quarta-feira, 5 de março de 2014

O rumor do córrego

Jorge Adelar Finatto

Montreux. Lago Léman. photo: j.finatto
 

O seixo sobre a escrivaninha é cor de mel maduro e tem pequenas crateras na superfície. Elas lembram o território redondo e branco da Lua cheia. 
 
Antes de vir parar aqui, o seixo habitou outros lugares. Deve ter rolado por séculos no fundo das águas.

Provavelmente veio ao mundo antes das ondas do Dilúvio. A menos que seja o minúsculo fragmento pós-diluviano de uma estrela que despencou e esfriou.

O seixo faz parte agora do resumido mundo do escritório. Mergulhado nessas águas de estantes de livros e objetos que foram se chegando com o passar dos anos (enquanto eu próprio passava).

Cada objeto tem uma origem e uma história para contar, assim feito o seixo.

Como viajantes numa estação de trem.

Às vezes levo o seixo ao ouvido para escutar o rumor distante do córrego da minha infância na sua antiga viagem rumo do mar.

Ouço então a passagem do vento sobre as águas e o vôo das folhas quando se soltam dos ramos.

O escasso seixo é um pedaço do infinito universo que veio ao mundo para rolar e passar (tal como eu).

Uma singela lembrança do eterno. 
 

segunda-feira, 3 de março de 2014

Oscar Wilde em Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto
 
A morte é um preço excessivo para dar por uma rosa encarnada.
Oscar Wilde* 


 
O guarda-chuva é um escudo existencial contra a tristeza e a pouca luz do mundo.

Um indivíduo deprimido e solitário não deve andar por aí sem guarda-chuva, mesmo em dias de sol. Não importa o tempo que faz lá fora.

A umbela traz consolo ao coração, além de proteger o esqueleto.

Em Passo dos Ausentes, existe o Sindicato dos Fazedores de Guarda-Chuvas, Chapéus, Bengalas, Luvas e Mantas. A cidade, hoje habitada por muitos fantasmas e poucos seres humanos, foi importante centro produtor e exportador desses produtos. Consta nos registros do sindicato que, entre 1890 e 1939, a Inglaterra importou a quase totalidade da produção.

O cliente mais famoso, na área das artes, foi ninguém mais, ninguém menos, do que o escritor irlandês Oscar Wilde (1854 - 1900). Dizem os antigos que ele chegou a ter perto de 20 chapéus-de-chuva (nome pelo qual também é conhecido o guarda-chuva ) e cerca de 10 bengalas confeccionados na Terra dos Ausentes.

Numa secreta viagem, o autor de O Retrato de Dorian Gray esteve em Passo dos Ausentes, em 1891. Veio a nossa pacata aldeia a fim de mandar fazer, pessoalmente, um modelo exclusivo de guarda-chuva. O artefato tinha, num canto da parte externa do tecido azul-claro, as iniciais D.G., em tom rosa, as mesmas que foram gravadas, em prata, no cabo de osso de anta.

Oscar ficou durante 40 dias por aqui, conforme está registrado no livro de hóspedes da pensão Ao Viajante Solitário. Foi tempo suficiente para encantar a todos. Ganhou o título de cidadão honorário e sua despedida, na estação de trem, foi um dos maiores acontecimentos da cidade em todos os tempos.

 

 
Tal impressão causou em nosso meio que, desde então, quando pessoas de Passo dos Ausentes viajam à Inglaterra e à França, fazem uma espécie de peregrinação sentimental atrás de Dorian Gray, quer dizer, Oscar Wilde.

Muitos dos bilhetes apaixonados colocados (todos os dias) junto ao túmulo do escritor, no cemitério Père Lachaise, em Paris, são de gente dos Campos de Cima do Esquecimento.

Entre os políticos que adquiriram as nossas obras de arte, estão Getúlio Vargas e Winston Churchill. Na Terra da Rainha como em São Borja, são tratados como relíquias e viraram peças de museu. Em diferentes países do mundo, os guarda-chuvas aqui produzidos transmitem-se através das gerações na condição de finas joias de artesania.

Faz 40 anos que Guilherme Baden-Baden, o químico de Passo dos Ausentes, não sai à rua sem carregar o enorme Morcego Negro, espécie de capacete protetor que se afeiçoou a ele como se fosse a extensão de seu esquerdo braço.

Homem pequeno, Baden-Baden quase desaparece sob o para-sol (outro nome do objeto pluvioso). Enquanto estiver com o guarda-chuva aberto, afirma ele, nada de ruim poderá lhe acontecer. Não se trata de vã filosofia, diz o sábio:

- É uma intuição ancestral, uma maneira de ver e sentir a existência.

Nunca ninguém, em qualquer tempo, foi abandonado por um guarda-chuva. O contrário, porém, é muito comum.

Uma das grandes invenções da humanidade, cuja origem se perde na noite dos séculos, o guarda-chuva é, ao lado do cão e dos diários das moças, o melhor amigo do homem.

___________

Fotos: 1) Oscar Wilde, 1882. Autor: Napoleon Sarony. Fonte: Wikipédia. 2) Guarda-chuva nos jardins da Praça da Ausência. Autor: J. Finatto.
Texto revisto, publicado em 18 de abril, 2011.
Leia também, sobre Oscar Wilde e o beijo proibido:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/06/oscar-wilde-e-o-beijo-proibido.html
*Pensamentos, Oscar Wilde, p. 202. Relógio D'Água Editores, 2011, Lisboa.

domingo, 2 de março de 2014

Os mascarados


Carnaval de rua em Olinda, Pernambuco.
 

Os mascarados. Autor: Passarinho. Fonte: site da Prefeitura de Olinda:
www.olinda.pe.gov.br

 

sábado, 1 de março de 2014

O peixe e seu carnaval

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto
 

A imagem dos peixinhos brilhando no fundo azul, e as outras, eu pesquei no Oceanário de Lisboa. É uma visita que não dá para perder em Portugal, conforme já registrei aqui.* Além de peixões, como tubarões, e peixinhos, como cavalos-marinhos, existem muitos outros seres que habitam no interior e fora das águas oceânicas, e são mostrados no oceanário.
 
Há um universo de vidas que não conhecemos, nas profundezas e na superfície. Um mundo que, por ironia, depende da boa vontade do ser humano para não ser destruído, o que, convenhamos, é uma temeridade.

photo: j.finatto
 
Resta esperar e acreditar que teremos o bom senso de não acabar com os oceanos, pois neles reside talvez a nossa única chance de sobrevivência no planeta diante do colapso alimentar que se avizinha.

Não existe beleza nem alegria na morte, apesar do que vemos na televisão diariamente. A estética da violência e da destruição, presente no noticiário e em grande parte da programação, desde filmes até grotescas lutas entre pessoas que se ferem bestialmente (a que chamam esporte), só faz alimentar a nossa desumanização.

photo: j.finatto

Preservar a vida enquanto há vida dentro e fora de nós.
 
Durante a folia oficial, artificial e midiática do carnaval (tudo é espetáculo...), eu prefiro o mundo silencioso, natural e colorido dos cavalos-marinhos e anêmonas-do-mar. O carnaval dos peixes.
 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Escritores fantasmas reúnem-se em Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto


Uma tapera solitária, à beira da ruína, será o local de reuniões do Congresso dos Escritores Fantasmas de Língua Portuguesa, a realizar-se nos primeiros dias do outono em Passo dos Ausentes.

O evento é uma das principais atrações culturais dos Campos de Cima do Esquecimento, ao lado do festival Música do Fim do Mundo, que acontece em junho, e do Teatro Kabuki na Névoa, em novembro. A sessão de abertura ocorrerá no dia 22 de março próximo.

O fantasma de Álvaro de Campos está entre nós e falará na abertura do encontro. Foi o que declarou ontem Heitor dos Crepúsculos, poeta suicida, assombração-mor da cidade, organizador do conclave. Disse, ainda, que o bardo português é o anfitrião designado este ano para o congresso. Também já chegaram os fantasmas de Oscar Wilde, Rainer Maria Rilke, Bashô, Heitor Saldanha e Henrique do Valle, convidados especiais que serão homenageados nesta edição.

Estão todos hospedados na pensão Ao Viajante Solitário, com ampla vista para o Vale do Olhar. O atual administrador do estabelecimento, António Alto da Noite, afirma que os literatos fantasmas não são maus hóspedes:

- Não comem nem bebem nada. Não usam o banheiro nem tomam banho. Em geral fazem silêncio. Às vezes arrastam móveis, principalmente nos dias de chuva (neste lugar chove pelo menos uma vez ao dia). Materializam-se a qualquer momento, mas não costumam demorar.

- É gente do sossego, leitura. São sentimentais, são estranhos. Mas cada um no seu cada qual. No café da manhã, sentam-se calados ao redor da mesa, olhando um ponto invisível à frente. De repente, desaparecem. É o jeito deles.
 
fachada da pensão Ao Viajante Solitário.
photo: j. finatto

A solidão da escrita será um dos temas do encontro, que terá ainda a leitura de textos pelos próprios autores na biblioteca da cidade, programa aberto ao público.

Mocita de La Vega, diretora da biblioteca e única funcionária, organiza o Salão dos Passos Perdidos para receber os poetas, escritores e convidados. Está tirando o pó dos móveis e livros e organiza o fichário, um tanto abandonado nos últimos 30 anos devido à falta de leitores (a população reduziu-se pela metade, a juventude não fica mais aqui). A diáspora dos ausentes.

Revelou a bela bibliófila que, ao passar o espanador numa mesa, ficou surpresa ao ver o fantasma do poeta Rilke sentado na poltrona diante da janela dos vitrais roxos. Vestia casaco e calça de lã cinza-escuros e uma gravata lilás sobre a camisa branca.

Ao ser descoberto, o poeta de Praga descruzou as pernas, esboçou um meio-sorriso e, levantando-se, convidou-a pra dançar. O vate das Elegias de Duíno segredou-lhe coisas à concha do ouvido.

- Um perfeito sedutor na palavra escrita como na falada, disse Mocita.

E saíram os dois a rodopiar entre as estantes, sob os lustres de cristal, bailarinos de um tempo fora do tempo, ao som de uma inaudível melodia sentimental de Amadeus Mozart.

Heitor dos Crepúsculos, acolhedor-geral do encontro, é a alegria em pessoa nos últimos dias, voa de um lado para outro, toma mil providências, fazendo esvoaçar sua echarpe cor-de-rosa. Materializa-se e desmaterializa-se com grande animação em toda parte, deixando no ar um pó branco cintilante.

Quando menos se espera, Dos Crepúsculos aparece sobre a copa de uma árvore estendendo um tecido de seda. Outras vezes, espalha bandeirinhas coloridas nos portais das casas ou desfia novelos amarelos de lã em torno dos bancos da Praça da Ausência.

Todos notamos um certo exibicionismo da parte de Heitor, mas afinal é o momento dele. E fantasmas são, por natureza, exibidos, do contrário não seriam fantasmas.

Passo dos Ausentes engalana-se para receber os voláteis escrevinhadores. Até jornalistas do Japão estão chegando para acompanhar o fantasmagórico congresso.

Desde que a cidade foi fundada por alguns padres jesuítas e famílias de índios guaranis sobreviventes do massacre de São Miguel das Missões, em 1756, não se via tanto entusiasmo por estas bandas.

O blogue acompanhará de perto o encontro, que já tem confirmadas as palestras de Machado de Assis, Lima Barreto e Eugénio de Castro. A programação completa bem como o nome dos participantes serão divulgados nos dias vindouros.

Um painel que promete, segundo alguns comentam, é aquele sobre os escritores mortos-vivos, isto é, os que estão vivos mas não têm leitores. Cerca de 1.200 mortos-vivos já se inscreveram para este dia. A este respeito, assim se manifestou Heitor dos Crepúsculos:

- A parte do esquecimento que nos cabe, nesse mundo de ruidosas vaidades e egos exacerbados - o velho mundinho da literatura -, é pequena se comparada à dos escritores mortos-vivos. Nós, pelo menos, não temos contas pra pagar nem espelho em casa.
Texto revisto, publicado em 04 de março, 2013.
 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

As últimas cores

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: j.finatto, 24.01.2014
 

No itinerário que faço durante a caminhada polifônica, há sempre uma claridade que me faz parar na beira do caminho. É uma hortênsia que reúne na sua floração diversas cores e texturas. Há anos que a observo durante os meses de verão.

Paro para olhá-la de perto e sempre a fotografo, impressionado com sua exuberância. Como quem quisesse proteger contra o esquecimento imagem tão bela.

Não conheço outra hortênsia com tal diversidade e luminosidade.
 
A sua pintura se compõe e decompõe em inumeráveis tons, dos quentes aos frios, ao longo do período que começa lá por novembro e vem até finais de fevereiro. Sempre variando nas tintas.

Não resisti e fotografei-a mais uma vez em busca dessas que são, provavelmente, as últimas composições de sua mágica paleta. Essas photos testemunham as cores finais que ela emite nesse verão.

photo: j.finatto, 24.01.2014

Em breve ficarei sem essa beleza na beira do caminho. 
 
Mesmo agora, no momento em que se despede para hibernar por muitos meses (tempo no qual vai fabricar novas tintas), a hortênsia não priva o caminhante dos seus derradeiros instantes de beleza. Faz ainda o seu melhor. Um exemplo para nós.

A hortênsia, no seu encanto humilde e sereno, é só visão e dádiva.

photo: j.finatto, 24.01.2014
 
 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A biblioteca é um refúgio

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto, 23.01.2014

 
A biblioteca é um bosque onde me refugio quando a barra da realidade pesa. Isto acontece quase todos os dias do ano. Por essa razão é um lugar que estimo tanto. Tenho uma relação de afeto com meus livros.
 
A minha não é, contudo, uma biblioteca de bibliófilo. Embora eu faça parte de uma confraria de bibliófilos (que edita preciosidades literárias, quatro obras por ano), a minha biblioteca é uma oficina de trabalho, não é um relicário e menos ainda um santuário.
 
Os livros são feitos por mãos humanas e por isso são imperfeitos e belos. Nada mais artificial do que estabelecer com eles alguma solenidade. A única solenidade que os livros reclamam é a leitura.

Não trato os volumes por vossa excelência, mas por tu, como deve acontecer entre amigos.
 
Escrevo e sublinho nas páginas sem nenhuma culpa. E é possível encontrar exemplares em mais de uma peça da casa por onde estive ao longo do dia ou da noite.
 
Cada um tem um jeito de ficar sozinho. O meu é com um livro na mão.
 
Passei o domingo de chuva na biblioteca. Arrumei os livros que trouxe da viagem. Uma mala pesada com obras não editadas no Brasil. Referi os nomes de alguns dos autores aqui esses dias.
 
Não é tarefa fácil acomodar novos livros entre os antigos. Tive que dar uma boa mexida nas estantes. Novos personagens e escritores se incorporaram ao pequeno acervo, trazendo sua cálida existência e sua claridade.

photo: j.finatto, 23.01.2014

 
Tenho uma ligação emocional com meus livros. Não vou dizer que não tenho um forte sentimento de posse em relação a eles. De modo que não fico exatamente tranqüilo quando me levam uma obra por empréstimo. Dependendo do livro, fico mesmo com o coração na mão. Mas recebo poucos pedidos.
 
De tempos em tempos faço uma revisão e avalio quais são os livros imprescindíveis. Isto é, aqueles que levarei para a ilha deserta quando, desiludido da vida, partir para lá um dia. Os que não se enquadram nessa categoria costumo dar.
 
É uma maneira de fazer a literatura circular, além de não afundar a casa em livros. Um livro que para mim não é tão interessante, para outra pessoa pode ser uma dádiva espiritual.
 
De resto, não me iludo com a posse de qualquer coisa nessa vida. Não somos donos de nada. Temos apenas a posse precária e transitória de algumas coisas materiais. Dia mais, dia menos, trocam de mãos.

Só nos pertence aquilo que levamos dentro da alma.*
 
Enquanto arrumava as estantes, nos intervalos li História do sábio fechado na sua biblioteca, de Manuel António Pina (Assírio & Alvim, Lisboa, março de 2009). Um pequeno livro de 60 páginas, ricamente ilustrado por Ilda David, que conserva ainda um gostoso cheiro de tinta. Trata-se de uma bonita história que lembra uma fábula na maneira de contar.
 
Com o talento que Deus lhe deu (por certo teve que trabalhar muito para trazê-lo à luz**), Pina escreve coisas assim no seu livro:
 
Como sabia todas as coisas (o sábio) e não tinha nada de novo para saber e conhecer, a sua vida era muito triste e desinteressante. Era uma vida sem espanto, onde nada de novo e surpreendente acontecia e todos os dias eram iguais a todos os dias. Mesmo coisas tão estranhas e misteriosas, como, por exemplo, os cortinados do quarto agitando-se, à noite, ou os móveis rangendo como se falassem uns com os outros, não tinham para ele qualquer mistério. (p. 10) 
 
Este livro já faz parte da relação dos imprescindíveis.

____________

*A respeito de possessões imateriais, vale a pena ler Um poema de Chagall, em tradução de Manuel Bandeira, em sua Antologia Poética, Livaria José Olympio Editora,  sétima edição, Rio de Janeiro, 1974. "Só é meu o país que trago dentro da alma."
**Eugénio de Andrade:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/eugenio-de-andrade.html