sábado, 2 de julho de 2011

A arte de ser juiz

Jorge Adelar Finatto

Ser um bom juiz resulta de um tipo de sabedoria que não se aprende somente em livros técnicos. Nem decorre de uma progressiva conquista de graus acadêmicos. É algo maior e mais profundo.

O juiz que fará bem a seus semelhantes e trabalhará pela dignidade da vida, ao contrário de complicar e piorar as coisas, será aquele capaz de ouvir e respeitar as pessoas nas suas intransferíveis circunstâncias.

A justiça começa nas relações mais simples do dia a dia, em casa, na rua, no ambiente de trabalho, em comportamentos éticos que são, na aparência, bastante prosaicos, mas que acabam construindo todo o resto.

Amar as pessoas e a justiça é a condição primeira para ser juiz.

Não se ingressa na magistratura pensando no status da profissão, no valor do subsídio, nas garantias que cercam o cargo - que visam a proteger a sociedade e não a pessoa do juiz. Esses atrativos são insuficientes para manter alguém que não é do ramo na função. Dedicação, capacidade de renúncia, entusiasmo, reflexão e estudo permanentes são algumas das exigências.

A magistratura é a típica atividade que se destina a mulheres e homens com vocação, que buscam no ideal de bem servir a sua realização.

Pelo menos três pilares são fundamentais na formação do juiz: ética, humanismo e técnica.

Quando é que alguém se torna juiz? Muitos acham que isso ocorre quando o candidato é aprovado no extenuante concurso público, é nomeado e toma posse no cargo. Mas não é elementar assim.

A pessoa torna-se magistrado muito tempo antes do concurso. O que realmente define quem se tornará juiz é a essência e a atitude de cada um diante da existência. A luta por uma vida mais justa e solidária está na alma do julgador. Existe uma imposição de ordem interna que o leva a decidir-se pela profissão, ainda que isto não esteja muito claro na adolescência e mesmo no início da vida adulta.

A gente se prepara para ser juiz uma vida inteira, pois todo dia é dia de viver e aprender.

Coisas como agressividade, excesso de vaidade, cinismo, indiferença e fanfarronice não combinam com a toga.

Um temperamento humilde, diferente de subserviente ou arrogante, disposto a respeitar, mais do que tolerar, as diferentes visões de mundo, é sempre muito importante. Ninguém é dono do conhecimento e da verdade.

Não existe modelo pronto de juiz. O magistrado terá de construir o seu. Por outro lado, não faltam exemplos de pessoas que dignificam o ofício.

Pensar de modo mais criativo e humanista o ingresso na magistratura, e a própria construção do Poder Judiciário brasileiro, é o desafio que temos em tempos tão difíceis.

A dura realidade exige magistrados mais participantes e comprometidos com o bem-estar da sociedade. Cada vez mais o Judiciário é chamado a decidir sobre situações que afetam a vida de todos. As dores e os dramas das pessoas chegam aos juízes a toda hora em todos os dias do ano.

A busca de uma existência mais feliz e harmônica é a razão de ser da atividade jurisdicional.

O que se pede ao juiz não é que seja um super-herói, mas que decida como um ser humano sensível, e saiba olhar com os olhos do coração, com a mesma empatia com que todos – juízes e não juízes - esperamos ser tratados nas horas difíceis.

Empatia, a sua dor no meu coração.

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sexta-feira, 1 de julho de 2011

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia. Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase. Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é lugar de barbaridades. Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu.

O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O que eu fui.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar. Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão.

Bailei no ar como folha de plátano no outono, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama.

Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim.

As iluminações. Passamos a frequentar a Praça da Ausência, nas tardes amarelas daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Camafeu cravado na minha alma. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o num lugar secreto, bem no fundo de mim.

Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar. Não canto outros amores, que não tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim. Arlequim e seus guizos, seus versos de algibeira, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse. Bazófias.

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Blasona. Explorador de musas, ladrão de amores. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que eu nunca toquei.

Eu calado sonhador do fim do mundo. Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei.

Quem me visse, a face esculpida da dor. Veio o inverno. Invernos.

O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que foi quase feliz.

O sem camélia.

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Photo: J.Finatto
Do livro Calado observador do fim do mundo. Editora Vésper, 2010, Passo dos Ausentes.
Outros detalhes sobre o drama de Pedrolino em A fala do Arlequim, post de 30/10/10, e Alberta de Montecalvino, de 8/11/10.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Escutar o outro

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto

Escutar o outro é, talvez, a forma mais elevada de sensibilidade.

O mundo está povoado de seres falantes, que só escutam as próprias razões, num monólogo ensurdecedor. Cada vez tem menos gente disposta a ouvir o outro e a refletir, de coração aberto, sobre o que ele tem a dizer.

O respeito, a empatia, para essas pessoas, não têm voz e nem vez. O que importa é ter razão sempre e impor a própria vontade.

Somos inquilinos do tempo.

Existimos por um momento e depois vamos habitar a memória de Deus (aqueles que creem) ou simplesmente nos esfarelamos e não se fala mais nisso (os que em nada acreditam). A transitoriedade da vida, porém, é comum a uns e a outros.

Alguns, contudo, vivem como se eternos fossem, como se não tivessem de devolver um dia o seu quinhão de vida humana. Sentem-se livres para executar os próprios desejos e torpezas não importa a que custo. O mundo é seu. A todos querem submeter e devorar com a urgência dos vampiros (tão em voga, aliás, hoje, nas telas). Existem sem qualquer noção de limite, nenhuma ideia de bondade com o semelhante (e, menos ainda, em relação ao diferente).

O que fazer sobre isto?

De minha parte, estou empenhado em arrumar a casa do ser. Sonho e trabalho, de sol a sol, para mantê-la limpa, com ar fresco e o claro aroma das manhãs. Espero que as pessoas se sintam acolhidas nesta casa simples, com flores da estação na janela.

Sei que é possível ser solidário e atento ao próximo, ainda que o espaço para generosidades esteja cada vez menor (para muitos, é preciso ganhar sempre e de qualquer jeito, não importa a forma).

Todos estamos empenhados na árdua tarefa da sobrevivência. Mas isso não justifica a violência que vemos em todos os níveis, explícita ou dissimulada.

O sofrimento é filho da injustiça, da prepotência, da vaidade e da indiferença. Toda busca de poder sobre os outros é perversa.

Podemos viver ao lado das pessoas e não contra elas. Amorosamente, honestamente.

Enquanto estamos vivos, sentemos em volta da mesa comum do tempo para a partilha da palavra.

A partilha do pão, a partilha do abraço.

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Foto: J. Finatto

terça-feira, 28 de junho de 2011

O barco mais triste do mundo

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto

A minha paixão por barcos e navegações sempre me leva a cidades de mar ou rio. Sou um bicho das águas.

O fato de ter nascido e de viver numa cidade serrana é apenas uma das contradições que me definem.

O sonho menino de tornar-me marinheiro jamais me abandonou. Por isso, talvez, essa busca recorrente pelas águas e por embarcações.

A nostalgia dos barcos não sai do meu coração.

Em Coimbra, existe um barco de passageiros com o nome de Basófias, fundeado no pequeno cais, perto do centro da antiquíssima cidade portuguesa.

Resolvi um dia ir ao encontro do Basófias e fazer um passeio pelo Mondego, o rio que me faz sentir saudades de todos os rios do mundo.
Ocorre que, nas três ocasiões em que fui ao cais, não consegui realizar a navegação.

Numa das vezes, o barco estava em manutenção; noutra, não havia passageiros além de mim; numa outra ainda, o tempo mau não permitiu levantar âncora.

Em suma, para meu desencanto, nunca consegui navegar no Basófias. A nave permaneceu, no meu imaginário, como um barco que jamais saiu do cais.
 
A tripulação do Basófias é composta por marinheiros uniformizados a rigor, afáveis no trato. A pose e o orgulho náutico não deixam dúvida de que estamos diante de calejados navegadores.

Às vezes, fico pensando.

O Basófias, nas amarras que o impedem de lançar-se ao rio e realizar o destino para o qual nasceu, é o barco mais triste do mundo.

Mas não deixa de ter sua graça a imóvel embarcação.

De certa forma, o Basófias é a metáfora da existência de muitos.

Dele me enterneço, porque é o retrato de tantas vidas que ficam à margem, esperando no cais, esperando por uma viagem que nunca acontecerá.
 
Photo: J.Finatto
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Fotos: J. Finatto. Vistas de Coimbra (1) e do Mondego (2).
 

domingo, 26 de junho de 2011

Ilha de San Michele, ilha dos mortos

Jorge Adelar Finatto

Photo: J. Finatto

A Ilha de San Michele repousa serena diante de Veneza.

Não devemos perturbar o sossego de seus habitantes. Na gôndola em que navegamos em torno desse território calado, nada deve ser ouvido além do remo na água verde-safira. Entre os altos muros de ocres tijolos, à sombra de ciprestes, os mortos descansam na antiquíssima ínsula.

San Michele é um pequeno pedaço de terra no Mar Adriático, mas é, acima de tudo, uma metáfora.

A ilha dos mortos tem o olhar voltado desde o exílio para a República Sereníssima.

A ilha-cemitério é um testemunho da brevidade humana e um alerta contra as vaidades do mundo.

Façamos silêncio, portanto, nessa viagem pelas cercanias de lugar tão despojado.

A ísola oberva, ao largo, o frêmito dos vivos. Silenciosa mirada. O espelho das águas recolhe o espírito e as cores da cidade que se assenta sobre as cerca de 120 ilhas que formam Veneza. A história veneziana remonta aos primeiros anos da era cristã.

Os habitantes de San Michele conhecem a vocação da Sereníssima para o abismo da beleza e das paixões. Ninguém consegue ficar indiferente ao seu brilho e mistério. Veneza é cruel com os deserdados da sensibilidade, e com a bondade desprovida de malícia. Não é um lugar para onde devam ir os desiludidos da vida. Acolherá bem os amantes, sobretudo os que souberem amar seus labirintos ao longo dos canais tortuosos que se perdem na neblina do tempo.

Photo: J. Finatto

Os mortos habitam a ilha já sem pecado, distantes do ruído e do encanto da cidade amada.

Veneza chegou àquele ponto turvo da civilização em que os falecidos não têm mais para onde ir. A cidade não pode crescer. Espaço para mais um morador é coisa rara em San Michele. Os defuntos que conseguem um lugar vão para lá de barco. O cortejo e a pompa (para alguns existe pompa até na morte) dependem das posses do viajante.

Entre a sombra e a luminosidade, Veneza recebe o coração ávido de memória e arte.

A silhueta negra e esguia das gôndolas desliza lentamente.

As máscaras do carnaval observam de noturnas vitrines.

La Serenissima pertence às águas, ao ruído do vento nos telhados e pontes, aos cavalos de névoa que invadem a Praça São Marcos. Os vetustos casarões, as galerias de arte, os vaporettos e palácios mergulham no fundo espectral dos canais.

Photo: J. Finatto

As cores são fortes como a música das igrejas ao entardecer, os concertos na via pública, o traço febril de Tintoretto no Palácio Ducal.

Estamos de passagem no mundo. Devastados pelo desejo e pela beleza.

A metáfora de San Michele.

Se temos de ser ilhas, que pelo menos formemos arquipélagos com pontes e canais a nos unir, como em Veneza.

O resto são ostras e segredos na bruma dos corações.
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Fotos: J. Finatto

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Os desolados

Jorge Adelar Finatto

Photo: J. Finatto

As manhãs fogem do escuro.

A solidão é um negro capuz que se veste nos retirados da dor.

Tive medo de ver os escombros. Os difíceis haveres do abandono.   Havia uma mulher chorando. Quem? Não divulguei.

O coração humano gira em estranhos círculos. O traçado torto da vida. Quem puder se segure, senão cai no perau. Eu, quando escuto gente chorando, sinto breu andando à volta.

Coisas que vi. Meu coração barroco. Aquele choro me doeu. Mas eu fui. Foi quando meus olhos a divulgaram. A mulher era uma visão sob a pérgula. Eu não sabia o que era beleza até aquele dia.

Estava sentada num banco de pedra cercado de camélias vermelhas, ao lado da fonte. Havia uma escada com seis degraus que terminava no ar. Ligava parte alguma a lugar nenhum. A casa desmoronada no íntimo da pessoa.

A mulher, sua triste alma, naquela ruína. Me aproximei no cuidadoso jeito. Era uma tarde de junho como essa. O frio, frios. A mulher - a visão - fez sinal para eu parar e esperar. O que fiz nos respeitos. Ela se levantou, arrumou o vestido, olhou o céu. Entre as duas mãos largou a face e os cabelos de linho, depois seguiu. O tempo andou.

Eu vivia no lugar perdido, arrostando sol e vento, sem eira, sem beira. Os loucos dias no sanatório do mundo. Os ermos. Caminhos que se andam.

Um dia de fina luz de primavera ela veio em minha direção, pegou no meu braço. Caminhou, caminhamos. Em silêncio. Palavras que se dizem sem falar.  Aconteceu a brilhante estrela caindo no meu caminho.

O punhal que me rasgava por dentro foi saindo, saiu.

Nos acolhemos, reunimos as raras pertenças.

Me tornei sentimento. Sentimentos.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Passos de algodão


Jorge Adelar Finatto
Photo: J. Finatto

Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

Depois de longa e sentida ausência, ele retornou ao convívio das tardes no escritório. Conheço meu amigo de outros invernos. Partiu em fevereiro sem dizer nada, tão ao seu estilo, e me deixou aqui todo esse tempo sem poder ouvir sua voz cava e rascante, sem poder ver sua plumagem luminosa, seus olhos redondos e atentos.

Sempre sinto falta do seu olhar de banda, da maneira estrambótica de aterrissar num só pé na sacada do escritório. Alziro tem temperamento forte e, às vezes, um certo mau humor o acompanha quando o tempo está pra chuva.

Ele voltou com suas cores vivas para suavizar o inverno. Eu andava mesmo precisado de sua companhia. Não que ele converse muito. No fundo, nem é isso o mais importante.

A silenciosa presença do amigo, sabê-lo perto, partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança.

Providenciei hoje a reposição de pedaços de banana no pratinho dos pássaros, fruto muito do seu gosto.

Em certos dias, Alziro deixa a cerimônia de lado, entra no escritório, em passos de algodão, e ensaia uma pequena incursão no ambiente. Olha o teto, os lustres, a mesa, os livros, os quadros, as plantas e relógios, tudo com silenciosa atenção. Faço que não percebo para deixá-lo à vontade.

Do mesmo jeito que chega, o meu amigo vai embora. Como sempre, não se despede e nem diz quando voltará, apenas alça o improvável voo adunco rasgando o ar.

O que importa, diz o coração, é que a velha e boa amizade está rediviva. Se tudo der certo, talvez ele retorne amanhã ou quem sabe depois. Só espero que não me falte tão cedo, porque meu inventário de ausências já vai longo na vida.

Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

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Foto: J. Finatto. Alziro em visita.