terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A travessia

Jorge Adelar Finatto

No fim da tarde, saí com um livro debaixo do braço.  Em direção ao café da esquina (todos os cafés do planeta ficam numa esquina). Ali  tem sempre uma mesa perto da janela, um cheiro de café passado na hora, uma vista bucólica da praça. Mas pra chegar lá é preciso vencer três tristes avenidas. Por elas voam doidos e impiedosos motoristas. Quando cheguei na beira da mais difícil, na saída de uma insana rótula, parou uma caminhonete com duas mulheres. Fizeram sinal para atravessar. Fiquei atordoado. Será isso possível? O normal é ser maltratado, humilhado, quando não atropelado, friamente, nessa vida de pedestre. Não sabia o que fazer. E se, quando estiver no meio da via, o veículo avançar ferozmente na minha direção, tendo eu de correr em desespero até cair? E se, depois disso, as moças fizerem ainda o famoso sinal com o dedo médio ereto, como vou me sentir? Indefeso embora, resolvi cumprir o fado de patético caminhante. Para meu espanto,  elas aguardaram gentilmente a travessia. Naquele momento de  pura epifania, pensei que nem tudo está perdido, o ser humano tem um futuro pela frente, preciso acreditar mais nas pessoas, etc., etc. Pedestre é um ser não apenas acuado como  deveras sentimental.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Monteiro Lobato e Tia Nastácia: a questão racial na literatura

Jorge Adelar Finatto


Fazer um julgamento de Monteiro Lobato como escritor racista, por conta de certas linhas infelizes que escreveu, é injusto com o homem que denunciou resíduos do sistema escravocrata no Brasil do início do século XX, em páginas memoráveis como no conto Negrinha. Se em alguns textos cedeu à tentação racista da época, em outros mostrou-se revoltado contra o racismo e suas mazelas.Talvez a melhor visão seja reconhecer as contradições do autor, procurando examinar o conjunto de sua obra.  O legado literário do escritor, nele incluída a beleza que é Tia Nastácia, merece essa consideração.


As pessoas valem pelo que trazem dentro de si, nos seus valores, sentimentos, no respeito aos outros. Reduzir alguém a preconceitos sociais, raciais e culturais é inaceitável. Representa a coisificação do indivíduo. O ser humano é muito mais do que isso.  

A consciência da sociedade brasileira evoluiu nas últimas décadas. Esse avanço se traduz no ordenamento jurídico, que tem na Constituição Federal de 1988 a mais alta expressão dessas conquistas. O estado democrático, com suas garantias legais, é a melhor arma contra a intolerância e as violações de direito.

Instalou-se, recentemente, um debate público a respeito do Parecer 015/2010, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. O documento originou-se de denúncia feita por um cidadão de Brasília em relação ao livro Caçadas de Pedrinho (1933), obra de Monteiro Lobato (1882-1948). O requerente, funcionário público que faz mestrado em Educação, apontou situações de preconceito e estereotipia racial no livro, envolvendo o negro e o universo africano, a partir de referências à personagem negra Tia Nastácia e a animais como urubu e macaco. 

O parecer do CNE está na internet. Após análise do caso,  o órgão concluiu, entre outros aspectos, pela necessidade de formar professores capazes de lidar pedagógica e criticamente com obras consideradas clássicas, presentes nas bibliotecas das escolas, que apresentam estereótipos raciais. Recomendou que não sejam selecionados livros para o Programa Nacional Biblioteca da Escola que contenham preconceito ou estereótipo racial. Determinou que, se alguma obra selecionada para o PNBE contiver preconceito, será exigido da editora que insira, na apresentação, nota explicativa e informações sobre estudos relativos à presença de estereótipos raciais na literatura. Essa providência deverá ser adotada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho. Além disso, o parecer reforçou a importância de práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial, ressaltando o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. Devido às fortes manifestações que provocou, o documento será reexaminado pelo CNE em dezembro.

Algumas indagações surgem como matéria de reflexão.

Monteiro Lobato, pelo que escreveu nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, é um escritor racista? A resposta é clara: não. Pelo contrário, é um dos autores mais identificados com a cultura brasileira e sua diversidade. Caçadas de Pedrinho, com a turma do Sítio, é uma bela obra, Tia Nastácia é uma criatura adorável, mulher negra, espiritualmente rica, bondosa, cheia de histórias e uma espécie de guardiã da sabedoria popular.

A outra pergunta: em trechos do livro podem ser identificadas expressões que denotam estereótipo ou preconceito racial? A resposta também é evidente: sim.

Vejamos algumas passagens do livro Caçadas de Pedrinho relacionadas à Tia Nastácia:

"Emília repetiu-a, terminando assim:
- É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém - nem Tia Nastácia, que tem carne preta."

"resmungou a preta, pendurando o beiço."

"Sim, era o único jeito - e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros."

"E você, pretura?" 

"Desmaio de negra velha é dos mais rijos."

Ao longo da obra, há diversas referências a Tia Nastácia como negra e preta. São expressões com carga de preconceito sobre a cor da pele. O mesmo tratamento não é dispensado aos outros personagens. 

Apesar de conter essa linguagem que hoje não mais se aceita, o conteúdo de Caçadas de Pedrinho não é racista, porque não investe contra a etnia de origem africana, não desmerece  a pessoa negra além dessas expressões, nem lhe impõe tratamento infamante, discriminatório ou desumano.

As expressões são, antes, fruto da época e do meio. Lobato não ficou imune. No Brasil com fortes traços escravistas do início do século XX, o tratamento preconceituoso era uma realidade, infelizmente. Caçadas de Pedrinho tem origem no livro A caçada da onça, de 1924. O autor decidiu ampliar a história que foi publicada em 1933 com o novo título.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Um modo silencioso

Jorge Adelar Finatto



O poema é um modo
silencioso
de ser
e dizer
que vim ao mundo
me despedir



_______

Poema do livro O Habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998. Esses versos foram dedicados ao poeta e irmão Heitor Saldanha.

Foto: Passo dos Ausentes. J. Finatto.

Retratos

Jorge Adelar Finatto



Quem passar por esses dias em Gramado está convidado a fazer uma visita à minha exposição Retratos, que acontece na Cafeteria Bello Gusto, Av. Borges de Medeiros, 2193, centro da cidade. Imagens de Passo dos Ausentes estão lá, pra quem quiser ver, até final de dezembro. A entrada é no amor.


_________ 

Foto da exposição: J. Finatto

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Ruminante claro

Jorge Adelar Finatto


Deus me deu esse dia. Me dei a tarde de presente e saí por aí. Nunca vi tão rara composição de cores. A cidade nessa época é um quadro impressionista. Olho as coisas aqui debaixo, tristeza de não ser pássaro. É o que se vê:  luminosa aquarela: verdes, azuis, vermelhos dialogam com rosas, amarelos, brancos, ocres. No itinerário de colinas entre os bairros Moinhos de Vento e Bela Vista, há muita ladeira pra vencer. Jacarandás nas calçadas, buganvílias nos muros. Hibiscos, sim, hibiscos. Do bosque de um desmoronado casarão, escuto velhas conversas de fim de tarde, sob  a invisível pérgula. Os ausentes bebem suco de fruta há pouco colhida. Não vou falar agora do excesso de carros na rua,  do ruído, da fumaça, da fúria dos motoristas. Ninguém vai atropelar esse momento. Prossigo. Lilases flores caídas brilham no chão. Sou parte da aquarela da tarde que declina e nunca mais voltará. Habito o interior dessa misteriosa obra de arte. Do meu jeito: lento, ruminante, claro.
 
________

Foto: J.Finatto

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Meus amigos

Jorge Adelar Finatto


Não esqueçam
de me visitar
nas noites
de inverno
quando o medo
cobra caro
e as feridas
não deixam mentir

insolúvel jogo
de espelhos
entre mim
e o que fui

ando bêbado
pela casa
meu coração
é operário
desempregado
com filho pra criar
mulher feia
sem crédito no armazém

me enrosco
em invenções
inúteis
pra repartir contigo
um espaço de ternura

sinto umas
coisas estranhas
caminharem atrás de mim
um cano de fuzil
um casal de velhos famintos
um câncer
e me desagrada não ser
como certos fantasmas

convoco o
silêncio e
suas raízes

inauguro a
manhã

não, eu não sou
uma estrela
um rio
um barco
nada se compara
ao que sinto

preciso todos
ao redor da mesa
principalmente
os desaparecidos
como certos crepúsculos
que a gente vê
fogem e nunca mais

_______

Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Foto: J. Finatto

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Neblinense

Farandolino Brouillon

 
Quando hoje a neblina cercou a casa, tudo ficou  branco e deserto como um labirinto no gelo. Os seres e as coisas desapareceram. Silenciosamente fui até a janela. As silhuetas, de modo intermitente, surgiam e submergiam na névoa. Lembrei de quanta gente fugiu do retrato. Nem faz tanto tempo. Não sei mais direito que lugar é esse. Até há pouco estavam aqui, falando, gesticulando, rindo, sofrendo, contando histórias, reclamando, dando a mão. Certas ruas e esquinas moram dentro de mim, certas portas, soltas no espaço, me acenam, certas praças estão abandonadas.  Eu viajo no trem noturno que atravessa  os Campos de Cima do Esquecimento nesse absurdo itinerário. As cartas não escritas estão na mão do carteiro que se extraviou na bruma. Hoje, quando a neblina chegou de repente, envolvendo a casa, perdi meu rosto. Fiquei cego. Havia uma paisagem invisível lá fora e outra em mim. Fui andar no jardim à procura de quem sou. Muitos partiram. Estão todos cobertos, profundamente, em negras nuvens de seda.  Sou habitante de um continente de fantasmas.

_______

Foto: J. Finatto