sexta-feira, 24 de maio de 2013

Composição

Jorge Adelar Finatto
 
 
Van Gogh (O mar em Les Saintes-Maries-de-la-Mer, 1888)
Van Gogh Museum, 20 digital highlights


O anjo tombou morto
na terra alheia de uma tela

Van Gogh imagina Gauguin
asfixiando o anjo no jardim
com as mãos queimadas de sol

Dali encoberta a face de granito
com o manto de brilhantes
os brilhantes despojados do anjo

Di Cavalcanti entristece: era uma mulata
o anjo assassinado nas cores do jardim?

Portinari retira-se melancólico
Picasso adentra a gruta de um olho

A noite cai pesada de remorso

Nesse instante todos dão-se as mãos
e cantam a canção predileta do anjo
em volta do corpo estendido no chão

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Um fantasma lê Mallarmé

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Stéphane Mallarmé


A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.*
Stéphane Mallarmé
 
Uma certa invisibilidade costuma andar comigo. De tal modo passo sem ser percebido, como um fantasma. Em ambientes com bastantes pessoas essa característica mais se acentua. Costumo ser um fantasma discreto, do tipo que não se dá na vista e não assusta ninguém. Desses que não derrubam coisas dentro de casa nem fazem barulho nos quartos vazios nem conversam nas escadas e corredores quando todos dormem alta noite.
 
Existem fantasmas absolutamente exibidos e inconvenientes. Dão-se a conhecer sem a menor cerimônia, com efeitos especiais de sons, luzes, névoas. Esses perdem rápido a credibilidade. Ora, nem sempre estamos dispostos a ver e muito menos receber um desses estranhos visitantes.
 
Heitor dos Crepúsculos, o jovem poeta suicida que se jogou do Penedo da Saudade, no alto do penhasco, aos 27 anos, em 1953, é um volátil bastante habitual em Passo dos Ausentes. Ele não incomoda ninguém. Pelo contrário, sua presença é reservada como um segredo. Agora, por exemplo, ele está aqui no escritório comigo, sentado na poltrona, enrolado no capote preto, manta lilás, a perna direita largada sobre o braço do assento. A negra cabeleira escorre-lhe até os ombros.
 
Traz nas mãos um volume de poemas que pegou na estante. Trata-se de um livro do poeta francês Stéphane Mallarmé (1842 - 1898). Nele se lêem versos de fina, inusitada e bela construção. O homem foi um artesão caprichoso e trabalhador.

Mallarmé criou maneiras diversas de dizer velhas coisas, modos que se prolongam como ecos no fazer poético dos que vieram depois:

nessas paragens
                               do vago
                                               onde toda realidade se dissolve**
 
O meu silencioso visitante passa a tarde lendo os poemas de Mallarmé. É tranqüilo, não atrapalha em nada o meu trabalho. E, pensando bem, é boa companhia nessa tarde longa, austera e fria de outono nos Campos de Cima do Esquecimento.

Quando volto ao escritório, depois da pausa para o café passado no bule e as roscas de polvilho, ele não está mais. Deixou o livro sobre a mesa com um evanescente bilhete:
 
Não importa a tempestade na montanha ou o silêncio da gruta perdida, o claustro onde vivo. Viver a cada instante sempre é a última oportunidade. Eu só descobri depois de voar sobre o penhasco.                                                                                                                      Heitor

Viajo pelo cosmos nesses 50 metros quadrados de quinquilharias, livros, plantas, pássaros no entorno, a perscrutar o silêncio que esconde e prenuncia a revelação, no correr das fontes subterrâneas, enquanto passo/passamos e não quero que a luz do sol se apague em volta do mundo. Trabalho pela dissolução da treva, espero amanhecer nos corações.
  
_________________
 
Mallarmé. Estudo crítico, apresentação da obra e poemas traduzidos por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Editora Perspectiva, São Paulo, 2010.
*O verso em epígrafe é o primeiro do poema Brisa Marinha.
** Verso do poema Um lance de dados jamais abolirá o acaso.
Escritores fantasmas reúnem-se em Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/encontro-reune-escritores-fantasmas-em.html
 

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Racismo à brasileira

Jorge Adelar Finatto 
 
Chico Buarque
 
Nós não somos brancos. O nosso valor é a miscigenação. 
Chico Buarque de Holanda
 
Um dos mitos da civilização brasileira é o da democracia racial. Embora a miscigenação faça parte da nossa formação, a igualdade de tratamento está longe de ser uma realidade, ainda que formalmente assegurada no ordenamento jurídico.

Chico Buarque de Holanda revelou que a família de sua filha (casada com o músico negro Carlinhos Brown, com o qual tem filhos, netos de Chico) foi alvo de discriminação no condomínio onde tinham apartamento, no Rio de Janeiro. Por essa razão, saíram de lá. Em lúcido depoimento, Chico Buarque falou sobre o problema do racismo no Brasil (o vídeo está no youtube).

O preconceito de cor é tratado por muitos como algo inexistente ou vago. Mas a negação não resiste às evidências. Se os netos do grande Chico Buarque enfrentam esse problema, o que dizer dos outros milhões e milhões de brasileiros de ascendência africana espalhados por este país-continente? 
 
Há um "defeito de cor" que impregna as relações sociais no Brasil.

Para além da hipocrisia, o fato é que a pele negra ainda é discriminada. Existem avanços em função das lutas por igualdade, mas o caminho é difícil. 

A ironia nessa história é que somos um país essencialmente mestiço. Os racistas brasileiros não têm espelho em casa. E se têm não enxergam a própria imagem. Somos uma mistura de sangue negro, índio e de tantos outros sangues que por aqui chegaram a partir do século XVI.

Dificilmente haverá família, no Brasil, que não tenha origem na miscigenação. Os racistas daqui são ridículos e delirantes na sua fabulação arianista. Não sabem, muitos por ignorância e outros por má consciência, que desprezam o que há de melhor em si mesmos, ao negar a sua/nossa natureza misturada.
    
Como o preconceito não passa recibo (até porque racismo é crime no Brasil), ele é na maior parte das vezes dissimulado, escamoteado, esconde-se nas reticências, nas evasivas, nas entrelinhas, no cinismo, na rejeição tácita, no silêncio cúmplice.
 
A "raça" humana é uma só. As diferenças físicas, culturais, religiosas, etc., fazem parte da unidade universal que é o ser humano. Já é tempo de reverem-se conceitos ditos científicos a respeito de "raças". As diferenças tendem a mitigar-se com a união cada vez maior entre pessoas de origens diversas.

Prefiro falar, ao invés de raça, em origens étnicas, que compreendem caracteres físicos e culturais.
 
O Brasil ainda será uma democracia racial. Acredito que a maioria da nossa população anseia por isso. O cerco cada vez maior à hipocrisia com ações afirmativas - como a das cotas nas universidades para afrodescendentes e índios - nos dá essa esperança.
 
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Uma decisão para reescrever o Brasil:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/04/uma-decisao-para-reescrever-o-brasil.html
O escravo e sinhá:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/03/o-escravo-e-sinha.html
O crédito da foto será dado assim que conhecido o autor. 

sábado, 18 de maio de 2013

Escrever em língua portuguesa

Jorge Adelar Finatto

photo: Fernando Pessoa
fonte: Casa Fernando Pessoa*
 

 
Um escritor disse que a língua portuguesa tem pouco alcance, é entendida por um número reduzido de leitores no planeta. Lamentou que estamos muito longe da realidade de quem escreve em inglês. Ficamos circunscritos aos países que têm o idioma de Fernando Pessoa como língua oficial, além de antigos enclaves portugueses como Goa e Macau.

Pois eu não sofro essa angústia. As minhas inquietações de escritor amador - no duplo sentido de quem ama o que faz e não sobrevive deste fazer - são mais modestas. Não me tira o sono a maior ou menor influência de escritores de dicção portuguesa no mundo. Não faço, aliás, distinção entre autores a partir do idioma em que escrevem ou da nacionalidade, mas a partir do sentido de suas palavras.

O português é a nossa língua do coração. É através dela que expressamos nosso ser no mundo. É um prazer imenso falar, ler e escrever na língua de Camões, João Guimarães Rosa, Cartola, dona Maria Antônia da floricultura.

Estou mais preocupado com o fato de viver num país com quase 200 milhões de almas e que tem tão poucos leitores. Me entristece não ser lido por pessoas que falam a minha língua e que moram na mesma rua que eu, no mesmo bairro, na mesma cidade e até no mesmo edifício.

A questão que me toca diz respeito à pouca participação, na vida cultural, das populações dos países de expressão portuguesa, fruto do atraso que também atende pelo nome de injustiça social nesses lugares.
 
Claro que gostaria de ser lido em Paris, Tóquio e Londres, mas já estou me preparando para não ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. A menos que haja uma revolução no mundo das letras, a começar pela descoberta, por parte de meus vizinhos, de que eu escrevo.

Tudo leva a crer que continuarei desconhecido no meu próprio idioma. (Mas se daqui a cinco minutos, ou três mil anos, alguém se debruçar sobre estas linhas, acho terá valido a pena.)

No fundo, no fundo, penso que livros e autores, como todo o resto, estão votados ao esquecimento, com raríssimas exceções. Mas ninguém deve desanimar por isso.

A língua portuguesa e seus escritores têm um lugar no mundo. Esse lugar será tanto mais importante quanto maior for nossa capacidade de formar cidadãos e leitores em nossas sofridas nações.
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Site da Casa Fernando Pessoa (Portugal):
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2233
Texto revisto, publicado antes em 6 de junho, 2011. 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

A sombra da esfinge

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

Como ele nunca teve pai para amar, sempre lhe pareceu que a coisa mais em falta no mundo não é dinheiro nem qualquer outro bem, mas um abraço de pai.

Quando menino, era difícil explicar aquela ausência para os outros. Na rua e na escola, as pessoas botavam olho, cara de admiração. Não ter pai era mesmo que não ter um braço ou uma perna.

A sombra da esfinge o perseguiu nos dias dos pais, aniversários, natais, páscoas, reuniões da escola, fins de semana, noites e dias sem fim. A falta projetou-se nos sonhos e pesadelos do menino.

O tempo passou. Um dia ele descobriu que outras casas também não tinham a figura misteriosa. Só que muita gente escondia isso. Estranho: escondiam um ser que não existia. Ocultavam o mito. Alguns possuíam apenas uma deprimente imagem de homem no sofá da sala.

Os sem-pai já não eram exceção. Talvez fossem maioria.

Ficou nele a idéia de que as mulheres, e não os homens, faziam o mundo funcionar.

Na verdade não era um consolo, mas a consciência de uma espécie de mutilação. Sempre faltava um pedaço.

A humanidade é toda seqüelada, ele pensa, enquanto caminha com o filho pela mão na praça do bairro, domingo à tarde. Pra ele agora todo dia é dia dos pais.
 

terça-feira, 14 de maio de 2013

Os fascistas

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto



Os fascistas
escolhem sempre
as prisões
à benignidade do sol

mas os poetas
continuarão
violando
as sombras


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Do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás e rosa o coração.

O amor tocou músicas no som do carro e do apartamento. O amor pintou de azul e amarelo as flores do vaso da sala. O amor tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.
 
Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem juntos ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.
 
Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da remota ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer que ele não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem morar juntos.
 
Sente-se um morto-vivo sem aquela que o salvou da solidão de náufrago.  Ela foi a sua primavera.

Uma colega de trabalho disse-lhe que ele é muito certinho. A vida, não.
 
O fato é que, um dia, ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais.
 
A família que, no passado, foi unida, agora vive dividida, os irmãos quase não se convivem.
 
A mãe, que em vida tecera com dedos de fada os frágeis laços do afeto familiar, também morreu antes do tempo. Ninguém a substituiu na rara arte de evitar e, sobretudo, de colar os cacos. Os cristais se partiram.
 
Ele voltou a viver no ermo distante da ilha. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os antigos amigos transformaram-se em conhecidos, foram casando, criando filhos, separando, mudando de rua, de bairro, cidade, país.

O seu mundo reduziu-se ao apartamento, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados e às impiedosas tardes e noites de domingo.
 
Teve poucos relacionamentos depois, coisas entediantes, sem nenhuma importância. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar, procurar sentidos. E não os encontra.
 
Sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas e insignificantes memórias que o invadem, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é pura diversão, para ele é vertigem. Se ao menos não sentisse as coisas.

O lugar onde vive - a longínqua ilha - só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar doméstico ao tugúrio. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.
 
As hortênsias acendem as manhãs de verão, iluminam a casa.
 
A janela é o ponto de referência dele no planeta.
 
Dali pode ver a praça e as pessoas nela, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.
 
De qualquer parte do universo um observador pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está na janela tomando chimarrão. Só.
 
No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado no mundo.
 
O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.
 
A solidão o faz acariciar o gato invisível, na frente da televisão, até adormecer.
 
Se fez acompanhamento psiquiátrico para esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho a si mesmo, sem saber o que fazer com as mãos quando está sozinho.

O outono chegou com um cesto florido de lembranças dela. Vive de memória.
 
Os dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.
 
A praça está vazia agora. Recorda-se dos dias em que caminhavam juntos ali.

A ausência da primavera faz o coração girar louco na ventania.
 
Se ao menos tivesse um gato de verdade.

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Texto revisto, publicado originalmente em 17 de fevereiro, 2010.