domingo, 31 de outubro de 2010

Drummond 108

Jorge Adelar Finatto


A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.*

31 de outubro, 1902. Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais. Nessa data e nesse lugar nasceu Carlos Drummond de Andrade. Vivo estivesse, completaria hoje 108 anos. Sinto saudade do poeta como de um irmão mais velho. São dessa ordem as afinidades literárias que se transformam em afeto, respeito e falta.

Morto aos 84 anos, em 17 de agosto de 1987, 12 dias depois da morte da única filha Maria Julieta, escritora, Carlos foi  - e é - um dos nomes mais importantes da poesia em língua portuguesa.

Notabilizou-se, também, como cronista e contista refinado, que conseguia fazer uma leitura solar dos acontecimentos e dos não-acontecimentos. A poderosa lente com que mirava a realidade e a observação aguda da vida tornavam seus textos semanais, em jornal, leitura indispensável.

Enxergava como poucos nossas qualidades e defeitos, nutria  uma irredutível esperança na existência, mesmo desiludido. O bom humor é outro traço marcante de sua visão de mundo.

O humanismo da expressão, em Drummond, sempre foi fonte de revelação e consolo. O poeta nos toca e nos ajuda a viver.  Amoroso e lúcido, o texto nunca lhe sai indiferente ao destino humano.

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?**

É nessa vida prolongada da palavra escrita que podemos ter o poeta conosco. Convivente, irmão.
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*Trecho do poema Consolo na Praia, da Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade, Editora Abril, São Paulo, 1982.
**Trecho do poema Amar, idem.
Foto do poeta copiada do site www.carlosdrummonddeandrade.com.br

Mais sobre CDA no post de 11/4/10.

sábado, 30 de outubro de 2010

A fala do Arlequim

Jorge Adelar Finatto


Querer eu quero, e o querer é tudo. Cumpro os regulamentos do invisível. De silêncio em silêncio, as difíceis passagens. Eu sinto no calado. Os comedimentos. A pessoa sonhada tem certos jeitos. De não se deixar ver, nem tocar, nem sentir, nem sonhar. Os caprichos do ser amado.

As magnólias me doem no inverno de tão belas. Eu lírico. Os tormentos do amador. A musa é do tipo nem aí. Nem sabe de mim.

Arlequim ao relento eu sou. Os rigores da lira. Vivo no austero. Sinto no meu segredo. Amador. Ela não me vê. Eu a vejo. A musa é só o motivo. Eu sou o seu adamastor.

O que dorme no banco da praça. O que mora dentro do casaco e da manta. O do chapéu ridículo. O que fala algaravias no café. O que não suporta gritos. O que senta no cais a olhar as faluas.

Caminho nos meus penhascos. Ruínas são coisas que habitam no íntimo da pessoa. O que se fala e o outro não entende. Um diz aurora, a musa entende anoitecer. As palavras, tonterias.

Sentimento é o ora-veja da vida. Cultivo distância, alimento paciência.

O ser sonhado tem certos olhares. A musa vive num jardim secreto que eu mesmo inventei. A trança de linho desce pelo muro escarpado do castelo. Eu romântico. A vida gira nos esconsos. Os trapos coloridos do meu coração ao vento.

Amador, amador.

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Foto: J.Finatto. Cena veneziana.
Texto publicado no blog em 12/05/10.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Viagens da memória

Ricardo Mainieri



Sou refém das engrenagens que movimentam a existência cotidiana. Poderosas, elas me levam e trazem, sem consulta. Enredam-me em pensamentos e situações, por vezes, sem controle. Ultimamente, como tenho sido bem-comportado, ganhei o direito de retroceder no tempo.

Posso escolher época e local. Nesta era de pouca criatividade, sugiro Porto Alegre, metade da década de setenta.

Pronto, estou de volta. A cidade reaparece em seu ritmo monótono, pano de fundo um som marcial. Entendo, estamos atravessando o que alguns chamam de “ditabranda”. Eu prefiro pensar que ela teve outra textura...

O sol brilha forte na tarde defronte ao rio. Domingo. Carrego um radinho de pilhas onde o locutor narra uma partida de futebol. Não contenho uma risada interior, penso: quanta precariedade.

Eu que conheci computadores, IPODs, MP3, televisão a cabo. Agora, me vejo resumido a um aparelho rudimentar, quem nem pilhas alcalinas aceita...

Volto ao meu equipamento. Imagino, pela voz, um senhor sisudo, de bigodes aparados. Ele fala palavras que desconheço como escrete, beque, córner, guarda-valas. Sua impostação carrega algo de formalidade.

Entremeado à narrativa, ele chama os patrocinadores. Desfilam pela memória finadas empresas. O poderoso Magazine Mesbla, J. H. Santos e suas barbadíssimas, os sanduíches da lanchonete Ribs e tantas coisas que já havia deletado.

Desligo o aparelho. Ainda posso ouvir a intervenção da reportagem que fala de um ferido conduzido ao nosocômio da municipalidade. Num fôlego, o locutor emenda com um convite de enterro ressaltando que o féretro sairá da Capela D, do Cemitério situado na Colina Melancólica. É demais!

Subitamente, sou puxado de volta aos tempos de agora. Aterriso meio desequilibrado.Quase sou atropelado, ufa!

Não sei se choro ou se sorrio.

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Ricardo Mainieri é escritor e poeta. 
Autor do blog mainieri´s: 
http://mainieri.blogspot.com/

Foto: Os barcos e a cidade. Porto Alegre. J. Finatto

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Em alguma parte alguma, novo livro de Ferreira Gullar

Jorge Adelar Finatto


Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
                 fora de esquema
                 meu poema
inesperado*

Vinicius de Moraes afirmou certa vez, com o crédito que lhe confere a  notável obra poética que nos legou, que "Gullar é o último grande poeta brasileiro". A assertiva carrega algum exagero natural resultante da  admiração do observador diante de uma rara descoberta. Como aquele colecionador de borboletas que, num belo dia, encontra, no bosque, o exemplar único, de transcendente beleza, até então escondido.

Se Vinicius disse último querendo referir-se ao mais recente (naquele momento), aí fica o dito por não dito.

Ferreira Gullar não será, provavelmente, o último grande poeta brasileiro. Esperamos que outros de igual valor venham a  iluminar a nossa literatura. Mas é, com o mérito que o talento,  o esforço e o tempo lhe atribuem, sem nenhum exagero, um dos grandes autores de poemas de todos os tempos.

Não apenas pela obra poética em sentido estrito. Há rigor de pensamento, sensibilidade e engenho na obra em prosa do escritor, a desafiar limites entre poesia e texto discursivo.

Estou lendo o seu recém-lançado Em alguma parte alguma. Nos últimos anos, toda vez que compro um livro de poesia o faço com o coração cheio de angústia, porque está cada vez mais difícil encontrar poesia nos livros de poesia. É impressionante como a poesia fugiu dos livros de poemas.

Há muito tempo não lia um livro novo com essa emoção. Está ali a poesia a salvo e renovada, vivente em poemas longamente aguardados e trabalhados. Gullar publica Em alguma parte alguma onze anos após o lançamento do livro anterior, Muitas vozes. Não perdemos por esperar, fez bem o poeta em seu prolongado retiro. Nos entrega textos finamente elaborados, que revelam intensa capacidade inventiva, onde a criação se manifesta em belos, seguros, altos e inovadores voos de formas e sentidos.

Faz bem o poeta em não nos privar de sua grande poesia, que é pura partilha de algo que agora nos pertence. Eu, que considerava o Poema Sujo o ponto mais elevado da obra de Ferreira Gullar, não tenho mais essa certeza.  Acredito que estamos diante de uma outra obra-prima do poeta. Perdi a conta dos versos que sublinhei. Felizes somos nós que podemos lê-lo em português, porque, não tenhamos dúvida, não se trata apenas de um livro brasileiro, mas um acontecimento universal. O poema Rainer Maria Rilke e a morte vale por uma estante inteira de poesia, e este é apenas um entre tantos.

Sobre este novo Gullar (80 anos completados em 10 de setembro passado), os entendidos ainda dirão muitas coisas. Diante do que li, tenho isto a dizer: assombro.

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*Primeiros versos do poema Off Price, do livro Em alguma parte alguma, Ferreira Gullar, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 2010.
Foto da capa do livro: site da Livraria Cultura: www.livrariacultura.com.br

Mais sobre Ferreira Gullar no post de 10/set/2010.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O segredo das águas

Jorge Adelar Finatto


O planeta girava em lentos círculos. Aquela rua de chão batido era um grão à deriva no universo. Em certas noites geladas de junho, a conversa avançava pela madrugada. Na cozinha, em volta do fogão a lenha que ardia, cada um contava uma história, um caso real ou inventado. As notícias eram poucas. O rádio, quando pegava alguma estação, fazia  zumbido de mil abelhas. A luz elétrica de tão fraca era de um laranja escuro. O menino tinha  vindo ao mundo há cinco, seis anos. Estava vivo contra todas as expectativas devido à saúde frágil. Era bom adormecer ouvindo vozes na velha casa de madeira de pinheiro. Era bom fazer parte daquele retrato perdido no tempo.  Era uma dádiva estar vivo no labirinto. Riscos de estrelas atravessavam o céu, caíam num lugar misterioso ali perto. Sobreviventes na longa noite austral, as pessoas observavam a geada encobrindo a escuridão lá fora. Águas subterrâneas corriam limpas debaixo das casas, afloravam nos poços, encanamentos, regavam secos sentimentos, derrubavam muros de ódio, lavavam a sujeira dos corpos, das almas. Para onde foram aquelas vozes? - pergunta o coração do menino - para onde correram aquelas águas?

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Foto: J. Finatto

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A biblioteca particular de Fernando Pessoa digitalizada


 Nota Prévia*
Jerónimo Pizarro


Dar visibilidade virtual à biblioteca particular de Fernando Pessoa foi o objectivo de uma iniciativa colectiva que começou em Abril de 2008 e que hoje permite disponibilizar em linha milhares de páginas impressas, muitas das quais contêm anotações, comentários, traduções e outros diversos tipos de textos em prosa e em verso, para além de desenhos, horóscopos e exercícios caligráficos. Estas páginas, que em número quadruplicam o número de autógrafos pessoanos à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), são decisivas para revisitar a vida e a obra de Fernando Pessoa. A sua biblioteca, composta por mais de 1300 títulos (mais da metade deles em língua inglesa), é um autêntico repertório de fontes e de escritos. Por este e por outros motivos, o seu valor é inestimável. No poema «Un lector», Jorge Luis Borges escreveu: «Que otros se jacten de las páginas que han escrito; | a mí me enorgullecen las que he leído». Que leu Pessoa? Com que propósitos? Estas são só algumas das perguntas que agora se podem começar a formular com mais assiduidade.

Salienta-se que esta biblioteca, albergada na sua grande maioria na Casa Fernando Pessoa (1058 títulos), não conta com todos os exemplares que alguma vez dela fizeram parte; parcelas da mesma estão ainda com a família do escritor e no espólio número 3 da BNP. Mas neste site é possível percorrê-la na sua quase totalidade e descobrir por que razões constitui um objecto de estudo privilegiado; a este respeito, pode ser útil a consulta da revista Portuguese Studies, vol. 24, n.º 2, 2008; do livro Fernando Pessoa: o guardador de papéis, Texto Editores, 2009; e, claro, do volume A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, D. Quixote, 2010. Para ter uma visão rápida de certos exemplares que se optou por destacar, basta visitar Anotações, Assinaturas, Dedicatórias e Selos.

A digitalização da biblioteca foi realizada no âmbito de colaboração protocolada entre a Casa Fernando Pessoa e o Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Agradeço a Inês Pedrosa, directora da Casa, pelo seu apoio, visão e entusiasmo, e a todos os investigadores que, ao longo deste projecto, disponibilizaram o seu tempo para fotografar, página a página, os livros que hoje compõem esta nova biblioteca digital. Dos investigadores destaco Patricio Ferrari e Antonio Cardiello, com quem coordenamos o projecto, e a todos aqueles que participaram de maneira mais empenhada e até à última sessão: Liliana Navarra, Mário Fernando da Silva Costa e Maria Manuel Denis Lages, e nas semanas finais, Jorge Uribe e Fabrizio Boscaglia. Outros nomes e informações figuram na ficha técnica.

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* Fonte: site da Casa Fernando Pessoa
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt
www.mundopessoa.blogs.sapo.pt

Foto: Fernando Pessoa. Acervo da CFP.

A grafia é a de Portugal. 

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Bez Batti, o homem que tira sentimento de pedra

Jorge Adelar Finatto


Bez Batti, o grande escultor brasileiro de pedra basalto, é senhor de um talento e de um humanismo que o colocam entre os principais criadores da atualidade no mundo.


Deus está no seixo como está no homem, na nuvem, no vento, no peixe.




O ser humano pode conversar com pedras. É possível desvelar emoção adormecida na densa concentração de matéria.

À luz da obra escultória de João Bez Batti Filho, as pedras são seres vivos.

As esculturas de basalto do artista conversam com o observador, fazem pensar e comunicam sentimento. São seres falantes que pulsam e querem partilhar beleza. Transcendem a condição de coisa vulcânica, arrepiam-nos ao leve toque.



São rochas que, antes de tornarem-se esculturas e adquirirem vida, dormiam como qualquer outra em remota obscuridade. Agora que nasceram e respiram, têm histórias para contar, e nos contam.

A visão desses objetos de criação nos leva a algumas considerações.

Existem memória e mistério ocultos na profundeza da pedra.

A emoção habita o álgido coração da rocha.

A vida é breve, o basalto é eterno

Uma secreta linguagem irmana Bez Batti e as pedras.

O trabalho paciente do escultor demanda força física para o duro enfrentamento. Com inspiração, ideias claras e perseverança, ele extrai raras revelações.

Ouçamos o que diz Ferreira Gullar: "Em arte, todo fazer é uma aventura imprevisível. Por isso, como o basalto é duro, e o risco, maior, Bez Batti, antes de atacá-lo, desenha a forma que pretende esculpir. Mas com isso não exclui de todo o imprevisível que nasce da resistência da pedra à ação que a agride, embate em que se misturam a sabedoria adquirida pelo escultor e a aceitação do acaso que se infiltra em sua ação".¹

O basalto é a terceira rocha mais dura que há na natureza. Origina-se de antiquíssimos derramamentos vulcânicos.


Egípcios, sumérios e pré-colombianos estão entre os poucos povos que se aventuraram a trabalhar com gravação e escultura em basalto.

O irmão rio

Bez Batti dialoga com as pedras desde a infância, na beira do Rio Taquari, no Rio Grande do Sul, onde vivia com a família.

O menino saía em solitárias caminhadas pela beira do rio (que é uma continuação do Rio das Antas), indo ao encontro dos seixos em suas margens e leito. Atravessava escarpas, sumia na sombra frondosa do arvoredo sobre a correnteza azul.

Nascido em Venâncio Aires (RS) em novembro de 1940, Bez Batti (tem o mesmo nome do pai, um imigrante italiano severo e trabalhador) um dia mudou-se para Bento Gonçalves. Fixou ateliê e residência na Linha São Pedro, numa casa de basalto com mais de cem anos, que faz parte dos Caminhos de Pedra, itinerário cultural onde se documenta a história da imigração italiana.





Desde então nunca ficou muito tempo longe do Rio das Antas. E quer que suas cinzas sejam espalhadas sobre as águas no dia em que morrer.

O Rio das Antas, essa criatura murmurante que caminha pela Serra do Rio Grande do Sul desde o início dos tempos.

O rio e seu ambiente ocupam o centro das preocupações ecológicas de Bez Batti. Há alguns anos administradores públicos vêm ali desenvolvendo projetos de engenharia, envolvendo represamento de águas e instalação de usina elétrica. Estas obras estão alterando a conformação do leito, submergindo áreas onde antes se podiam ver corredeiras, cristalinos lajeados entre as encostas verdes da mata. O rio escorrendo sobre o basalto.

De tanto conversar com as pedras e as águas, Bez Batti ganhou-lhes a confiança. Tornaram-se conviventes.

Os pequenos seixos e os altos penedos confidenciam-lhe coisas.

Falam de um tempo ancestral em que o Rio das Antas era um lugar povoado de claridade. Nele homens, bichos, plantas e pedras viviam em harmonia. Entendiam-se através da língua da intuição, do toque, do olhar demorado, da conversa, do respeito.

As esculturas do artista nos remetem ao encantamento de formas silenciosas, poéticas, sensuais. As saliências e concavidades nos levam à aurora da criação do mundo.

A arte africana toca o escultor muito de perto. Também marcam sua sensibilidade artistas como Pablo Picasso, Amedeo Modigliani, Constantin Brancusi, Henry Moore, e a arte antiga.

Basalto sanguíneo e o Arroio Tega

Em suas longas caminhadas pela natureza (ele não dirige, alguém o leva até os lugares de observação, pesquisa e meditação), descobriu novas faces, formas e cores do basalto. Segundo afirma, Caxias do Sul está erguida sobre uma das mais impressionantes províncias minerais de basalto que se tem conhecimento. Provavelmente não existe outra região com essa característica.



Além do basalto cinza, o mais comum de todos, ali se encontram inusitadas rochas de cor verde, verde-oliva, cacau, negra, rosa.

O basalto sanguíneo é resultado da persistente procura de Bez Batti. Identificou-o pela primeira vez no leito do Arroio Tega, que atravessa Caxias do Sul. Uma pedra tão bela quanto rara. O escultor acredita que, pelas evidências que colheu até hoje, o sanguíneo só existe no leito do Tega.

O encantador de pedras

Bez Batti é este artista que ousou abrir portas para uma maneira diferente de fazer escultura. Pagou um alto preço por isso. O caminho foi duro como um paredão de basalto.

Onde só havia rigidez mineral e o peso abissal da noite de milênios ele encontrou delicadeza e sentido.

Só um homem obstinado pela vida e pela beleza, absolutamente devotado à sua arte, poderia atingir os resultados que Bez Batti alcançou. Isto depois de enfrentar todas as incompreensões, limitações materiais e espirituais que o nosso meio costuma impor àqueles que se arriscam pelos caminhos da arte e da sensibilidade.




Ele nos mostra que existe beleza em estado bruto, esperando quem a desvele. E comprova, com seu ofício, que é preciso trabalhar muito para merecer o belo.

O senhor das pedras é também o homem da fé inabalável no trabalho. Nunca esperou apoios e estímulos, infelizmente quase inexistentes.

Construiu com as mãos uma arte inaugural.

Um encantador de pedras, ele diz que gostaria de ser (e é).

Bez Batti consegue extrair claridade do elemento mais primitivo que existe na natureza.

O que acontece com as rochas nos interstícios, nos poucos momentos de descanso do escultor? Elas se calam, retornam ao estado inanimado, por falta de seu poeta.

A arte, caminho para a iluminação

O que será o trabalho de uma vida senão esse lapidar constante sobre nossas imperfeições?

Ninguém nunca está completo. Ninguém é um bom ser humano por acaso.

Há que pegar o cinzel e reconstruir o homem e a mulher. É preciso reinventar a vida.

Sim, de toscas pedras podem brotar preciosos pássaros, plantas, frutos, cabeças humanas, torsos, semblantes, nichos, naturezas vivas, maternidades, segredos, tartarugas, peixes, rios, abstratos jardins.



Das mãos e da obstinação de Bez Batti nasce a maravilha. 

Até Bez Batti ir viver na beira do rio, ninguém conversava assim com os seixos e as rochas. Ninguém saía a andar pelo mundo armado apenas com o coração e a força do invencível cinzel.

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1. Uma poética do basalto. Texto de Ferreira Gullar no livro Bez Batti - Esculturas, do Instituto Moreira Salles, São Paulo, outubro de 2006.

2. Crédito das imagens:  1 - A foto de Bez Batti é de autoria de Ricardo Chaves. 2 - As fotos das esculturas são de Valdir Ben, que acompanha o escultor há mais de trinta anos; algumas delas estão publicadas no portal Artista Net.   


Texto publicado neste blog em 29/01/10.