quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Tévye, o leiteiro

Jorge Adelar Finatto

Já não me aborreço tanto com Deus - com Deus eu já me reconciliei; aborreço-me, sim, com as pessoas: por que são elas tão más, quando podem ser boas? Por que as pessoas amargam a vida quer do próximo, quer a sua própria, quando está em suas mãos viverem felizes e contentes? (Tévye, o leiteiro, pág.181).
 
 
Tévye, o leiteiro, do escritor Scholem Aleikhem, pseudônimo literário de Scholem Rabinovitch (1859 - 1916), é um dos melhores livros publicados nos últimos anos no Brasil. Faz parte, desde logo, da estante das grandes obras que li até hoje. 

Trata-se de um clássico da literatura ídiche, publicado este ano pela Editora Perspectiva. A tradução do ídiche para o português, bem como a organização, introdução e notas foram realizadas por J. Guinsburg.

O resultado é um trabalho de raro apuro, de transferência e generosidade cultural.

Tévye, o personagem-narrador, é um judeu pobre, vive no longínquo schtetl (a cidadezinha judaica do interior da Rússia czarista), é casado com Golde, pai de sete filhas e nenhum varão. Leva uma vida dura.

Uma bela e tocante conversação dele com o leitor percorre o livro.
 
Ele fala o tempo todo consigo próprio e com Deus. Assim o vemos nos solitários deslocamentos pela floresta, desde sua pequena propriedade rural até o povoado, com sua carroça e seu cavalo. Vai em busca do pão através do trabalho de vender aos fregueses creme de leite, manteiga, queijo, nata, produzidos pela família a partir do leite tirado das vaquinhas que possui.

O leiteiro-personagem conversa, também, desde o início, com o escritor Scholem Aleikhem, a quem conta seus eventos, emoções e pensamentos para que este fixe em palavras suas histórias. O monólogo-diálogo incessante estabelece uma narrativa que chama e cativa o leitor.

É da beleza, da dureza e dos meandros da vida que ele nos fala, a partir de uma visão ao mesmo tempo prática e espiritual da existência. Nada lhe escapa do coração sensível e do poderoso olhar de observador.

As preocupações com a sobrevivência, com o futuro da família e das filhas, com as perseguições e ataques contra os judeus na Rússia dos pogroms, com as injustiças e com o sentido desta vida figuram entre os assuntos que permeiam as histórias deste homem simples e sábio (a sabedoria é simples).
 
A obra fez muito sucesso quando transposta para o teatro e o cinema com o título de Um violinista no telhado. Na forma de musical, na Broadway, permaneceu em cartaz por mais de sete anos após a estreia em 1964. No cinema, em 1971, alcançou grande êxito de público e crítica, tendo conquistado três Oscars e dois Globos de Ouro.

A grandeza do livro não permite a leviandade de tentar resumi-lo numa singela resenha. O que importa ressaltar é que se trata de uma delicada e inesquecível viagem pela alma humana.

Scholem Aleikhem (que significa em hebraico "A paz seja convosco!") oferece-nos uma visão de mundo muito rica, um conhecimento profundo do modo de ser e de estar no mundo das pessoas. Nascido na Rússia imperial, acabou migrando para os Estados Unidos por força de perseguições. Veio a falecer em Nova York, deixando extensa obra e leitores fiéis.

O notável trabalho de Jacó Guinsburg, escritor, estudioso e crítico de teatro, ensaísta, editor, professor emérito da Universidade de São Paulo, agrega uma brilhante contribuição à língua portuguesa.

O patrimônio imaterial que se incorpora à nossa cultura, com esta publicação, é inestimável.

Tévye, enfim, anda agora pelas ruas e cidades do nosso Brasil, conversando com as pessoas, dando notícias de seu/nosso mundo, tão antigo, tão atual, tão difícil quanto humano.

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Tévye, o leiteiro, de Scholem Aleikhem. Organização, tradução, introdução e notas de Jacó Guinsburg. Ilustrações: Sergio Kon. Editora Perspectiva, São Paulo, 2012.

Editora Perspectiva:
http://www.editoraperspectiva.com.br/index.php
 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Biblioteca pública: um bosque no amanhecer

Jorge Adelar Finatto
 
Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul.
Fonte: site da BPE 

Nunca esqueci - como seria isto possível? - as horas passadas no bosque das estantes da Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, na Rua Riachuelo, em Porto Alegre. Uma ilha de sol em meio à sombra.
 
Para o adolescente pobre, com dificuldades pela frente para construir o futuro, as horas vividas entre os livros foram um tempo de travessia. A entrada no bosque significava a possibilidade de sair do outro lado dentro de um mundo diferente, porque o caminhante já não era o mesmo. 
 
Naquele ambiente silencioso, iluminado por velhos lustres, mobiliado com vetustos móveis, o sonho era possível. A biblioteca foi um território de liberdade naqueles anos de ditadura militar e opressão social. A censura não podia invadir as páginas de cada livro e riscar o que considerava subversivo.
 
No bosque das estantes não havia agentes armados a caçar a emoção e o pensamento.
 
"O bosque das estantes". Foto: site da BPE.

Algumas leituras marcaram minha vida naquela época. Entre elas, uma antologia de poemas do poeta americano Robert Frost. Os Ratos e O Louco do Cati, de Dyonelio Machado. Do mesmo modo, as traduções de Vontade de Potência, do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 - 1900), e de O Caminho do Campo, do também filósofo e também alemão Martin Heidegger (1889 - 1976) (o entusiasmo com o pensamento de Heidegger durou até saber de seu envolvimento com o nazismo).
 
O contato com textos de Manuel Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Alvaro Moreyra, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Fernando Pessoa, António Nobre, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles e outros abriu veredas de luz.
 
Além da leitura, havia palestras e recitais no Salão Mourisco. Um recital inesquecível de poesia foi apresentado pelo ator Walmor Chagas. Intitulava-se Partilha, título de um belo poema do escritor porto-alegrense Paulo Hecker Filho (1926 - 2005).
 
Antigo jardim. Foto: site da BPE.

A Biblioteca Pública necessita de apoio permanente para manter vivo o seu destino de iluminar corações e mentes. Ela está lá onde sempre esteve a partir de 1915 (a construção do prédio iniciou-se em 1912), na Rua Riachuelo esquina com General Câmara (no passado distante, Rua do Cotovelo e Rua do Ouvidor). Foi criada por lei em 1871, sendo instalada e aberta ao púbico em 1877.

A missão de oferecer arte, conhecimento, beleza e esperança não pode parar.

Na vida de muita gente aquela casa foi - e é - um bem. Um bosque no amanhecer.

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Biblioteca Pública do Estado do RS: http://www.bibliotecapublica.rs.gov.br/
 

domingo, 21 de outubro de 2012

Um poema de Manuel António Pina

Jorge Adelar Finatto

O poeta vive nas palavras
 e renasce toda vez que alguém lê o que escreveu. 
A nossa homenagem ao grande escritor Manuel António Pina.


Manuel António Pina (1943 - 2012). Foto: Alfredo Cunha.
Fonte: Jornal de Notícias, Portugal.


As Vozes
                  Manuel António Pina

A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

- Quem é?
- É a mãe morta
- São coisas passadas
- Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?

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Poema do livro Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, Manuel António Pina, Editora Assírio & Alvim, Lisboa, setembro, 1999.

sábado, 20 de outubro de 2012

Adeus a Manuel António Pina

Jorge Adelar Finatto

Manuel António Pina. Jornal de Notícias, Portugal.

Fazia mais de um ano que eu lia, diariamente, as crônicas do poeta, jornalista e escritor português Manuel António Pina, publicadas na página da internet do Jornal de Notícias de Portugal. Ao abrir o notebook, geralmente ia para o endereço eletrônico do jornal, guardado entre os favoritos. Para tristeza de seus muitos leitores, ele morreu ontem à tarde, sexta-feira, aos 68 anos, na cidade do Porto, onde vivia, e o corpo será cremado neste domingo.

Essa convivência começou quando ouvi falar dele pela primeira vez, ao receber o Prêmio Camões de Literatura em 2011. Na ocasião me interessei pelo autor, pesquisei a respeito e encomendei um livro seu de Portugal, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança.

Impressionou-me nesse período sua lucidez e sensibilidade ao tratar de assuntos que iam desde os meandros e mistérios da criação literária até os angustiantes temas da atualidade, na Europa e no mundo. A coragem do jornalista convivia nele com o poeta inventivo.

Em entrevista a Sérgio Almeida, do Jornal de Notícias, em 20 de julho de 2010, declarou Pina:

Não escrevo poesia como escrevo crónicas, profissionalmente. No caso da poesia, sou antes amador, isto é, aquele que ama. Só escrevo poesia quando não posso deixar de escrevê-la. Ou, como Borges diz (acho que é Borges), quando uma espécie de incomodidade, ou de remorso, me força a procurar a poesia. O facto de passar às vezes anos sem publicar poesia não significa que tenha deixado de escrever poesia. Tenho há muito um livro praticamente pronto, reunindo poemas dispersamente publicados aqui e ali, em jornais e revistas, e inéditos. Não tenho é tido tempo (nem pachorra) para trabalhar sobre alguns poemas que continuam à procura de si mesmos. Dois ou três deles estão há anos presos por um único verso; tenho, de alguns desses versos, inúmeras versões, ou tentativas, mas não são o que procuro. Embora não saiba o que procuro, sei que, quando o encontrar, o reconhecerei. Resta-me esperar; não tenho pressa.

No final de 2011, durante permanência em Portugal, eu ia todos os dias à banca comprar o JN só para lê-lo.

Desde agosto último procurava e não encontrava suas crônicas no Jornal de Notícias. Pensei que estava em férias prolongadas ou algo assim, escrever para jornal dia após dia é negócio de doido, precisa dar um tempo às vezes. Mas não, a doença o afastava do trabalho.

Ficamos agora, seus inumeráveis leitores, sem a referência diária de seu pensamento, seu espírito e seu talento.

A palavra solidária de Manuel António Pina fará muita falta.

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Manuel António Pina:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/05/manuel-antonio-pina-premio-camoes-de.html

Manifestações dos leitores do JN:
http://www.jn.pt/PaginaInicial/Cultura/Interior.aspx?content_id=2838135&page=-1

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Polifonia da primavera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Vale do Olhar

 
Regressei há pouco da caminhada polifônica que fiz durante os dois últimos dias.
 
Colhi essas e outras imagens com a Coruja durante a andança.
 
O tempo bom de primavera foi ideal para a perambulação, anotações e fotografias nas cercanias do Vale do Olhar. Uma das visões mais bonitas que se tem aqui nas alturas de Passo dos Ausentes.

Me hospedei na Casa de Taipa, lá montei o escritório de campanha, também lugar de repasto e repouso.

photo: j.finatto
 
Nesses Campos de Cima do Esquecimento, habita uma das mais sensíveis e remotas paisagens que conheço, nem em revistas vi alguma vez coisa assim. Lugares povoados ainda com bichos e mata nativa.
 
Um surpresa que tive foi reencontrar o peixe da boca vermelha no Lago da Ausência. Há cerca de três anos tivemos nosso primeiro encontro, quando o descobri - ou ele me descobriu? - e fotografei pela primeira vez. Nunca mais nos encontramos.

photo: j.finatto
 
Como da outra vez ele surgiu do nada, do fundo das águas e veio até perto da margem onde eu estava. Deixou-se fotografar novamente. Conversamos um pouco na língua dos peixes, trocamos notícias e lembranças.
 
Depois encontrei o pássaro amarelo que eu não conhecia. Uma beleza de cor. E ainda por cima canta com uma voz sublime.

photo: j.finatto
  
Muitas outras coisas e seres vi, registrei e oportunamente virão para cá.

Os ventos de outubro sopram viagem em todas as direções.

Um tempo de celebração das seivas.

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O peixe da boca vermelha:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/08/o-peixe-da-boca-vermelha.html
 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Por quem choras, Maria Filipa?

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto. Amsterdam

 
Choravas à beira do canal na tarde de domingo.

Me olhaste com os olhos mais tristes do mundo. Passageiro efêmero no barco, numa cidade distante e povoada de labirintos, eu nada podia fazer.

Eu estava de passagem entre um cais e outro, um quarto e outro, um deserto e outro.
 
Devia talvez ter me jogado nas águas turvas daquela tarde de domingo em Amsterdam. Nada era mais importante do que ir ao teu encontro.

Devia ter passado o resto do dia contigo, em silêncio, ali naquele banco, sem nada dizer (palavras só atrapalham).

photo: j.finatto. Amsterdam
 
Quem mastigou teu coração, pisou em cima e depois jogou no fundo das águas?

Por quem choras, Maria Filipa?
 
A cara de anjo, o capuz azul da solidão, os olhos mais tristes acompanhando o barco que passava, me olhavas.

Da minha solidão eu te acenei.
 
Foi tudo que fiz dentro do barco inútil. Mas por um instante tuas lágrimas secaram e teu olhar seguiu a embarcação. Depois tua cabeça caiu sobre o colo outra vez, onde tuas mãos pálidas repousavam.

photo: j.finatto. Amsterdam

O barco sumiu sob as pontes. 
 
Entre dois cais, entre dois nadas.
  

domingo, 14 de outubro de 2012

Julio Cortázar e Porto Alegre

Jorge Adelar Finatto

 
A literatura passa um sentimento de permanência das coisas. Nós passamos, as palavras escritas ficam. A maior parte dos livros dura muito mais tempo do que as pessoas.

Os escritores que escolhemos para nos acompanhar na travessia são fundadores dessa eternidade de papel. Os livros fazem parte do que somos.

A lembrança mais remota que associo ao nome do escritor argentino (que escritor!) Julio Cortázar (1914 - 1984) é dos primeiros tempos de estudante universitário em Porto Alegre. O ano 1976, tinha dezenove anos. Estava lendo Histórias de Cronópios e de Famas e As Armas Secretas.

A fila do restaurante universitário era torturante pra quem tinha que ir pro trabalho cedo da tarde como eu. Estudante pobre, precisava trabalhar pra sobreviver, como muitos. Nas filas do r.u., lia Cortázar. Então, aquele era também um bom momento do meu dia. Depois li outros livros dele.

Agora, lendo Papéis Inesperados (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht), livro de 490 páginas, com textos inéditos do escritor, publicado originalmente em 2009, vinte e cinco anos após sua morte, reencontro Cortázar. No Brasil, o livro foi lançado em 2010 pela Civilização Brasileira.

Os textos - encontrados em uma velha cômoda, na casa onde morou o autor, em Paris, por sua viúva Aurora Bernárdez - são poemas, contos, outras histórias de cronópios e de famas, outros episódios de Um tal Lucas, um capítulo de O Livro de Manuel, discursos, prólogos, artigos de arte e literatura, crônicas de viagens, etc.

A felicidade de encontrar material novo do autor, tantos anos depois, é muito grande.

O dado inusitado e, para nós que amamos a literatura de Julio Cortázar, muito gratificante foi descobrir uma menção a Porto Alegre no texto Never stop the press, onde se lê a frase "uma vista escolhida do Tirol e/ou de Bariloche e/ou de Porto Alegre" (pág. 117).

Sei que Cortázar gostava do Brasil, onde esteve pelo menos em duas ocasiões, e que admirava, por exemplo, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, além de apreciar nossa música, especialmente Caetano Veloso, mas ignoro se alguma vez esteve em nossa cidade.

De qualquer forma, ver Porto Alegre nesse texto de Cortázar, ainda que só de passagem, dá o que imaginar. Pensando bem, acho que ele tinha muito a ver com essa cidade povoada de barcos e crepúsculos, jardins escondidos no fundo de casas desaparecidas, silenciosos gatos caminhando sobre muros cobertos de hera, ruas esquecidas, fantasmas.
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Publicado em 11 de agosto, 2010.
Fotos: capa de Papéis Inesperados e Julio Cortázar (
http://www.juliocortazar.com.ar/)