segunda-feira, 19 de março de 2012

O fantasma e o menino

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


O fantasma habita a alma do menino.

Oscar é como um parente antigo, desses que um dia batem na porta, com uma mala de couro pesada, uma roupa velha, sapatos cobertos de pó, trazendo no olhar todo desamparo desse mundo.

Em noites de vento, o menino ouve o barulho das correntes no porão. Oscar agita-se muito nas cercanias do outono. O menino é o único da casa que sabe da sua existência.

Não, o fantasma não está preso, nada o impede de ir para onde quiser. Simplesmente arrasta as correntes com as mãos de um lado para outro, numa espécie de desalento que não tem fim.

Oscar é um Sísifo condenado a recordar a vida e a todos que amou e perdeu. Arrasta as recordações pelas noites de outono adentro. Não há consolo na sua solidão.

Ele tem o cabelo muito branco, escorrido até os ombros, a pele da face rosada, as mãos solitárias. Veste bermuda cinza e uma camisa branca abotoada até o pescoço. Tem o semblante vazio.

Às vezes, o menino desce ao porão, tenta conversar. Mas ele não fala a respeito do seu viver tão fatigado.

Oscar toca violoncelo, na música deposita sua frágil e dolorida alma.

Nunca olhou o menino nos olhos. Olha para as paredes de pedra com um olhar vago de quem mira o mar de cima de uma montanha. 

O menino costuma deixar a luz do porão acesa, como uma rosa branca num vaso azul de porcelana.

Há coisas em relação às quais nada se pode fazer. Mas nem por isso o menino é triste. O sol de cada dia é sempre uma nova oportunidade.

O passado é algo estranho e insuportável.

O silêncio, às vezes, fala mais que qualquer palavra.

sábado, 17 de março de 2012

Primeiro informe do outono

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Uma certa luz

Este é o último sábado de verão. O próximo será outono. Chega ao fim o longo e suado estio. Os primeiros ocres e amarelos surgem nas folhas. É tempo de passagem para uma nova luz. Quaresma. O tempo das quaresmeiras em flor.


Um certo artista

Deus é um artista caprichoso e incomparável. Só ele tem paciência e tempo (a eternidade, no caso) para pintar folha por folha, ramo por ramo, galho por galho com tamanho engenho e arte. E sua caixa de lápis de cor não tem igual no universo.

O que é o fotógrafo da natureza, senão um mero copiador da obra Dele, sem nada pagar de direito autoral?


photo: j.finatto

Que a nova estação nos traga boas notícias nas cartas do vento.


Cavalo-Marinho

Uma das coisas mais bonitas que ouvi ultimamente é a música Cavalo-Marinho, de Cacaso e Nando Carneiro, na linda voz de Rosa Emília. Está no youtube, onde alguém colocou a canção com imagens do nascimento de um cavalo-marinho. Algo raro, emocionante:

 http://www.youtube.com/watch?v=h-jI0bObvVI

O poema de Cacaso é de uma simplicidade tocante:

                            Galopa cavalo marinho
                                    me ensina o caminho
                                    que devo tomar
                                    Solta as crinas no vento
                                    galopa no vento
                                    cavalo do mar

Está no livro Mar de Mineiro (poemas e canções), de 1982.


Balaio de uva na beira da estrada

Nessa época, quem anda pelas estradas da serra costuma encontrar tendas onde se vendem uvas em balaios de vime. Também oferecem queijos, frutas, verduras, embutidos, vinhos, chás, produtos coloniais e artesanais, chapéus de palha, além de boa conversa. As tendas estão à sombra de frondosos plátanos, cujas folhas começam a dourar. Sentir o cheiro e a frescura desses lugares é voltar um pouco na infância. Às vezes, lá longe, uma cascata branca escorre numa escarpa de antiquíssimo basalto.


photo: j.finatto


Milagres

Não acredito muito em milagres, mas que existem, existem. Tanto é que estou/estamos por aqui, em mais um outono de nossas vidas. Considerando as duras vicissitudes e os entrementes, isto não é pouca coisa.


sexta-feira, 16 de março de 2012

O poema como carta

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. 



O poema
como carta
sem destinatário certo
que não vai pela mão
                                do carteiro
mas chega a alguém
e é salvo da ironia
da gaveta



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Do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.

Conversas de escritores

Jorge Adelar Finatto

photo: jornalista José Rodrigues dos Santos

Há um bom programa de entrevistas com escritores na Rádio e Televisão de Portugal (RTP), que se chama Conversas de escritores. É apresentado pelo jornalista e escritor José Rodrigues dos Santos. O apresentador conversou com alguns dos autores mais importantes da literatura mundial, como o português José Saramago e o alemão Günter Grass, entre outros.

As entrevistas são muito bem conduzidas, com perguntas pertinentes e, sobretudo, com tempo para os entrevistados responderem (coisa rara nos meios de comunicação). Não há comerciais e tudo se passa como se a conversa acontecesse na nossa sala.

Caso queiram fazer uma visita, o acesso é pelo link:

RTP - CONVERSAS DE ESCRITORES

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Fotografia: jornalista e escritor José Rodrigues dos Santos.
Fonte: http://www.livroseleituras.com

quarta-feira, 14 de março de 2012

Cacaso

Jorge Adelar Finatto



Cacaso estaria fazendo 68 anos na data de ontem, 13 de março. Em memória, reproduzo este texto publicado em 02 de outubro de 2010.

Foi o poeta e compositor Cacaso a pessoa que melhor traduziu, até hoje, o sentido do que escrevo. Devo a ele a leitura mais luminosa e mais profunda. O texto foi publicado no jornal Leia Livros, na coluna Vinte pras duas, em 1982. Era sobre meu livrinho de poemas Viveiro, lançado em São Paulo, em 1981, pelo Grupo Sanguinovo.

Fiquei surpreso e feliz com o que ele escreveu, e havia bons motivos. Cacaso é um poeta raro, dos melhores que tivemos na segunda metade do século XX*. Escreveu poemas e letras de música como poucos. Fez parcerias com Tom Jobim, Edu Lobo, Sueli Costa, Djavan, Francis Hime, João Donato, Macalé, entre tantos. Foi professor na Faculdade de Letras da PUC do Rio de Janeiro. Tinha uma leitura muito lúcida sobre o Brasil e nossa cultura. Era um intelectual refinado e, ao mesmo tempo, uma pessoa simples e generosa. Conhecia as ruas das grandes cidades e conhecia o interior brasileiro. Conhecia e amava o nosso povo.

Em 1985, tive o único encontro com ele, visitando-o em seu apartamento na Avenida Atlântica, no Rio. Recordo a ampla sala com piano de onde se via o mar de Copacabana. E uma outra sala, local de trabalho, que tinha um armário repleto de fitas com músicas gravadas. No trato pessoal, revelou-se muito atencioso, disposto a falar e ouvir.

Cacaso (Antônio Carlos Ferreira de Brito, 1944 - 1987), esse homem, esse poeta, esse pensador, foi um pecado morrer tão moço, com tanto ainda para nos ensinar, nos ajudar a entender e nos escutar.

A poesia do Jorge Adelar Finatto é breve, sem muitos volteios, incapaz de autocomplacência e dotada de uma região de silêncio que lhe comunica transcendência. O poeta vê o cotidiano como um absurdo rotineiro, um lugar onde o escândalo já não escandaliza e onde certa dose de perversidade e dureza torna-se um antídoto necessário à sobrevivência.


Cacaso

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Foto: Cacaso. Divulgação. Revista Bravo online, março de 2009. Ilustra excelente texto de Geraldo Carneiro sobre o poeta. bravonline.abril.com.br

* A antologia lero-lero, da editora Cosac & Naify, lançada em 2002, é uma bela mostra do trabalho de Cacaso.

Vale a pena visitar a bonita página criada pela cantora Rosa Emília para Cacaso no facebook:



segunda-feira, 12 de março de 2012

O prisioneiro da Ilha de Patmos

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


A família espiritual de A eram os livros. Os poucos que havia na casa, quando ainda era menino, e depois os outros, que foi amealhando feito formiga, um a um, com tenacidade e alumbramento.

A família dos livros tinha uma vantagem. Nenhum de seus membros morria ou desaparecia, o que acontecia com alguma frequência com os outros familiares.

Os livros retirados das bibliotecas por empréstimo eram parentes distantes. Traziam a aura de quem passou por muitas casas, iluminando solidões diurnas e noturnas. Guardavam o cheiro misturado dos ambientes que tinham frequentado.
 
Na casa antiga, havia muitos silêncios. Vultos moviam-se calados. Um relógio velho de parede tentava acompanhar a passagem do tempo, mas nele as horas tinham enlouquecido.

O mundo de papel e tinta surgiu para espantar os fantasmas que o amedrontavam. Sabia que, mais dia, menos dia, acabaria só, como todos.

Uma espécie de eternidade habitava os livros.

Havia um gato na casa, porque gatos gostam de histórias assombradas. No porão gelado e sombrio, coisas inúteis eram esquecidas.

Um retrato de Getúlio Vargas ocupava o centro da parede da sala, o pai dos pobres, como se dizia.

A janela do quarto de dormir olhava o nada.

A rua se chamava São João, nome do apóstolo que teve as visões na Ilha de Patmos, no mar Egeu, onde esteve exilado por falar de Deus e dar testemunho de Jesus, e na qual escreveu o livro bíblico Apocalipse (Revelação).

A rua São João era a nossa Ilha de Patmos. Ali todos eram prisioneiros de um tempo e de um lugar e o destino lhes era comum: afundar no esquecimento.

Exilados do mundo, todos alimentavam o sonho secreto de um dia fugir. Fugir para sempre, para qualquer lugar, ainda que fosse o último ato da vida.
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Texto publicado no blogue em 27, out, 2011.

sábado, 10 de março de 2012

O escravo e sinhá

Jorge Adelar Finatto


ESCUTEI o samba no rádio. Era aquela hora da tarde em que olhamos a janela sonhando fugir para algum lugar distante.

O samba Sinhá, do mais recente cd de Chico Buarque de Holanda, conta a história de um negro escravo que é levado ao tronco pelo "feroz senhor de engenho", sob a acusação de olhar a sinhá despida tomando banho no açude. É o próprio escravo quem narra o fato.

Num lamento, ele nega a imputação que lhe é feita pelo senhor, "Sou de olhar ninguém/Não tenho mais cobiça/Nem enxergo bem".

O senhor de escravos, de olhos azuis, decide furar as vistas do pobre e indefeso homem.

Na última parte do canto, quem fala é o cantor, dizendo-se atormentado, "Herdeiro sarará/Do nome e do renome/De um feroz senhor de engenho/E das mandingas de um escravo/Que no engenho enfeitiçou Sinhá".

Pelo que sugere, a relação entre escravo e sinhá foi além de um simples olhar.

Trata-se de obra-prima de Chico Buarque e João Bosco, com texto do primeiro, que resgata um bárbaro evento (fictício ou real) do período da escravidão no Brasil. Um doloroso retrato da sociedade escravocrata.

Como obra de arte, toca fundo a nossa emoção e nos faz pensar. Não será esta capacidade de nos tirar da inércia e da indiferença a virtude superior da arte?

Sinhá é um samba de alta eficácia literária, musical e humana, que resume um tratado de sociologia e, de quebra, nos faz chorar.


Sinhá

  Chico Buarque e João Bosco

Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem

Para que me pôr no tronco
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz

Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava para Xerém

Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz

E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá


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Cd Chico. Chico Buarque de Holanda. Biscoito Fino, 2011.