quarta-feira, 6 de março de 2013

O retrato de Iberê

Carlos Alberto de Souza

Retrato de Iberê Camargo, por Graça Craidy;
acrílica sobre tela, 2013

Nos estertores, ele encontrou forças e deu uma entrevista bombástica, criticando o mundo das artes. Não era homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos nem na hora da morte.
 
Na condição de jornalista, mantive contato com Iberê Camargo.

Evito dizer "conheci Iberê Camargo", porque poderia estar dando a ideia de uma relação íntima de amizade que não houve.

Volta e meia a redação do jornal de São Paulo pedia ao correspondente de Porto Alegre que ouvisse o artista sobre isto ou aquilo. As pautas não eram exclusivamente relacionadas com as artes plásticas.
 
Lembro que uma vez o pedido foi para ouvi-lo sobre controle de natalidade. Nunca esqueci a resposta: “É preciso costurar a boceta dessas mulheres”, disse ele, em alto e bom som, ao ruborizado repórter.
 
Acho que essa declaração revela um pouco da personalidade de Iberê. Ele era franco, direto, intenso, falando ou pintando. Não era homem de fazer média.
 
No livro de contos que publicou, No Andar do Tempo, ele próprio diz não ser homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos. Lembro ter visto essa frase estampada como epíteto em uma das paredes do Margs no dia do seu velório, em agosto 1994.
 
O historiador Décio Freitas, amigo do peito de Iberê, contou certa vez que o empresário Jorge Gerdau Johannpeter desejava ter um retrato seu de autoria do artista, depois de se entusiasmar com uma obra do gênero que encomendara tendo a sua mulher como modelo.
 
Iberê teria recusado a oferta do “rei do aço” sob a alegação de que seu rosto não lhe dizia nada, não lhe causava inspiração e que olhar para ele era o mesmo que olhar para um “ovo”.
 
Há mais de 20 outonos estive, a trabalho, na casa em que Iberê morou na Cidade Baixa. Era um sábado, a conversa foi no pátio para aproveitar a mornidão do sol da tarde. Havia um fotógrafo junto. Se a memória não falha era Achutti, que muito fotografou Iberê e sua obra, a ponto de editar o livro Iberê Camargo por Achutti.
 
No fim do papo, em meio às despedidas, Iberê me surpreendeu: “Aparece qualquer hora que vou fazer um retrato teu”. Quem não ficaria seduzido por esse convite?
 
Mas, constrangido, nunca apareci. E oportunidade não faltou. Como trabalhava no Centro, às vezes encontrava o velho Iberê caminhando pela Rua da Praia, anônimo no meio da multidão.
 
Em uma dessas vezes, metido em um casacão que lhe dava ares parisienses, queixou-se que um dos efeitos colaterais da medicação à qual estava submetido para combater o câncer era a falta de saliva, e mostrava a boca tão seca quanto a sua Restinga natal. Esses encontros eram fortuitos, mas havia afetividade neles.
 
Estive na casa de Iberê no bairro Nonoai, onde ele também tinha o ateliê, nos seus derradeiros dias. Lembro do abatimento de sua mulher, Maria, e da filha.

Nos estertores, ele encontrou forças e deu uma entrevista bombástica, criticando o mundo das artes. Não era homem de tocar nas coisas com a ponta dos dedos nem na hora da morte.
 
Em poucas pinceladas, pela superficialidade da relação que mantive com ele, pinto esse quadro de Iberê, mantendo na memória o que ele pintou de mim naquele sábado outonal, apesar de nunca tê-lo executado por indesculpável omissão do modelo.
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Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.
smcsouza@uol.com.br
Graça Craidy é publicitária, professora, escritora, artista plástica. Mantém o blog:

segunda-feira, 4 de março de 2013

Escritores fantasmas reúnem-se em Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Uma tapera solitária, à beira da ruína, será o local de reuniões do Congresso dos Escritores Fantasmas de Língua Portuguesa, a realizar-se nos primeiros dias do outono em Passo dos Ausentes.

O evento é uma das principais atrações culturais dos Campos de Cima do Esquecimento, ao lado do festival Música do Fim do Mundo, que acontece em junho, e do Teatro Kabuki na Névoa, em novembro. A sessão de abertura ocorrerá no dia 22 de março próximo.

O fantasma de Fernando Pessoa está entre nós. Foi o que declarou ontem Heitor dos Crepúsculos, poeta suicida, assombração-mor da cidade, organizador do conclave. Disse, ainda, que o bardo português é o anfitrião designado para o congresso. Também já chegaram os fantasmas de Oscar Wilde, Rainer Maria Rilke e Bashô, convidados especiais que serão homenageados nesta edição.

Estão todos hospedados na pensão Ao Viajante Solitário, com ampla vista para o Vale do Olhar. O atual administrador do estabelecimento, António Alto da Noite, afirma que os fantasmas literatos não são maus hóspedes:

- Não comem nem bebem nada. Não usam o banheiro nem tomam banho. Em geral fazem silêncio. Às vezes arrastam móveis, principalmente nos dias de chuva (neste lugar chove pelo menos uma vez ao dia). Materializam-se a qualquer momento, mas não costumam demorar. É gente de sossego, leitura e sentimento. São estranhos, claro. Mas cada um no seu cada qual. No café da manhã, sentam-se calados ao redor da mesa, olhando um ponto invisível à frente. De repente, desaparecem. É o jeito deles.


fachada da pensão Ao Viajante Solitário.
photo: j. finatto


A solidão da escrita será um dos temas do encontro, que terá ainda a leitura de textos pelos próprios autores na biblioteca da cidade, programa aberto ao público.

Mocita de La Vega, diretora da biblioteca e única funcionária, organiza o Salão dos Passos Perdidos para receber os poetas, escritores e convidados. Está tirando o pó dos móveis e livros e organiza o fichário, um tanto abandonado nos últimos 30 anos devido à falta de leitores (a população reduziu-se pela metade, a juventude não fica mais aqui). A diáspora dos ausentes.

Revelou a bela bibliófila que, ao passar o espanador numa mesa, ficou surpresa ao ver o fantasma do poeta Rilke sentado na poltrona diante da janela dos vitrais roxos. Vestia casaco e calça de lã cinza-escuros e uma gravata lilás sobre a camisa branca. 

Ao ser descoberto, o poeta de Praga descruzou as pernas, esboçou um meio-sorriso e, levantando-se, convidou-a pra dançar. O vate das Elegias de Duíno segredou-lhe coisas à concha do ouvido. Um perfeito sedutor na palavra escrita como na falada, segundo Mocita. E saíram os dois a rodopiar entre as estantes, sob os lustres de cristal, bailarinos de um tempo fora do tempo, ao som de uma inaudível melodia sentimental.

Heitor dos Crepúsculos, acolhedor-geral do encontro, é a alegria em pessoa nos últimos dias, voa de um lado para outro, toma mil providências, fazendo esvoaçar sua echarpe cor-de-rosa. Materializa-se e desmaterializa-se com grande animação em toda parte, deixando no ar um pó branco cintilante.

Quando menos se espera, Dos Crepúsculos aparece sobre a copa de uma árvore estendendo um tecido de seda. Outras vezes, espalha bandeirinhas coloridas nos portais das casas ou desfiando novelos de lã em torno dos bancos da Praça da Ausência. Todos notamos um certo exibicionismo da parte de Heitor, mas afinal é o momento dele. E fantasmas são, por natureza, exibidos, do contrário não seriam fantasmas.

Passo dos Ausentes engalana-se para receber os voláteis escrevinhadores. Até jornalistas do Japão estão chegando para acompanhar o fantasmagórico evento.

Desde que a cidade foi fundada por alguns padres jesuítas e famílias de índios guaranis sobreviventes do massacre de São Miguel das Missões, em 1756, não se via tanto entusiasmo por estas bandas.

O blogue acompanhará de perto o congresso, que já tem confirmadas as palestras de Machado de Assis, Lima Barreto e Eugénio de Castro. A programação completa bem como o nome dos participantes serão divulgados nos dias vindouros.

Um painel que promete, segundo alguns comentam, é aquele sobre os escritores mortos-vivos, isto é, os que estão vivos mas não têm leitores. Cerca de 1.200 mortos-vivos já se inscreveram para este dia. A este respeito, assim se manifestou Heitor dos Crepúsculos:

- A parte do esquecimento que nos cabe, nesse mundo de ruidosas vaidades e egos exacerbados - o velho mundinho da literatura -, é pequena se comparada à dos escritores mortos-vivos. Nós, pelo menos, não temos contas pra pagar nem espelho em casa.

domingo, 3 de março de 2013

Relâmpago Basquiat*


Jean-Michel Basquiat, sem título, 1981.
Direitos: The estate of Jean-Michel Basquiat.


*Texto do escritor espanhol Antonio Muñoz Molina, publicado no caderno Cultura do jornal El País, nesse sábado, sobre Jean-Michel Basquiat:

http://cultura.elpais.com/autor/antonio_munoz_molina/a/

sábado, 2 de março de 2013

Um amor

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


La speranza di pure rivederti
m'abbandonava.
                         Eugenio Montale


No mais remoto deserto
- o sal e o labirinto do tempo
amadureço o poema

E parece que para encontrar-te
tinha de perder-te um dia

Colho no caminho as pétalas
da rosa que não te dei
e distraída desfolhaste


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Poema do livro O Fazedor de Auroras, JAFinatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990
A esperança de ver você de novo me abandonava, tradução livre do verso de Montale.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Peixe vivo

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: j.finatto. Rio Guaíba
 

Em 1975 eu tinha menos de 20 anos, o coração batia no escuro e nada estava perdido.

Carregava comigo alguns poetas mortos. A palavra estava viva.

Esse tempo ficou adormecido como um pôr-do-sol no fundo do rio.

O tempo era noite calada.

A ditadura maltratava os corpos e o pensamento, a livre circulação da emoção, das idéias. Manchava com tarjas pretas a verdade nas bocas e nos jornais.

Mas havia gente que não desistia.

Os pássaros resistiam na praça.

Escondida como um segredo, havia uma rua quieta com perfume de açucena.

Eu trazia na alma a felicidade de estar vivo. Perdoai.

Existia um certo olhar, um cabelo em cacho nos ombros, uma saia azul adolescente. Esse olhar e esse cabelo inventavam um jeito de ser feliz. Habitavam um lugar claro na escuridão.

O Guaíba fazia o trabalho de levar nossas lágrimas para o mar em negros cargueiros.

Havia eu estar vivo e ter menos de 20 anos.

Havia aquela estrela brilhando na minha vida, apesar das bombas de gás lacrimogêneo, das prisões, dos desaparecimentos, do medo.
 
Coração aberto, peixe vivo.

O azul e branco do céu desenhado nas águas e naqueles olhos.

Um peixe voava entre as nuvens. Perdoai.

Sobrevivi àquilo em secreto, como quem descobriu um tesouro na ilha de pedra enquanto a cidade dormia.

Existia o rio, seu caminho largo para o sul em direção ao oceano.

A luz amarela do sol escorria entre as folhas e os galhos da Praça Dom Feliciano. Lilases habitavam as flores dos jacarandás.

Havia uma promessa de primavera. Eu tinha menos de 20 anos.

De passo em passo o tempo se cumpria. De mão em mão a manhã se erguia.

Não era ainda a primavera o que se via, mas um rascunho de flor no gradil da janela.

O coração colado à esperança.

Tinha o rio no fundo daqueles olhos, o horizonte de mar, o líquido azul infinito.
 
O sentimento navegava ao largo da cidade, seus medos e seus mortos.

O tempo era noite calada.

Tinha menos de 20 anos, a vida saltava feito peixe vivo.

A estrela brilhava em meu caminho. Perdoai.
 
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Texto publicado em 22 de dezembro, 2009 (primeiro texto do blog).
 

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A hora do beija-flor

Jorge Adelar Finatto

beija-flor com névoa. photo: j.finatto
 
Observando com atenção, há um beija-flor na ponta do ramo de magnólia. Ele está pousado no galho pensador, os olhos semicerrados, pensando na sua vidinha. Um momento de pausa no seu dia. Ninguém é de ferro.

Há de ter lá os seus compromissos o beija-flor, uma casa pra voltar, filhos pra criar, contas a pagar, preocupações de quem vive neste mundo difícil.

Mas nesse momento ele precisa ficar sozinho e em silêncio. Precisa disso pra saber quem ele é. Porque, às vezes, na dura faina da sobrevivência, a gente esquece quem é.

A nossa face perde-se na multidão. Um estranho passa a viver através de nós.

Na maior parte da vida cumprimos deveres, tarefas, horários, saímos e chegamos apressados, dormimos sonos interrompidos por relógios e pesadelos, sonhamos um sonho alheio, corremos todo o tempo até a exaustão, e agradecemos por não perder o emprego nem levar um tiro.

Austeras solidões nos habitam. Rígidos papéis nos aguardam todos os dias, implacáveis, inadiáveis.

O mundo espera que ponhamos a máscara de granito ao nascer e não a retiremos nunca mais. Haja Deus!
 
No caso do beija-flor, querem que ele seja sempre e eternamente a mesma ave descrita nos manuais: apodiforme, penas pequenas, úmero robusto e cúbito curto, que se alimenta do néctar das flores e de insetos minúsculos. Igual a milhões de outros beija-flores que vivem no planeta, também conhecidos por nomes estranhos como binga, chupa-flor, chupa-mel, cuitelo, guainumbi, pica-flor. E por aí.

O beija-flor personagem deste texto tem vida interior, seus próprios sonhos e pensamentos, não quer ser igual a nenhum outro existente no mundo.

No fundo, é um poeta o nosso beija-flor. Passa o dia procurando quintais, praças e jardins, não só para alimentar-se, mas para fugir dos predadores e da loucura das pessoas, e para ter um momentozinho de contemplação.

Sim, a nossa pequena ave interioriza-se para poder melhor observar as coisas e os seres, senti-los, talvez escrever alguma coisa.
 
Agora, calado e enovelado em si mesmo, no repousante galho da magnólia, o que o beija-flor quer é ficar só, distante, tentando reunir os fragmentos, reconstruir-se com o que sobrou (se é que ainda existem asas e cores suficientes do pássaro que um dia ele foi), longe dos olhares intrujões, das mesquinharias cotidianas e do fotógrafo abelhudo.

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Heráclito e o espelho:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/02/heraclito-e-o-espelho.html
Texto revisto, publicado antes em 27 de fevereiro, 2013.
 

Série Retratos 11




 
 
 
 
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photo: Jorge A. Finatto
Cais da cidade de Rio Grande
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