveitar para construir muitos barcos de papel e soltar no Arroio Tega, nas manhãs da eternidade. Passearei com meu guarda-chuva nas ruas molhadas e vazias de Passo dos Ausentes. Subirei no telhado nas noites de junho pra ver estrelas cadentes, olharei a Lua da janela do meu quarto e pescarei estrelas com o chapéu.

Descobrirei o nome de todas as flores e árvores. Pedirei, também, ao meu anjo protetor, que traga de volta, sem mais tardança, os seres amados que já partiram. Sim, estou cansado de viver longe deles.

Quero todos por perto nessas noites de inverno, tão povoadas de ausência e memória. 

 É preciso inventar urgentemente a máquina de desmorrer.
 
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Crônica do livro Navegador de Barco de Papel. Livraria Pocket Store, Rua Félix da Cunha, bairro Moinhos de Vento, Porto Alegre.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Paiuia

 Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

                        Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.
                                                   Saint-Exupéry, O pequeno príncipe

Quando eu era criança, tinha medo-pânico de cortar o cabelo. O drama se estendeu até os cinco anos mais ou menos. Era um medo primitivo, do tempo das cavernas, pavor diante do raio e do trovão. O avô me levava ao barbeiro, na ruazinha central de Passo dos Ausentes, aquilo era um suplício.
 
Havia na aldeia um homem que vivia na rua. Vestia sempre um casacão de lã, fosse inverno ou verão, tinha longos cabelos cor de cobre, uma cara amarrotada, chupada, fustigada pelo sol e pelo vento. Sobrevivia ele com os trocados que ganhava pelas momices e mugangas que fazia aos passantes na calçada, onde instalava seu escritório de saltimbanco.
 
O nome dele era Paiuia.
 
Para amenizar minha sessão de tortura, o avô contratava Paiuia a fim de distrair-me junto à cadeira do barbeiro. O fato é que ele conseguia me acalmar menos pelos trejeitos que fazia do que pela sua feiura. Eu ficava impressionado: como é que alguém tão feio era ao mesmo tempo tão engraçado?
 
Eu já não chorava nem sofria como antes, deixava o barbeiro fazer seu trabalho. Com sua arte humilde, Paiuia me consolava no sofrimento. 

Acaso não será esta a sublime missão do artista?
 
No dias difíceis, recordo com ternura de Paiuia, que não está mais neste mundo pra me dar consolo com suas visagens. Hoje percebo que a beleza que ele tinha era invisível ao olhar. Ele a carregava pura dentro da alma e com todos compartilhava generosamente.

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Texto revisto, publicado em 22.4.2016

domingo, 13 de setembro de 2020

O milagre dos pavões

Jorge Finatto
 
photos: jfinatto
 

Na quinta passada, dois pavões apareceram no quintal aqui de casa. Não me perguntem como. Um acontecimento absolutamente raro e inesquecível.
 
Eles andaram no pátio calmamente, pra lá, pra cá, na santa paz. Atrás da janela, eu observava aquele movimento elegante e silencioso. Num breve voo, subiram na pérgola e ficaram mais um tempo. Num bater de asas, deram uma passada na sacada do vizinho. Depois alçaram-se no espaço e partiram, deixando saudades.
 
Nunca tinha visto pavões livres na natureza. E menos ainda na minha humilde querência. Aquelas cores brilhando. Não chegaram a abrir o leque da cauda. Seria incrível. Mas pensando bem, nem precisava. O milagre já estava consumado com a presença deles ali, iluminando a tarde gris de setembro. Aí eu pensei: foi um presente de Deus para este velho bardo que às vezes sonha voar.