sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Sem medo nem rancor

Frederico Vasconcelos


Final dos anos 60, em Recife, a tropa de choque, fortemente armada, impedia a passagem do enterro. No caixão, o corpo do padre Henrique, um assessor de dom Hélder Câmara que se dedicava a recuperar jovens viciados em drogas.

Na véspera, o padre fora encontrado no meio de um matagal, mãos e pés amarrados e com marcas de incrível violência em todo o corpo.

Ombro a ombro, os policiais militares fechavam a rua e não permitiam a passagem do féretro e das muitas faixas de protesto contra a ditadura.

Sem hesitar, o frágil dom Hélder toma a frente do cortejo, avança com passos firmes, seguido pelos sacerdotes que erguiam o caixão do companheiro assassinado.

O bloqueio é rompido. O comandante recolhe a tropa, que volta a surgir, alguns quarteirões adiante, agora todos perfilados, com os capacetes na mão, cabeças abaixadas, como num silencioso e incomum pedido de perdão.

A coragem pessoal de dom Hélder era um exemplo de resistência naqueles tempos de terror e trevas. Sem as pompas do cargo, o arcebispo morava sozinho numa casinha de pequenos cômodos, cujo muro havia sido metralhado, de madrugada, mais de uma vez.

"Vocês conseguem ver aqueles dois homens, ali em frente, atrás das plantas?", perguntou uma noite, sorrindo, ao se despedir depois de uma entrevista. "Eles estão escondidos, mas dizem que é para me proteger", ironizava.

"Às vezes, eu imagino colocar uma máscara, apenas para pregar um susto neles", comentou, brincando. Dom Hélder não tinha medos nem rancores.

O encontro fora coordenado pela corajosa jornalista, depois deputada, Cristina Tavares (que morreu em 1992). Cristina, como outros amigos, chamava-o apenas de "Dom". Da entrevista também participaram o jornalista Jeová Franklin e este repórter.

Publicada em "O Pasquim", capa de edição em março de 1970, ela teve o mérito de romper a longa censura imposta pelo regime militar a dom Hélder.

Como disse Janio de Freitas, realmente foi uma graça do destino tê-lo conhecido.

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Este artigo foi originalmente publicado na Folha de São Paulo, edição de 03/9/1999. Agradeço ao Frederico e à FSP a autorização para reprodução. J. Finatto
Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br

Foto: Dom Hélder Câmara (1909-1999). Fonte: www.google.com.br, Imagens de Dom Hélder. Nota do blog: o crédito será dado ao autor da foto tão logo tenhamos a informação.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Julio Cortázar em Porto Alegre

Jorge Adelar Finatto
 


A literatura passa um sentimento de permanência das coisas. Nós passamos, as palavras escritas ficam. A maior parte dos livros dura mais tempo do que as pessoas.

Os escritores que escolhemos para nos acompanhar na travessia são fundadores dessa eternidade de papel. Os livros fazem parte do que somos.

A lembrança mais remota que associo ao nome do escritor argentino (que escritor!) Julio Cortázar (1914 - 1984) é dos primeiros tempos de estudante universitário em Porto Alegre. O ano 1976, tinha dezenove anos. Estava lendo Histórias de Cronópios e de Famas e As Armas Secretas.

A fila do restaurante universitário era torturante pra quem tinha que ir pro trabalho cedo da tarde como eu. Estudante pobre, precisava trabalhar pra sobreviver, como muitos. Nas filas do ru, lia Cortázar. Então, aquele era também um bom momento do meu dia a dia. Depois li outros livros dele.

Agora, lendo Papéis Inesperados (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht), livro de 490 páginas, com textos inéditos do escritor, publicado originalmente em 2009, vinte e cinco anos após sua morte, reencontro Cortázar. No Brasil, o livro foi lançado em 2010 pela Civilização Brasileira.

Os textos - encontrados em uma velha cômoda, na casa onde morou o autor, em Paris, por sua viúva Aurora Bernárdez - são poemas, contos, outras histórias de cronópios e de famas, episódios de Um tal Lucas, um capítulo de O Livro de Manuel, discursos, prólogos, artigos de arte e literatura, crônicas de viagens, etc.

A felicidade de encontrar material novo do autor, tantos anos depois, é muito grande.

O dado inusitado e, para nós gaúchos que amamos a literatura de Julio Cortázar, muito gratificante foi descobrir uma menção a Porto Alegre no texto Never stop the press, onde se lê a frase "uma vista escolhida do Tirol e/ou de Bariloche e/ou de Porto Alegre" (pág. 117).

Sei que Cortázar gostava do Brasil, onde esteve pelo menos em duas ocasiões, e que admirava, por exemplo, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, além de apreciar nossa música, especialmente Caetano Veloso, mas ignoro se alguma vez esteve em nossa cidade.

De qualquer forma, ver Porto Alegre nesse texto de Julio Cortázar, ainda que só de passagem, dá o que imaginar. Pensando bem, acho que ele tinha muito a ver com essa cidade povoada de barcos e crepúsculos, jardins escondidos no fundo de casas desaparecidas, silenciosos gatos que caminham sobre muros cobertos de hera, ruas esquecidas, fantasmas.
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Fotos: capa de Papéis Inesperados. Julio Cortázar (
http://www.juliocortazar.com.ar/)

terça-feira, 10 de agosto de 2010

La Vieja de Atrás

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Seres devastados por uma irremediável solidão. A incomunicabilidade das pessoas em suas vidas pequenas e sofridas. As difíceis relações de afeto num mundo em que não se para para olhar e sentir o outro. A busca dolorosa, às vezes desesperada, de alguém para compartilhar a vida e amenizar o deserto.

La Vieja de Atrás (A Velha dos Fundos), dirigido por Pablo Meza, que também assina o roteiro, foi exibido no Festival de Gramado, na noite de domingo (o8/08/2010). É mais um bom exemplo do tipo de cinema que se faz hoje na Argentina. Um filme que apanha o indivíduo no ato difícil de viver, que se preocupa em desvelar a vida interior dos personagens, com os pensamentos e sentimentos que os movem e lhes dão uma face.

Rosa (atriz Adriana Aizenberg) é uma velha senhora, na volta dos oitentanos, viúva há muito tempo, sem filhos, que vive sozinha num pequeno e obscuro apartamento numa rua movimentada de Buenos Aires. Marcelo (ator Martín Piroyansky) é um jovem tímido, vindo do interior, de la pampa, para estudar medicina na capital. De família pobre, sobrevive de fazer biscates, como distribuir papéis com anúncios, de mão em mão, pela calçada. Até que o dinheiro de Marcelo acaba e ele não consegue mais pagar o aluguel do apartamento em que mora, localizado no mesmo andar que o de Rosa. Um belo dia entram no elevador, que em seguida tranca. São obrigados a conversar, olhar-se. Rosa interessa-se em ajudar o rapaz e o convida a morar com ela. O mais que se passa daí em diante é pura condição humana.

Diferentemente de certos filmes brasileiros que tenho visto, em que há uma forte tendência para o documentário naturalista, percebo nos filmes dos vizinhos do Rio da Prata uma "ocupação" sensível e delicada com o assunto humano. Não se nega a realidade, mas esta se coloca enquanto cenário ou circunstância na qual os personagens existem e agem como seres pensantes, emocionalmente vivos. Não são meros marionetes manipulados por um destino implacável, supostamente realista.

A impressão que se tem, ao final, é de que Rosa e Marcelo vão sair da tela caminhando em direção à plateia, tal sua verdade emocional e complexidade psicológica. Um belo filme.
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Foto: personagens Marcelo e Rosa. Divulgação (cinema.cineclick.uol.com.br)

Filosofia nas ruas montevideanas


Grafites de Montevideo


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- Un país es un invento...
- Hay vida antes de la muerte???

Foto: J. Finatto, Montevideo, 2010.

domingo, 8 de agosto de 2010

Com licença, realidade: chegou a hora da ilusão (2)

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Estou num café, sentado diante da xícara fumegante de cappuccino. O livro de contos do Juan Carlos Onetti aberto ao lado. Para quem estava há quatro meses sem sair de casa, nas cercanias da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre, esse é um belo momento.  A convite do blog escrevo essas linhas sobre o Festival de Cinema de Gramado. O que mais posso querer da vida? 

Quando saí de Porto Alegre, chovia, fazia frio e a melancolia tomava conta do lugar. Aqui o clima é outro. Faz muito frio, neva  de vez em quando, garoa, mas, pelo que vejo, ninguém está pensando em se matar, por enquanto. Através das paredes envidraçadas do café vejo os infelizes que andam na rua, onde a temperatura agora beira zero grau.


A praça, na frente do cinema em que acontece o festival, está quase deserta. O sino da igreja tocou. A fria madrugada  avança através dos pinheiros e paredões de basalto. Entre a dureza da vida e a transcendência, existem caminhos a percorrer. O cinema nos ajuda na travessia. A arte nos torna pessoas melhores, se nos deixamos tocar e não fechamos as portas. 

Eu queria poder voar sobre a torre da velha igreja. Em mim mora um monge rebelde e voador, que passa os dias na biblioteca, avesso aos deveres do templo. Um monge que não quer caminhar no vento gelado até o quarto de hotel a essa hora.

Confesso: as duas grandes estrelas que encantaram minha vida são, pela ordem, Beth Faria e A Feiticeira (Elizabeth Montgomery, infelizmente já falecida). Elas não têm culpa disso. Às vezes, na solidão do hotel, sonho que, ao dobrar uma esquina qualquer de Gramado, dou de cara com uma delas. A emoção é tal que, ao invés de tentar uma conversa, acabo acordando suado, com falta de ar. 

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Na sessão de abertura (sexta, 6 de agosto), dois filmes brasileiros foram exibidos: Bróder e Enquanto A Noite Não Chega. São dois filmes razoáveis, no meu entender; o primeiro, mais razoável do que o segundo.


Bróder, dirigido por Jeferson De, segue a linha do cinema realista, abordando a temática da pobreza, do tráfico e da violência na periferia pobre de São Paulo. Envolve a vivência de amigos e de uma família. É um trabalho sério feito por gente séria. Mas a abordagem está muito colada a uma ideia realista de documentário, como vários dos filmes feitos a respeito. Acho que ainda falta uma boa história sobre o assunto, que não apenas mostre, mas que emocione, enleve, encontre fissuras na realidade, e permita respirar além.

Cássia Kiss participa do filme, com um ótimo desempenho, o que não é novidade. Ela disse tudo no palco, antes da projeção: falar da família, no cinema, é sempre muito importante.

Enquanto A Noite Não Chega, dirigido por Beto Souza, é baseado no livro homônimo do escritor  gaúcho Josué Guimarães, tem uma boa fotografia,  boa trilha musical, muito bons atores, Miguel Ramos e Clênia Teixeira. É um filme correto, mas arrastado.  E há um excesso de lágrimas nos olhos dos personagens interpretados por Miguel e Clênia.

Quando sobram lágrimas no palco e na tela, elas acabam faltando na plateia, nos olhos do espectador.

O cinema argentino me deixou mal acostumado nos últimos anos, com obras raras como Clube da Lua, O Filho da Noiva, O Segredo dos Seus Olhos e por aí vai. O uruguaio O Banheiro do Papa é outro filme incrível. Gosto de ver boas histórias na tela, e boas histórias são, em geral,  as histórias bem contadas, que nos fazem viajar de corpo e alma com elas.

Mas a opinião de alguém que não entende de cinema, mero espectador como eu, deve ser vista, no mínimo, com muita cautela. O indispensável é que cada um veja os filmes.
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Fotos: J. Finatto

sábado, 7 de agosto de 2010

A página infinita da internet *

José Saramago

Acabamos de sair da conferência de imprensa de São Paulo, a colectiva, como dizem aqui.

Surpreende-me que vários jornalistas me tenham perguntado pela minha condição de blogueiro quando tínhamos atrás o anúncio de uma exposição estupenda, a que é organizada pela Fundação César Manrique no Instituto Tomie Ohtake, com os máximos representantes e patrocinadores, e com a apresentação de um novo livro à vista. Mas a muitos jornalistas interessava-lhes a minha decisão de escrever na “página infinita da Internet”. Será que, aqui, melhor dito, nos assemelhamos todos? É isto o mais parecido com o poder dos cidadãos? Somos mais companheiros quando escrevemos na Internet? Não tenho respostas, apenas constato as perguntas. E gosto de estar escrevendo aqui agora. Não sei se é mais democrático, sei que me sinto igual ao jovem de cabelo alvoroçado e óculos de aro, que com os seus vinte e poucos anos me questionava. Seguramente para um blog.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 25 de novembro, 2008.
A grafia é a de Portugal.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Memória na câmara escura (2)

Frederico Vasconcelos


O Hermeto e o Sivuca (conheci pessoalmente o último) são dois gigantes. O que me impressiona em ambos é o fato de terem, em comum, nascido em região pobre, do Nordeste, ambos na infância sem condições de ter um instrumento ou um rádio. Salvo erro meu, os dois ouviam música a partir da janela do vizinho. Não sei de onde vinha tanta musicalidade. Meu pai fazia um bico como discotecário da Rádio Jornal do Comércio, no Recife, nos finais de semana. Eu ia com ele. Conheci figuras incríveis, como Luiz Gonzaga, Sílvio Caldas, Bob Nelson, entre outros. Sivuca entrava, pedia para papai colocar um disco. Ele ouvia, não tirava o instrumento da mala. Em seguida, entrava no auditório e tocava melhor do que o original. Toco piano - também amador - mas na juventude dei canjas em boates, restaurantes e "inferninhos" no Recife, locais que nós frequentávamos para ver e ouvir os profissionais, tentar "copiar" alguma coisa. É meu segundo teclado, como costumo dizer. Lembro-me de ter ouvido o Hermeto, com seu trio, numa das idas ao Recife, acompanhando uma cantora famosa. Detalhe: naquela época, ele tinha cabelo bem curto...


Toquei com um grupo de estudantes num baile (final de rodeio, lá chamavam de "vaquejada") na terra natal de Sivuca, na Paraíba. A noite toda, um homem simples, talvez um peão, ficou ao lado do piano, calado, desconfiado, vendo tudo que eu fazia. Cismado, como dizem lá. Pois bem, num intervalo, com forte sotaque, ele perguntou: "Você conhece Sivuca?". Respondi: "Conheço, para mim é o maior músico do mundo". O homem abriu um sorriso e até hoje não sei o que ele quis dizer com o seguinte comentário: "Ainda bem que você pensa assim..."

A Rádio Jornal do Comércio, no Recife, era uma potência, na época (muitos anos depois, já em São Paulo, comprei um rádio de ondas curtas, Zenith, e o manual indicava apenas duas rádios brasileiras: a Tupi, de SP, e a Rádio Jornal do Comercio, do Recife). O grupo Pessoa de Queiroz, usineiros, investiu na formação de uma orquestra, "importando" músicos e instrumentos da Europa. Pois bem, trouxeram um órgão eletrônico e ninguém sabia tocar. Sivuca começou a mexer no instrumento, à tarde. À noite, inaugurou o órgão no programa de auditório.

Eu vi essa cena: Sivuca dando "dicas" a um flautista da orquestra da TV, sobre como explorar melhor a embocadura...

Generoso, ele me viu "batucando" no piano do estúdio. Disse-me que eu deveria estudar.

Optei pelo jornalismo. O outro teclado.

Há mais de um ano, tenho aulas semanais com Cláudio Soares,  excelente professor de piano. Como leio mal e porcamente, e toco mais de ouvido, fazemos "rearranjos" de músicas de jazz e MPB. Como não tenho mais tempo para me dedicar à leitura, e ele é compreensivo e talentoso, eu fico a maior parte do tempo no teclado. E ele escreve - e reescreve - as pautas.

Semanas atrás, perdi no metrô um caderno com um ano de arranjos. Ainda bem que ele copiou a maior parte das peças.

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Este texto de Frederico Vasconcelos, como o anterior (post de  31 de julho), resulta de uma troca de e-mails  entre mim  e o jornalista. Entendendo que essas histórias, pelo  valor cultural  e pela forma como são contadas pelo autor, devem chegar a outras pessoas, pedi autorização para publicá-las. De forma generosa, Frederico concordou, esclarecendo que não pretende fazer história com episódios e observações pessoais. Estou certo de que os leitores sentirão o mesmo encanto  que sinto quando leio esses  belos relatos. J. Finatto

Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br
Fotos: Hermeto Pascoal (www.hermetopascoal.com.br) e Sivuca (www.sivuca.com.br)