terça-feira, 6 de maio de 2014

Quem seca um rio?

Jorge Adelar Finatto
jfinatto@terra.com.br 


 
A lágrima escorreu, borrou a paisagem. O tempo das despedidas. Ele tinha seis anos e não estava preparado pra ir embora de Passo dos Ausentes.

A serra é azul e o menino é feliz.

Limpou o vidro da janela com a manga do casaco.

O trem começou a caminhar, lenta, lentamente, sobre os trilhos de prata. A estação ficou pra trás, os plátanos, a torre da igreja, os amigos, a casa, a vidinha.

O avô acenou na gare diante do vagão. Mais triste que a noite sem fim que se aproximava.

O rumor do vento nas folhas do pinheiro não dá pra esquecer.

A cidadezinha desapareceu.

Ele tirou os óculos (já usava as lentes de fundo de garrafa) e secou os olhos. Mas os olhos não secaram. Quem seca um rio?

O sol caía atrás dos flocos rosados de nuvens do outro lado das montanhas. Uma espécie de calabouço sem nenhuma fresta de claridade se inaugurava dentro de seu peito.

O menino desapareceu naquele fim de tarde dentro do trem noturno. Os olhos não secaram. Quem seca um rio? Chorou em silêncio até adormecer. Sumiu na paisagem rumo ao profundo, frio e traiçoeiro caleidoscópio da cidade grande.

A vida nunca mais seria a mesma.

No entanto, a vida estava apenas começando. Cinqüenta anos depois, ele recorda aquela tarde-noite irreparável nos Campos de Cima do Esquecimento. Mas nesse momento está a salvo ao lado dos amigos, no Café dos Ausentes, na estação de trem abandonada.

Estão todos ouvindo o bandoneón de Juan Niebla na tarde de outono com suas inumeráveis cores.

A velha casa de madeira está outra vez habitada por ele, suas recordações e a família que construiu. Os fantasmas conversam, jogam xadrez e bebem café preto sem açúcar no sótão.

Ali na vetusta estação de trem, com os amigos no café, ele descobre que a memória é sua Arca de Noé. Nela o mundo do menino está a salvo do desaparecimento.

As lentes de fundo de garrafa só têm olhos para a Estação Esperança, na transparência da tarde de outono.
 

domingo, 4 de maio de 2014

Ilha de San Michele, ilha dos mortos

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Isola de San Michele ao fundo. j.finatto

 
A Ilha de San Michele repousa serena diante de Veneza.

Não devemos perturbar o sossego de seus habitantes. Na gôndola em que navegamos em torno desse território calado, nada deve ser ouvido além do remo na água verde-safira. Entre os altos muros de ocres tijolos, à sombra de ciprestes, os mortos descansam na antiquíssima ínsula.

San Michele é um pequeno pedaço de terra no Mar Adriático, mas é, acima de tudo, uma metáfora.

A ilha dos mortos tem o olhar voltado desde o exílio para a República Sereníssima.

A ilha-cemitério é um testemunho da brevidade humana e um alerta contra as vaidades do mundo.

photo: canal. j.finatto
 
Façamos silêncio, portanto, nessa viagem pelas cercanias de lugar tão despojado.

A ísola oberva, ao largo, o frêmito dos vivos. Silenciosa mirada. O espelho das águas recolhe o espírito e as cores da cidade que se assenta sobre as cerca de 120 ilhas que formam Veneza. A história veneziana remonta aos primeiros anos da era cristã.

Os habitantes de San Michele conhecem a vocação da Sereníssima para o abismo da beleza e das paixões. Ninguém consegue ficar indiferente ao seu brilho e mistério. Veneza é cruel com os deserdados da sensibilidade, e com a bondade desprovida de malícia.

Não é um lugar para onde devam ir os desiludidos da vida. Acolherá bem os amantes, sobretudo os que souberem amar seus labirintos ao longo dos canais tortuosos que se perdem na neblina do tempo.

photo: gôndolas. j.finatto


Os mortos habitam a ilha já sem pecado, distantes do ruído e do encanto da cidade amada.

Veneza chegou àquele ponto turvo da civilização em que os falecidos não têm mais para onde ir. A cidade não pode crescer. Espaço para mais um morador é coisa rara em San Michele.

Os defuntos que conseguem um lugar vão para lá de barco. O cortejo e a pompa (para alguns existe pompa até na morte) dependem das posses do viajante.

Um dos últimos estrangeiros ilustres a conseguir sepultamento na ilha foi o poeta russo, depois cidadão americano, Joseph Brodsky (Nobel de Literatura em 1987), que por mais de vinte anos se hospedou em pequenos hotéis da cidade, quase sempre em janeiro, e que como poucos amou e soube falar de Veneza.

Entre a sombra e a luminosidade, Veneza recebe o coração ávido de memória e arte.

A silhueta negra e esguia das gôndolas desliza lentamente.

As máscaras do carnaval observam de noturnas vitrines.

La Serenissima pertence às águas, ao ruído do vento nos telhados e pontes, aos cavalos de névoa que invadem a Praça São Marcos. Os vetustos casarões, as galerias de arte, os vaporettos e palácios mergulham no fundo espectral dos canais. 
 
photo: esquina veneziana. j.finatto
 
As cores são fortes e belas como a música das igrejas ao entardecer, os concertos na via pública, o traço febril de Tintoretto no Palácio Ducal.

Estamos de passagem no mundo. Devastados pelo desejo e pela procura de beleza.

A metáfora de San Michele.

Se temos de ser ilhas, que pelo menos formemos arquipélagos com pontes e canais a nos unir, como em Veneza.

O resto são ostras e segredos na bruma dos corações.

photo: Grande Canal. Ponte de Rialto. j.finatto

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Texto publicado  em 27 de janeiro, 2010.
 

quinta-feira, 1 de maio de 2014

As breves eternidades do senhor Lobo Antunes

Jorge Adelar Finatto
 
photo: António Lobo Antunes*
 
Não sou especialmente simpático também, falo pouco, custa-me exprimir o amor que sinto, envergonho-me de, em certas alturas, me apetecer chorar. Claro que não choro: fico bravio, brusco, irónico, a liquefazer-me de afecto por dentro.*
                                                                     António Lobo Antunes

Às três horas dessa madrugada ventou forte. Tremeram as folhas dos plátanos e pinheiros em volta da casa. Eu estava recostado na poltrona do escritório, naquele instante de neblina entre o sono e a vigília.

Começaram uns trovões pros lados do Contraforte dos Capuchinhos. O som vinha de longe. Relâmpagos riscavam o ar sobre as montanhas. Agora chovia.
 
Na mesa estão os livros que leio nessas horas perdidas que me custam o peso de diamantes. As horas de lume intenso. As imperdíveis. Nos volumes está a vida inventada, concentrada, sem desperdícios, sem cinzas.
 
Entre o raio e o trovão, peguei o António Lobo Antunes pra ler. Nos últimos dias tenho lido crônicas, dando um tempo aos textos maçudos. Aproveitei a passagem por Lisboa, antes de voltar ao Brasil, em fevereiro, pra comprar livros de autores portugueses. Nessa leva vieram os volumes quatro e cinco das crônicas do romancista Lobo Antunes (escritor e psiquiatra, nascido em Lisboa em 1942), reconhecido em Portugal e no estrangeiro, lembrado para o Nobel.
 
Os textos curtos têm de ter a essência do relâmpago. Devem iluminar de súbito a escuridão, sem demora, afastando-se dos truques dos ilusionistas, porque o tempo urge, o do raro leitor em especial.

(Não sou nem tenho pretensão a ser crítico literário, Deus me livre. Mas também não sou um leitor vadio. Arrisco uns bacorejos de vez em quando.)
 
Os pequenos textos precisam pegar o coração do leitor de forma ágil e inesperada, com simplicidade e energia.
 
O senhor António é um lobo solitário na sua arte. Não existem muitos de sua espécie na natureza.

Pelo jeito que escreve, é um sujeito recolhido, de pouca fala, algo nele permanece ausente de si e dos outros. Está sempre noutro lugar. A sua medida no mundo é a escrita, esta é sua aldeia, ali estão tudo e todos.

O tempo do escritor se desdobra em muitos tempos, em vidas inumeráveis.

O senhor Antunes tem urgência de escrever, aflige-se no intervalo entre um romance e outro. Tamanho desconforto semelha-se a uma combustão espiritual na ausência da palavra criadora. Talvez nesse interstício habite o cronista. 
 
O senhor Lobo é um animal ferido, sofrido, esquivo, como o são de resto os de sua estirpe, escritores que trabalham enfurnados no sofrimento feliz que é escrever, e daí afloram diamantes. Esses que, uma vez descobertos, não paramos mais de olhar. Não há embromações na sua prosa nem maneirismos de estilo.

Diz direto e concreto, mas sem perder a poesia. Coisa difícil. As possíveis levezas estão envoltas na bruma da condição humana, na cerração da circunstância que recorta o indivíduo, todo indivíduo, no tecido da realidade.
 
Enquanto escreve, o senhor António vai matando a sua e a nossa morte, criando territórios de eternidade, efêmeros embora, para suportar o deserto, desde que fomos expulsos do Paraíso.
 
Falei aqui, mais de uma vez, da mala de livros que trouxe, do peso e da trabalheira de andar com ela em trens, táxis, hotéis e aeroportos. Mas eu afinal estava certo ao sofrer assim. No frio dos quartos de hotel, antecipava já a espécie particular de felicidade que é ler o Lobo.
 
António Lobo Antunes é dessa família de escritores que nos fazem varar madrugadas de chuva e relâmpago em busca de suas pegadas na areia da praia ventosa. Ele nos deixa a sensação de que podemos ser e sentir sempre mais. A seu lado, vivemos um tempo que não nos destrói.
 
A breve eternidade das palavras.

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*photo reproduzida do site do jornal rascunho, em matéria sobre o autor:
http://rascunho.gazetadopovo.com.br/vozes-da-rua/#exlibris

Quarto livro de crônicas. Editora Dom Quixote, Portugal, 22ª edição. Trecho da crônica O António a dar corda à esperança, p. 286, grafia portuguesa.
 

terça-feira, 29 de abril de 2014

A invasão dos balões misteriosos

Jorge Adelar Finatto

photo de balão*


Um estranho balão singrou os ares e montanhas de Passo dos Ausentes em junho de 2010. O fato provocou um grande alvoroço na pequena cidade. Não estamos acostumados com coisas voando por cima das nossas cabeças.

Porém, o que no início foi motivo de admiração e espanto, depois tornou-se razão de preocupação.

Outros balões e dirigíveis, de cores e formas variadas, passaram a cruzar, nos últimos tempos, nosso espaço aéreo, vindos sabe Deus de onde. Demoram-se em voos lentos e circulares, a observar-nos sem a menor cerimônia, e depois desaparecem pelos lados do Contraforte dos Capuchinhos.
 
As aparições misteriosas dos aerostatos começam a causar apreensão, principalmente entre os fantasmas, que transitam livremente pelas nossas ruas, habitam os sótãos, telhados e as copas de árvores. Eles vivem por aqui desde tempos imemoriais sem ser incomodados. Sempre conviveram bem com os vivos. Se forem descobertos por olhos indiscretos, seus dias entre nós estarão contados.

Palomar Boavista, astrônomo-mor, e Claudionor, o Anacoreta, foram convocados para explicar as possíveis razões das incômodas e coloridas visitas, em reunião extraordinária da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica, Astronômica, Teatral e Antropofágica de Passo dos Ausentes, que tem na presidência Don Sigofredo de Alcantis, o velho filósofo guardião da nossa memória.

Somos uma cidade invisível a 1800 metros de altitude na região serrana a nordeste do Rio Grande do Sul. Condições atmosféricas intratáveis nos isolam do resto do mundo, desde que por aqui chegaram nossos antepassados, um grupo de índios guaranis e padres jesuítas que conseguiram fugir e sobreviver à destruição dos Sete Povos das Missões, levada a cabo por exércitos espanhóis e portugueses no século XVIII. Os sobreviventes fundaram Passo dos Ausentes em 1759.

Lugar íngreme, difícil de sair e mais ainda de chegar, está situado no topo de antiquíssimo maciço de montanhas de rude basalto na Serra da Ausência.

O açoite implacável dos ventos nos fustiga o ano inteiro.

Vivemos na região conhecida pelo nome de Campos de Cima do Esquecimento. Não estamos no mapa do Rio Grande do Sul (nem ao menos um pontinho).

Não existimos oficialmente. Tramita um processo junto aos órgãos da administração do Estado, desde o ano de 1805, no qual pedimos o reconhecimento da nossa comunidade, com sua história e cultura, e a inclusão nos mapas.

As respostas sempre foram negativas. Dizem que não há provas concretas da existência desse lugar e menos ainda de que aqui vivem pessoas. Não fosse patético, seria cômico. 

photo de balões e dirigíveis. autor: Jean-Pierre Clatot (AFP)

Nos tomam por seres imaginários, de tinta e papel. O governo mandou, no passado, duas expedições para nos localizar, uma em 1936 e outra em1989, isso depois de muita insistência de nossa parte.

Ao comando de geógrafos e historiadores de gabinete e muy pouco engenho, as tais expedições perderam-se no caminho, desistiram e foram embora.

O lugar é quase inacessível devido à acidentada topografia que envolve os imensos paredões de basalto, cobertos de verde mata, córregos e pinheirais. Além das névoas eternas, as chuvas recorrentes e o frio intenso nos separam do mundo dos vivos lá embaixo.

Claudionor e Palomar, após alguns dias de estudos e observações, expuseram à ansiosa assistência as duas prováveis explicações para os balões e dirigíveis.

Com voz grave e pausada, Palomar disse que a primeira hipótese é a de que estamos sendo visitados por seres de outro planeta, que consideram Passo dos Ausentes a melhor porta de entrada na Terra, um lugar invisível que não chama de ninguém a atenção.

- A segunda, menos plausível - acrescentou Palomar, figura magra, alta e de farta barba branca -, é que se trata de observadores aéreos do governo para nos localizar. Diante do fracasso das expedições terrestres do século passado, estariam enviando novas equipes para investigar. Essa hipótese beira a quimera, diante da incompetência e desinteresse dos homens que dirigem o Estado, ontem como hoje.
Don Sigofredo de Alcantis após tomou a palavra. Para ele, a primeira explicação seria a menos perigosa.

- Se forem seres de outra esfera cósmica, não haverá qualquer problema ou dificuldade, porque alguns esquisitos a mais por aqui não vão fazer a menor diferença. Estamos habituados a toda sorte de estranhamento. Mas se for gente do governo querendo nos espionar, aí tudo de ruim pode acontecer. No dia em que o asfalto e a política chegarem a Passo dos Ausentes, será o nosso fim. A invisibilidade ainda é a nossa melhor arma contra o desaparecimento.

O silêncio que se seguiu fez com que se ouvisse o espesso rumor do vento nas folhas das altas palmeiras da Praça da Ausência.

Para espantar o frio e os arrepios interiores, Mocita de La Vega, secretária-geral e musa amantíssima dos bardos presentes, serviu-nos seu licor de leite com noz-moscada.

Somos poucos. Somos invisíveis. Não nos vêem e não nos sentem. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.

Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade, executou Adios Nonino, de Astor Piazzolla, ao final da sessão. Com tanto sentimento que até mesmo Claudionor, o Anacoreta, não pôde evitar o brilho de uma lágrima.

photo: j.finatto
 
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Outras referências de Passo dos Ausentes:
Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
A cidade perdida: as origens
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/09/cidade-perdida-as-origens.html
A misteriosa expedição da Nasa a Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/08/misteriosa-expedicao-da-nasa-passo-dos.html
A viagem do balão vermelho:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/06/viagem-do-balao-vermelho.html
*O crédito da photo do balão será dado quando conhecida a autoria
Texto revisto, publicado originalmente em 9 de julho, 2010.
 

domingo, 27 de abril de 2014

Arroz doce

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

 
O mundo já foi um lugar mais doce de se viver. Havia mais brandura nos corações, nos gestos. A realidade não era esse poço de incertezas e angústias.

Caminhar pelas ruas de Porto Alegre, de madrugada, não era um ato de loucura como hoje. É só um exemplo entre tantos. (As cidades escureceram.)
 
Mas a questão é que ninguém pode viver no passado (aliás, se examinar bem, nunca foi essa maravilha). Digamos que há coisas boas que deixam saudade. Como o arroz doce.

Quando a avó morreu, há séculos, levou para o céu a receita de arroz doce que só ela sabia fazer no fogão a lenha.
 
A ausência da dona Maria faz-se sentir de muitas maneiras ao neto. Seus bonecos de pano, suas histórias, a casa impregnada com o cheiro claro das roupas lavadas e secas ao sol. Os passeios pela rua central da cidadezinha (nem um ponto no mapa).
 
Havia muitos doces na indústria caseira da avó. O meu eleito sempre foi o arroz doce. Com aquelas mínimas raspas de casca de laranja e a porção de canela na dose exata. O prato de arroz doce era uma das portas de entrada no paraíso.

Sim, ainda existia o paraíso.
 
Num dia muito distante, resolvi estudar engenharia química. No fundo, talvez eu procurasse, de forma inconsciente, a fórmula mágica do arroz doce da avó. Era mais importante que a pedra filosofal para os alquimistas. Contudo, nunca  a descobri. Abandonei o curso.
 
Encontrei sabores que lembram vagamente o arroz doce da infância. No início deste ano, comi algo um pouco parecido (não mais do que parecido) num restaurante em Lisboa, o Martinho da Arcada, na Praça do Comércio, diante do Tejo.

(No Martinho da Arcada, Fernando Pessoa jantava todas as noites, entre 1920 e 1935. Sabendo da difícil situação financeira do poeta, o proprietário, que também era seu admirador, nada lhe cobrava. A mesa que ele ocupava, e onde recebia amigos, está lá no mesmo lugar, sempre com uma flor recém colhida no vaso). 
 
Costumo pedir arroz doce quando vou a restaurantes (hábito, aliás, cada vez mais raro diante da inflação que nos maltrata). A maioria dos garçons sequer ouviu falar, como se se tratasse de uma iguaria extinta da Idade Média.
 
A dura verdade é que não existe mais o arroz mais doce deste mundo. Pelo menos pra mim. A receita deve estar escondida em algum livro numa biblioteca entre as nuvens.

Eu levo a vida em busca do arroz doce perdido...
 

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Apontamentos sobre direitos das vítimas no Brasil

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
A vítima, no Brasil, é aquela pessoa a quem coisas ruins acontecem por culpa dela ou por força do destino, ao contrário dos que ainda não caíram, e que se julgam protegidos no interior de uma cápsula indevassável.

A vítima tem direito de saber que dificilmente será tratada como merece pelo Estado e pela sociedade, porque há poucos recursos disponíveis para dar-lhe a necessária e urgente atenção. Ela deve entender que o tempo é curto e a vida continua. No caso, a vida dos outros.

A vítima tem direito de ficar só com seu sofrimento.
 
A vítima tem o inalienável direito de respeitar, até o fim de seus dias, os direitos humanos de seu carrasco.

A vítima tem direito de ser informada que os presídios estão superlotados, não há mais vagas para quem comete crimes.

A vítima, real ou potencial, tem direito de viver aprisionada dentro de si e de sua casa, enquanto os criminosos andam soltos, sabendo que, agora ou num futuro próximo, farão outras vítimas.

A vítima tem direito de entender que aquilo que levou uma vida inteira para construir pode ser destruído em poucos segundos por alguém que não está nem aí para ela e sua família.

A vítima tem todo o direito de fazer um resumo do que lhe aconteceu, desde que evite detalhes desagradáveis  e, principalmente, controle sua emoção, porque as pessoas em geral, e algumas autoridades em particular, têm um milhão de coisas para fazer e se chateiam com relatos emocionais. Às vezes, prefere-se acreditar que os fatos não aconteceram bem assim, ou são peças de ficção.

A vítima tem o irrecusável direito de carregar na alma o insuportável sentimento de invasão, impotência, fragilidade e tristeza pelo que passou.

A vítima tem direito de levar sozinha seu trauma pelo resto da vida, com poucos, raros seres humanos para dividir a angústia da violação sofrida.

A vítima tem o direito de permanecer em silêncio para não importunar a indiferença dos outros.
 
A vítima tem direito de ouvir que seu caso não é o único e que, por isso, deve ter paciência. Dramas como o seu acontecem todos os dias. Seria até melhor poupar-se de falar contra a ineficiência dos públicos poderes.
 
A vítima tem todo o direito de saber que o principal direito humano que lhe assiste é o recato na dor.
 
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Texto publicado em 22 de março, 2010.
 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Encarceramento degradante, danos morais

Jorge Adelar Finatto
 
Para que o tema não caia no esquecimento, como sempre acontece, reproduzo este texto que publiquei em 17 de setembro de 2012. Infelizmente, o assunto continua sendo tratado como de menor importância pelos governos.
Também acredito que as vítimas, no Brasil, estão ao abandono, jogadas à própria sorte, o que é o outro triste lado desta terrível equação.*
 
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenou o Estado do Rio a indenizar, por danos morais, presos que estiveram recolhidos na 110ª Delegacia de Polícia de Teresópolis, em razão de encarceramento em condições degradantes. A ação foi ajuizada pela Defensoria Pública e o valor a título de indenização foi fixado em R$ 2 mil, para cada recluso autor da demanda.

A decisão, em sede de embargos infringentes (Processo nº 0009573-98.2005.8.19.0061), foi prolatada na quarta-feira passada, 12 de setembro, e está divulgada no site do TJRJ. O acórdão ainda não foi publicado. Destaco o seguinte trecho, divulgado no site:

“Urge reconhecer que a crueldade no cumprimento da pena se configura diante da superlotação carcerária e do tratamento desumano aos presos. In casu, os autores não têm camas, ou mesmo espaço suficiente para dormirem todos no chão ao mesmo tempo (o que já seria indigno). A aeração é insuficiente e a umidade excessiva. Também falta luz solar e local apropriado para as necessidades fisiológicas dos presos. Tudo a contribuir na proliferação de bactérias, fungos, vermes e vírus, além das mais diversas doenças. Não é demasiado asseverar, nessa linha de raciocínio, que o tratamento dispensado aos presos no Brasil equivale a verdadeiro delito de tortura”, afirmou o desembargador Rinaldi no voto vencido quando da apelação.

O entendimento do desembargador Luciano Rinaldi de Carvalho, antes vencido na 14ª Câmara Cível, acabou prevalecendo nos embargos por 5 a 0.

A decisão é importante por marcar a posição do Judiciário em relação à absurda realidade dos estabelecimentos penais brasileiros. Embora sujeita a recurso, é de se esperar que outras decisões venham, em breve, obrigar o poder público a cumprir a Constituição Federal (art. 5º, XLIX: é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral) e a Lei de Execução Penal (nº 7.210/84).

A superlotação das penitenciárias é fonte primária de produção de violência e desumanização da sociedade brasileira. As péssimas condições de vida dos detentos, na maioria das prisões, são bastante conhecidas.

A situação retrata a pouca importância que o Estado tem dado ao problema e reflete, também, uma inaceitável tolerância com a violação dos direitos humanos no cárcere. O resultado mais evidente é o aumento da criminalidade nas nossas cidades.

O alto índice de reincidência criminal é uma calamidade no Brasil.

Novidade? Nenhuma. Os apenados um dia regressam para as ruas. Sem ter recebido tratamento adequado, sem oportunidade de se reintegrar socialmente, voltam ao crime, fazendo novas vítimas. Minha percepção, dos muitos anos em que atuei como juiz da execução penal, é de que parcela significativa dos apenados não volta ao crime se tiver oportunidade de mudar de vida. Creio que este número pode chegar a mais de 60%.

Os prejuízos econômicos e sociais causados pela reprodução do crime, a partir da execução penal ineficaz e desumana, são imensos, afetando o próprio desenvolvimento da nação. Alguma autoridade já parou para analisar o custo da criminalidade? Não só pelas perdas materiais, mas pelo insuportável dano psicológico representado pela destruição de vidas e da saúde de milhares de pessoas todos os anos.

Neste aspecto, o Brasil ainda vive no subsolo. É dever do Estado receber presos em condições mínimas de salubridade, possibilitando trabalho e ensino profissional, estudo, acompanhamento médico e psicológico, desenvolvimento de atividades úteis à comunidade, além da indispensável convivência com familiares. O rompimento dos laços, ainda que precários, é uma agravante na vida do recluso.

Se a Constituição e a LEP forem cumpridas, haverá mais dignidade nos presídios e cadeias do país. E os cidadãos sofrerão menos com a violência aqui fora.

Isto, é claro, nada tem a ver com oferecer hotel cinco estrelas a quem praticou crimes.

O caminho para a ressocialização é possível, mas é preciso decisão política e investimento (assim como na saúde e educação). O abandono dos presos e presídios, nas atuais condições, só se presta à perpetuação de uma sociedade violenta e sem perspectiva real de dar um salto civilizatório.

As penas acessórias (ilegais, degradantes e cruéis) presentes nas penitenciárias, desde a violência sexual até as doenças lá contraídas, precisam ser eliminadas.
 
Lembrai-vos dos que estão em cadeias, como se tivésseis sido presos com eles, e dos que estão sendo maltratados, visto que vós mesmos também estais ainda num corpo. (Bíblia, Apóstolo Paulo, Hebreus, 13:3)

O texto de Paulo, escrito em Roma, por volta do ano 61 da Era Cristã, é rico em sabedoria e uma séria advertência contra a desumanização das cadeias. Um importante alerta contra a indiferença da sociedade e do Estado em relação ao esquecimento dos prisioneiros.

A urgente construção de novas casas prisionais, dentro de requisitos mínimos previstos na lei, é uma decisão que não pode mais ser adiada.

Este mundo de sombras e de morte tem de ser eliminado, deixando de ser casa para cadáveres vivos, no lúcido dizer de Dostoiévski, em seu livro Recordações da Casa dos Mortos, para transformar-se na casa da esperança.

O Brasil é hoje uma das grandes democracias do planeta. É injusto para o cidadão ter de conviver com esse sistema que não respeita direitos humanos de presos e tampouco das vítimas, reais e potenciais, que sofrem as consequências do caos instalado.

E, por favor, não se fale em falta de recursos como razão para manter as coisas como estão. O país que tem dinheiro para realizar a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e a Olimpíada em 2016, entre outros "investimentos", não pode se valer deste argumento.

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*Apontamentos sobre direitos das vítimas no Brasil:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/03/breves-anotacoes-sobre-direitos-humanos.html