domingo, 2 de junho de 2013

O corpo doce da chuva

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


a noite passada fiquei ouvindo a chuva no telhado.

desliguei a luz, fechei o livro, afundei na poltrona do escritório, pra ficar só com o som da chuva,

nas telhas, em volta da casa, nas árvores, no verde balde cantante do jardim.

fiz silêncio para ouvir. a voz da chuva.

me levou pra bem longe.

uma chuva como da primeira vez que choveu no mundo.
 
a chuva que alguém sentiu na pele há 6 mil anos num jardim perdido.

o som da chuva é música ancestral do mundo, a canção principial.

a chuva espalhou-se em mim e me arrastou pra longe do que eu sou, chuva boa de fugir nela.

imemorial e materna, colo pra dormir. 
 
fiz silêncio até me sentir parte da chuva, até me diluir no seu ventre, no seu corpo doce e molhado,

até me esquecer.
 

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Clarice

Jorge Adelar Finatto
 
Clarice Lispector
 

Eu vinha  torto de leituras difíceis, arrastadas, porque livro é um troço que, às vezes, pode ser muito chato. Há livros que nos levam a um rotundo cansaço, seguido de frustração, queremos terminar a leitura o quanto antes, como quem se livra de um pesado estorvo.

Não agradam nosso paladar (e paladar, como se sabe, cada um tem o seu). Nem sempre o problema é da obra, por vezes é o nosso gosto que não está bom.
 
Vinha eu sofrido nos tortuosos caminhos de páginas escarpadas, quando tive aquela iluminação que às vezes me salva: quem sabe leio ou releio alguma coisa de Clarice Lispector (1920 - 1977).

O texto clariceano jamais me deixa abandonado no meio do caminho, nunca me enfada. Salvo se enfadar tivesse algo a ver com fada, mas não é isso. Sim, porque Clarice tem alguma coisa de fada na escrita que brota de suas mãos ternas e violentas (sua força é capaz de revolver as entranhas do vulcão).
 
Mas então passei na livraria e lá estava A descoberta do mundo (Editora Rocco, Rio de janeiro, 1999), que reúne os textos que ela publicou no Jornal do Brasil, aos sábados, entre 1967 e  1973. São anotações, crônicas, pensamentos, pequenos contos e novelas.
 
Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. p. 137

É verdade, ao escrever para jornal, Clarice abriu portas e janelas do claro-escuro casarão de sua alma, que abriga uma multidão de outras almas nos seus misteriosos aposentos.

É preciso ter coragem e merecimento para conseguir aproximar-se de Clarice.

Além de rara escritora, uma linda mulher, que nada ficava a dever às divas do cinema e das capas de revista. Em Clarice encontravam-se reunidos, como poucas vezes acontece, beleza física e talento.

A natureza esmerou-se na sua criatura.

Estou agora, nessa madrugada gelada em Passo dos Ausentes, conjugando o verbo claricear, me delicio com seu texto alto, transcendente e humano, em que não há sobras, não há poses, mas um rigoroso mergulho em busca da expressão, que traz à tona tesouros escondidos nos corações e mentes de mulheres e homens.

Uma exploradora de águas profundas, Clarice consegue traduzir com palavras aquilo que dorme no mais recôndito de cada ser, e o faz com tal naturalidade que até parece uma coisa simples.

Felizes somos nós, os que podem lê-la no original em português, que presenciamos o milagre de sua criação sem necessidade de oráculos, bebendo na fonte um texto de valor universal.

Peço humildemente para existir, imploro humildemente uma alegria, uma ação de graça, peço que me permitam viver com menos sofrimento, peço para não ser tão experimentada pelas experiências ásperas, peço a homens e mulheres que me considerem um ser humano digno de algum amor e de algum respeito. Peço a bênção da vida. p. 117

Bons tempos em que escritores como  Clarice Lispector escreviam para jornal. O prazer de ir até a banca da esquina e lá encontrá-la brihando na página efêmera do sábado.

Uma época em que também escreviam em jornal Carlos Drummond, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, José Carlos Oliveira, Guilhermino Cesar, Carlos Reverbel, Tarso de Castro, Joel Silveira, Mario Quintana, entre muitos outros. Poupo o leitor de comparações com o que (não) temos atualmente, não vale a pena.

O que importa é que, sempre que reencontro Clarice, redescubro a alegria da palavra e volto a me sentir um peixe feliz no aquário.

 

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Recém-nascido resgatado com vida

Jorge Adelar Finatto


photo: AFP
 

Um bebê recém-nascido foi resgatado com vida da tubulação do esgoto de um prédio na China. O fato aconteceu na cidade de Jinhua, na província de Zhejiang. Conforme ontem noticiado, a mãe seria uma jovem solteira de 22 anos, que deu à luz e, após, a criança teria sido arrastada com a descarga do banheiro.
 
Moradores do edifício ouviram choro nos condutos e alertaram os bombeiros. A criança - um menino - estava entalada no cano de apenas 10 centímetros de diâmetro. Os bombeiros tiveram de cortar parte do conduto no qual estava, levando-o em seguida ao hospital, onde os médicos retiraram o bebê, que agora está na incubadora.

A polícia ainda não sabe os detalhes do caso e desconhece a extensão da responsabilidade da mãe. A jovem explicou que escondera a gravidez por temor.
  
A lei do filho único, em vigor na China desde o final da década de 1970, para controlar a natalidade em face da superpopulação, impõe sanções, como multas, a casais que têm mais de um filho. Isso fez aumentar o número de abortos e de abandonados após o nascimento, sendo as crianças do sexo feminino o alvo principal.
 
O fato aconteceu na China, mas ocorre, infelizmente, em toda parte. É das coisas mais tristes que podem suceder. Não me refiro apenas ao sofrimento do bebê, vítima indefesa, mas ao trauma da própria mãe, não raro de pouca idade, em situação de profundo abandono e perturbação mental.
 
Pelo que se pode ver nas manifestações pela internet, há uma exigência de punição em relação à mãe (o pai, neste caso, como em muitos outros, é desconhecido).
 
É compreensível a dor e a revolta que um fato como esse provoca. Mas é preciso, antes do julgamento sumário da mãe, da condenação moral sem direito a recurso, tentar entender as circunstâncias que cercam o evento (até o momento pouco se sabe).
 
Na minha visão, é necessário buscar explicações para o abandono cada vez mais freqüente de crianças recém-nascidas, aqui e acolá. 
 
O abandono de bebês revela a face cruel da sociedade em que vivemos. É, a princípio, um problema de quem comete o terrível ato, mas é, também, uma sinalização de que a sociedade está muito mal. Para além da idéia da punição, simplista e que nada resolve, que quer apenas infligir castigo a quem pratica o fato, é preciso conhecer de perto a situação em que vivem essas gestantes.

A solução, com certeza, não está no Código Penal. Existe por trás, quase sempre, uma realidade de rejeição familiar, afetiva e social que, dependendo de cada pessoa, pode levar a um gesto de loucura.
 
O pai do recém-nascido abandonado não costuma estar por perto, aliás não está nem aí na maioria das vezes, escondendo-se como se não fosse com ele.

Em vez de sair pedindo a cabeça da mãe, é conveniente examinar com cuidado, sob pena de confundir frios criminosos com pessoas desesperadas, entregues à própria solidão, sem nenhum preparo psíquico e material para enfrentar a situação em que se encontram.

Não se faz justiça nem se previne o mal com ódio. O respeito ao próximo, de que tanto está carente nossa sociedade, é, ao lado do amor, o caminho para evitar que estas tragédias aconteçam. E para remediar as conseqüências, quando elas ocorrem.
 
O nenê chinês passa bem, graças a Deus, haverá de sobreviver. Quem sabe ajudará a China a rever a sua política de controle da natalidade, humanizando-a. E cabe a todos os países, a toda sociedade, tratar melhor as gestantes em situação de desamparo, dando-lhes o imprescindível apoio, importante para elas, para o nascituro e para a vida em comunidade.
 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

A volta ao mundo num barco de papel

Jorge Adelar Finatto


Arroio Tega no Moinho da Cascata, Caxias do Sul.
photo: Nereu de Almeida, ClicRBS

 
O Arroio Tega passava no fundo do quintal da casa onde nasci. Entre os pinheiros e a horta, me iniciei na arte da navegação em barcos de papel, que construía com folhas de caderno escolar.
 
O Tega era uma extensão do nosso pátio e um caminho de água doce que se ia pelo mundo. Nele partiam as minhas pequenas embarcações em viagem por aquelas águas ligeiras e claras.

Um dos possíveis significados da palavra tega, no italiano antigo, é pragana (barba ou fios de espigas de cereais), que ondula ao vento, acepção tão em acordo com a sinuosidade da correnteza. Um outro é vagem.

Lá em casa a natureza fazia parte da vida. Além de bichos comuns (na época) como galinhas, cabritas, peixes, gato, cão, havia também um macaco. E uma vez apareceu por lá um pingüim que o avô trouxe da praia de Torres.

O nosso pingüim deu-se muito bem no clima temperado da serra. Gostava de ir caminhando ao lado do avô até a Praça Dante Alighieri, coração da cidade. O assunto virou destaque numa matéria especial do velho jornal Correio do Povo, numa página perdida do final da década de 1950.
 
De tantos barcos de papel que soltei no Tega não sei o destino. Talvez algum tenha conseguido seguir o trajeto até o Rio das Antas, depois ao Taquari, chegando mais tarde ao Guaíba, à Lagoa dos Patos e, por fim, ao mar-oceano. 
 
Tinha eu seis anos quando chegou a hora de dizer adeus e partir das margens do Tega. Nunca mais voltei ao arroio em que me tornei navegador.

A vida me levou por águas distantes e revoltas. Às vezes fui feliz como um peixe. Outras me senti triste e só como um capitão que perdeu a bússola e se extraviou no mapa rasgado.
 
De qualquer forma, de tanto ver o arroio passar e ir ao mundo, ganhei gosto de conhecer outros lugares e gentes. E o mundo é uma viagem de onde nunca mais se retorna.
 
Ouvi dizer que o Tega, importante patrimônio ambiental da cidade, onde brincávamos e perto do qual, nos fins de semana, as famílias colocavam mesas para as refeições e encontros, está agora poluído, quase morto. Mas ouvi, também, que estão fazendo obras de tratamento de esgoto e outros efluentes para livrá-lo da morte atroz.
 
Não pode morrer o arroio que fornece água boa de pura nascente rochosa, que foi cenário inesquecível das brincadeiras de meninos e meninas antigos que ali viveram talvez os melhores dias de suas vidas. 
 

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Composição

Jorge Adelar Finatto
 
 
Van Gogh (O mar em Les Saintes-Maries-de-la-Mer, 1888)
Van Gogh Museum, 20 digital highlights


O anjo tombou morto
na terra alheia de uma tela

Van Gogh imagina Gauguin
asfixiando o anjo no jardim
com as mãos queimadas de sol

Dali encoberta a face de granito
com o manto de brilhantes
os brilhantes despojados do anjo

Di Cavalcanti entristece: era uma mulata
o anjo assassinado nas cores do jardim?

Portinari retira-se melancólico
Picasso adentra a gruta de um olho

A noite cai pesada de remorso

Nesse instante todos dão-se as mãos
e cantam a canção predileta do anjo
em volta do corpo estendido no chão

_____

Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Um fantasma lê Mallarmé

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Stéphane Mallarmé


A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.*
Stéphane Mallarmé
 
Uma certa invisibilidade costuma andar comigo. De tal modo passo sem ser percebido, como um fantasma. Em ambientes com bastantes pessoas essa característica mais se acentua. Costumo ser um fantasma discreto, do tipo que não se dá na vista e não assusta ninguém. Desses que não derrubam coisas dentro de casa nem fazem barulho nos quartos vazios nem conversam nas escadas e corredores quando todos dormem alta noite.
 
Existem fantasmas absolutamente exibidos e inconvenientes. Dão-se a conhecer sem a menor cerimônia, com efeitos especiais de sons, luzes, névoas. Esses perdem rápido a credibilidade. Ora, nem sempre estamos dispostos a ver e muito menos receber um desses estranhos visitantes.
 
Heitor dos Crepúsculos, o jovem poeta suicida que se jogou do Penedo da Saudade, no alto do penhasco, aos 27 anos, em 1953, é um volátil bastante habitual em Passo dos Ausentes. Ele não incomoda ninguém. Pelo contrário, sua presença é reservada como um segredo. Agora, por exemplo, ele está aqui no escritório comigo, sentado na poltrona, enrolado no capote preto, manta lilás, a perna direita largada sobre o braço do assento. A negra cabeleira escorre-lhe até os ombros.
 
Traz nas mãos um volume de poemas que pegou na estante. Trata-se de um livro do poeta francês Stéphane Mallarmé (1842 - 1898). Nele se lêem versos de fina, inusitada e bela construção. O homem foi um artesão caprichoso e trabalhador.

Mallarmé criou maneiras diversas de dizer velhas coisas, modos que se prolongam como ecos no fazer poético dos que vieram depois:

nessas paragens
                               do vago
                                               onde toda realidade se dissolve**
 
O meu silencioso visitante passa a tarde lendo os poemas de Mallarmé. É tranqüilo, não atrapalha em nada o meu trabalho. E, pensando bem, é boa companhia nessa tarde longa, austera e fria de outono nos Campos de Cima do Esquecimento.

Quando volto ao escritório, depois da pausa para o café passado no bule e as roscas de polvilho, ele não está mais. Deixou o livro sobre a mesa com um evanescente bilhete:
 
Não importa a tempestade na montanha ou o silêncio da gruta perdida, o claustro onde vivo. Viver a cada instante sempre é a última oportunidade. Eu só descobri depois de voar sobre o penhasco.                                                                                                                      Heitor

Viajo pelo cosmos nesses 50 metros quadrados de quinquilharias, livros, plantas, pássaros no entorno, a perscrutar o silêncio que esconde e prenuncia a revelação, no correr das fontes subterrâneas, enquanto passo/passamos e não quero que a luz do sol se apague em volta do mundo. Trabalho pela dissolução da treva, espero amanhecer nos corações.
  
_________________
 
Mallarmé. Estudo crítico, apresentação da obra e poemas traduzidos por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Editora Perspectiva, São Paulo, 2010.
*O verso em epígrafe é o primeiro do poema Brisa Marinha.
** Verso do poema Um lance de dados jamais abolirá o acaso.
Escritores fantasmas reúnem-se em Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/encontro-reune-escritores-fantasmas-em.html
 

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Racismo à brasileira

Jorge Adelar Finatto 
 
Chico Buarque
 
Nós não somos brancos. O nosso valor é a miscigenação. 
Chico Buarque de Holanda
 
Um dos mitos da civilização brasileira é o da democracia racial. Embora a miscigenação faça parte da nossa formação, a igualdade de tratamento está longe de ser uma realidade, ainda que formalmente assegurada no ordenamento jurídico.

Chico Buarque de Holanda revelou que a família de sua filha (casada com o músico negro Carlinhos Brown, com o qual tem filhos, netos de Chico) foi alvo de discriminação no condomínio onde tinham apartamento, no Rio de Janeiro. Por essa razão, saíram de lá. Em lúcido depoimento, Chico Buarque falou sobre o problema do racismo no Brasil (o vídeo está no youtube).

O preconceito de cor é tratado por muitos como algo inexistente ou vago. Mas a negação não resiste às evidências. Se os netos do grande Chico Buarque enfrentam esse problema, o que dizer dos outros milhões e milhões de brasileiros de ascendência africana espalhados por este país-continente? 
 
Há um "defeito de cor" que impregna as relações sociais no Brasil.

Para além da hipocrisia, o fato é que a pele negra ainda é discriminada. Existem avanços em função das lutas por igualdade, mas o caminho é difícil. 

A ironia nessa história é que somos um país essencialmente mestiço. Os racistas brasileiros não têm espelho em casa. E se têm não enxergam a própria imagem. Somos uma mistura de sangue negro, índio e de tantos outros sangues que por aqui chegaram a partir do século XVI.

Dificilmente haverá família, no Brasil, que não tenha origem na miscigenação. Os racistas daqui são ridículos e delirantes na sua fabulação arianista. Não sabem, muitos por ignorância e outros por má consciência, que desprezam o que há de melhor em si mesmos, ao negar a sua/nossa natureza misturada.
    
Como o preconceito não passa recibo (até porque racismo é crime no Brasil), ele é na maior parte das vezes dissimulado, escamoteado, esconde-se nas reticências, nas evasivas, nas entrelinhas, no cinismo, na rejeição tácita, no silêncio cúmplice.
 
A "raça" humana é uma só. As diferenças físicas, culturais, religiosas, etc., fazem parte da unidade universal que é o ser humano. Já é tempo de reverem-se conceitos ditos científicos a respeito de "raças". As diferenças tendem a mitigar-se com a união cada vez maior entre pessoas de origens diversas.

Prefiro falar, ao invés de raça, em origens étnicas, que compreendem caracteres físicos e culturais.
 
O Brasil ainda será uma democracia racial. Acredito que a maioria da nossa população anseia por isso. O cerco cada vez maior à hipocrisia com ações afirmativas - como a das cotas nas universidades para afrodescendentes e índios - nos dá essa esperança.
 
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Uma decisão para reescrever o Brasil:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/04/uma-decisao-para-reescrever-o-brasil.html
O escravo e sinhá:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/03/o-escravo-e-sinha.html
O crédito da foto será dado assim que conhecido o autor.