quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Rua do sol, nº 2015

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Em 2015, eu quero uma casa acolhedora, respirando luz. Com janelas em todos os quadrantes. Uma casa bonita e sólida sobre o chão, à prova de raio, mentira e furacão. Com uma grande mesa pra receber os amigos sinceros.
 
Uma casa sem ocasião de escuridão. Cercada de árvores e flores e pássaros. E gente, sim, muita gente conversando dentro. Com barulho de louça na cozinha, panela de ferro e chaleira esquentando no fogão.

Eu quero uma casa visitada por anjos, em 2015. Habitada por gente que ri, sofre, trabalha, tenta ser feliz, erra e se perdoa.
 
Gente que gosta de partilhar o pão e a alegria. E que não foge da dor quando ela chega.
 
Uma casa pintada de amanhecer.

Que espelha o céu e as nuvens nas vidraças largas. Com uma sala grande, onde as pessoas se encontrem sempre que tiverem vontade.

Uma residência com muitos cômodos, muitas faces, muitos braços e muitos afetos (que é pra suportar os dias difíceis que vêm pela frente).
 
Em 2015, uma casa do tamanho da nossa esperança, do nosso desejo de paz e de seguir em frente rumo à aurora.
 
Aos leitores e amigos dO Fazedor de Auroras, desejo saúde, em primeiro lugar, e harmonia, amor, sonhos, reconciliações e travessias em 2015!
 

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O fantasma na livraria

Jorge Adelar Finatto

Campos de Cima do Esquecimento. photo: jfinatto
 
Estou/estamos respirando e esta é a grande notícia. Como o oxigênio não é algo para ser desperdiçado, já que cada vez mais raro na atmosfera, o ato de respirar deve trazer em si uma nobre finalidade ou algo próximo disso. Estar vivo não é qualquer coisa. É responsa.
 
Pensando nisso, fui à livraria buscar a ração mensal de papel impresso, hábito gutenberguiano que tanto me apraz. Levei junto o filho Lucas, de 16. Estamos passando uns dias em Porto Alegre, na caverna moderna do apartamento. Fiquei tranqüilo com a relativa calma no trânsito, a cidade deu uma esvaziada. Pra quem não vai à praia como eu, Porto Alegre é o lugar ideal nessa época. Tem espaço pra todos, ao contrário do resto do ano.
 
Mas tenho prazo de validade na cidade grande. Alguns dias e já quero retornar às montanhas. Neste ano, repetindo a receita dos últimos 30 anos, vou passar o Ano Novo com a caterva de Passo dos Ausentes, no costumeiro jantar da Sociedade Histórica, Geográfica, Astronômica, Artística, Literária, Antropológica, Onírica e Antropofágica.

Gosto de ficar horas ouvindo as histórias dos companheiros. Ouvindo, sim, porque não tenho o dom do bem falar e as minhas histórias são poucas e sempre as mesmas. Por conta dessa ausência vocal e esperteza auricular, já fui chamado de zelador do oblívio. Uma espécie de fantasma talvez.
 
No fundo, no fundo, sou só um bicho-do-mato calado que gosta de observar e admirar. As histórias bonitas e interessantes são sempre as dos outros.
 
Por conta e risco, adquiri os seguintes livros, após ler as primeiras páginas de cada um, enquanto tomava um cappuccino no café da livraria:


Cartas extraordinárias (a correspondência inesquecível de pessoas notáveis), organização de Shaun Usher, Companhia das Letras, tradução de Hildegard Feist; O futuro de uma ilusão, Sigmund Freud, L&PM Pocket, tradução de Renato Zwick; Ronda da noite e Dora Bruder, ambos de Patrick Modiano, Prêmio Nobel de Literatura 2014, Editora Rocco, o primeiro traduzido por Herbert Daniel e o segundo por Márcia Cavalcanti Ribas Vieira; À sombra do meu irmão, de Uwe Timm, Editora Dublinense, tradução de Gerson Roberto Neumann e Willian Radünz.
 
Cartas extraordinárias contém um impressionante acervo de missivas, muitas delas acompanhadas de cópias dos manuscritos ou textos datilografados, e fotografias dos remetentes, além de esclarecedoras notas explicativas. Entre elas, o bilhete suicida de Virginia Woolf e a carta em que Gandhi apela a Hitler para que evite a guerra. À sombra do meu irmão trata das marcas do nazismo e do pós-guerra numa família alemã. As linhas que li de Modiano são uma beleza. As palavras do velho e bom Sigmund tocam no ponto, como de costume.

Ler é respirar fundo.
 

domingo, 28 de dezembro de 2014

Vive-se

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

Vive-se. Do jeito que dá. Às vezes, até mesmo sem nenhum jeito se vive.
 
Porque a única coisa realmente urgente e importante é manter-se respirando. O resto é o que vem depois. E o que vem é neblinoso, imponderável, se administra. Ou não.
 
Convivemos com a dor, com a falta de amor, de encanto, de beleza, de dinheiro, com a eterna falta de sentido das coisas. Enquanto isso, vive-se.
 
Vive-se em Porto Alegre, em Paris, em Sierre, em Lisboa, em Cacique Doble. Vive-se no silêncio de Rarogne e de Passo dos Ausentes. Vive-se à beira do Arroio Tega e nas cercanias do Castelo de Muzot.

Vive-se em toda parte. Principalmente, no fim do mundo.

Vive-se em secreto e em surdina, com raros, distantes amigos. Mas vive-se.

Vive-se apesar da corrupção que assola o Brasil e destrói tudo o que se tenta construir e até o que não se construiu como a floresta Amazônica e a Mata Atlântica.
 
O mais que se faz é viver. De janeiro a janeiro. Com sol e com chuva. Com alhos e bugalhos. Vive-se.

Calma, a realidade não merece o teu suicídio.

Vive-se na sexta, no sábado e, eventualmente, no domingo. Segunda é um enigma que nem a filosofia, nem a poesia e muito menos a astronomia conseguiram resolver. Mas o fato é que se vive.
 
Vive-se apesar do lixo na rua, do odor nauseante de combustível queimado, do esgoto escorrendo impune para o rio.

Vive-se em que pese o triste, insuportável e persistente racismo.

Vive-se olhando os veleiros que fogem para o mar.
 
Vive-se diante do olhar atônito das crianças abandonadas.

Vive-se a nostalgia das casas sem eletricidade.
 
Vive-se sem embargo dos livros não lidos. Vive-se não obstante todos os livros lidos.

Vive-se com as folhas secas do outono nos bolsos do antigo casaco.

Vive-se sem nada a perder e mesmo depois de perder tudo.
 
Vive-se sabendo que nunca mais se encontrará aquela mulher para pedir-lhe um olhar, um abraço.
 
Vive-se de mal a pior, sem eira nem beira.

Vive-se apesar dos mortos nos olhando dos velhos retratos e dos lugares vazios na mesa.

Vive-se a vida invisível dos anônimos, dos solitários, dos desmemoriados.

Vive-se de passagem, sem ensaio, uma única vez, com o coração doendo no peito. Mas vive-se.
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Publicado em 16, novembro, 2014.
 

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Viaje alrededor del tiempo

Jorge Adelar Finatto
 

Este é o penúltimo texto da série dos 10 mais lidos em 2014. No domingo, será publicado o mais lido do ano.
 
O TEMPO é um mistério que não se deixa desvelar. Desde que o primeiro homem e a primeira mulher foram expulsos do paraíso, onde tinham vida eterna, a passagem do tempo passou a ocupar o núcleo das atenções, perdendo apenas para a luta pela sobrevivência.

Entender o tempo e procurar dominá-lo, para quem é mortal, é uma obsessão.
 
Segundo o dicionário Aurélio, o tempo é a sucessão dos anos, dos dias, das horas, etc., que envolve, para o homem, a noção de presente, passado e futuro.
 
A natureza do tempo, contudo, está longe de ser domesticada. Tem sido tema número um de estudos e imaginação para filósofos, cientistas, poetas, artistas e livres-pensadores em geral. Apesar disso, ninguém conseguiu até hoje estabelecer um conceito plausível.

Não há resposta para esta questão tão cotidiana quanto insondável: o que é o tempo?
 
A idéia de que o tempo flui continuamente em direção ao futuro (fluxo do tempo) e de que o presente é a única coisa real é o princípio melhor assimilado pela maioria das pessoas. Para os físicos, porém, o tempo simplesmente não flui, ele apenas é. Há filósofos que afirmam que o fluir do tempo se baseia numa falsa concepção.¹ Albert Einstein assim se expressou: O passado, o presente e o futuro são apenas ilusões, mesmo que teimosas
 
Uma corrente entende que o tempo existe de forma estendida, isto é, passado, presente e futuro coexistem simultaneamente, como uma paisagem em que o conjuto de objetos visuais se apresenta ao mesmo tempo aos olhos do observador.
 
É o que chamam de teoria do bloco de tempo (block time). Esta noção está ligada à escola filosófica conhecida como eternalismo, a qual considera que o universo é dotado de quatro dimensões. De tal forma, passado, presente e futuro seriam igualmente reais. Toda a eternidade está estendida num bloco quadridimensional composto de tempo e três dimensões espaciais. ³
 
É como caminhar na bruma tratar desse assunto. Como andar sobre a corda estendida entre dois edifícios, feito um funâmbulo.

O tempo, penso eu na minha vã filosofia, é bem diferente na vida de uma estrela, se comparado ao tempo de uma borboleta. Para a borboleta, a migalha de um segundo faz diferença em sua breve existência (entre duas semanas e um mês, em média). Ao passo que um ano dos nossos, na vida da estrela Vega, por exemplo, nada significa (ela, que é uma estrela nova, tem cerca de 455 milhões de anos e muitos, muitos mais pela frente...).
 
O tempo que interessa para nós, patéticos mortais, é o que tem a ver com a vida humana. Daí a acolhida, entre nós, da noção de fluxo do tempo.

Tempo urgente, tempo transitório, tempo finito, tempo que escapa entre os dedos. Será talvez impossível chegarmos a uma visão absoluta do tempo diante da nossa condição. Não temos distanciamento crítico, somos prisioneiros do efêmero. Em outras palavras, somos parte do enigma.

Uma vez cheguei a considerar o tempo como inexistente, na esteira do pensamento de uma parcela dos físicos. Seria uma criação humana feita para medir a duração de fatos, acontecimentos, anos de vida, horas de descanso, períodos de trabalho, estudo, medição sem a qual a vida seria caótica nos padrões da nossa civilização. Por isso inventamos relógios de pulso, de parede, de sol, atômicos, clepsidras, ampulhetas, etc.
 
O que haveria, nessa visão singela, é uma contínua modificação da matéria. No caso dos seres vivos, estas alterações aconteceriam desde a concepção até a morte. O tempo não existiria como uma realidade autônoma, mas relativa. A idéia de fluxo de tempo perderia o sentido com a eliminação da morte, por exemplo. Mas não passei dessas abstrações de fundo de quintal.

Nessa viagem ao redor do tempo, creio que os poetas se aproximam melhor do imbróglio do que os cientistas e filósofos.

O tempo é uma viagem, o voo de um pássaro, o movimento do rio, a asa da borboleta acariciando o ar, o risco de uma estrela cadente, o pulsar de um vaga-lume. O resto é estranhamento, dúvida, perplexidade.

O mistério continua.

Vai saber por que eu tirei o domingo pra pensar no tempo, em vez de sair por aí aspirando os aromas inaugurais da primavera nos Campos de Cima do Esquecimento. Pois é o que vou fazer agora, enquanto ainda há dia lá fora.

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¹-²-³ Biblioteca Scientific American Brasil, vol. 3. Enigmas do Espaço-Tempo. Ediouro Duetto Editorial Ltda., São Paulo, 2013. O fluxo misterioso. Artigo de Paul Davies, págs. 9 e 10.
Texto publicado em 7 de setembro, 2014.
Photo de relógio reproduzida da internet. O crédito da imagem será dado tão logo conhecida a autoria.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O Natal do afeto

Jorge Adelar Finatto

Nasceu Jesus. pintura do holandês Geertgen Tot Sint Jans (1460-1490).
apresenta Jesus resplandecente e um anjo brilha ao fundo
fonte: casa.abril.com.br *
 

Tem muita gente que pensa que Natal é coisa de presentes. A felicidade deste dia estaria em dar e receber algo material. Quanto mais caro o objeto, maior a alegria. Felizmente o Natal é infinitamente mais do que isso.
 
O espírito humano não se contenta com coisas materiais apenas. Essas, aliás, são o que menos importa. Para uma pessoa que não despreza sua espiritualidade, cada dia é uma procura incessante de sentidos para a vida.
 
A felicidade do Natal está em trazer à memória, de forma muito viva, a figura histórica de Cristo. O que ele trouxe de revolucionário, simples e verdadeiro.
 
Eu vos dou um novo mandamento, que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros. (João 13:34)
 
O Natal traz a lição do amor ao outro.
 
Tens de amar o teu próximo como a ti mesmo. (Lucas 10:27)
 
A lição da compreensão, da redenção pelo perdão. Perdoar, ser perdoado. Não humilhar, não destruir, não matar. E ter presente a existência de Deus.
 
A enorme tristeza do Natal, na vida de muitos, não advém só da falta de presentes, mas da ausência de pessoas e de afeto nesse dia e em todos os outros dias do ano.

O amor humano, de que tanto o planeta está carente, é o que mais falta nos faz.
 
Cristo nos aponta o caminho do afeto para construir um mundo, não o da culpa e da raiva. Não encontrei até hoje, em nenhum sábio, poeta ou filósofo, síntese moral e ética mais reveladora e profunda do que esta.
 
Que tenhamos amor suficiente neste Natal. Afeto para encher o coração vazio e triste. Para acolher e sermos acolhidos.
 
A respeito de quem é realmente o nosso próximo, vale a pena ler a breve e transcendente passagem de Lucas 10:29-37.
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*site casa.abril.com.br: Natal: o nascimento de Jesus segundo grandes pintores
http://casa.abril.com.br/materia/natal-nascimento-de-jesus-pinturas#6
 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sótão, porão e assombração

Jorge Adelar Finatto
 
Vale do Olhar. photo: j.finatto
 
Leitores costumam perguntar se os textos que escrevo sobre Passo dos Ausentes têm um fundo de realidade ou são apenas páginas mal ajambradas de ficção.
 
Suspeitam que os Campos de Cima do Esquecimento são um território mítico, habitado por seres imaginários que brotam de uma mente que funciona aquecida à beira do fogão a lenha e que se deleita no estranhamento.

Passo dos Ausentes é um lugar abandonado ao sul do mundo, que nem sequer está no mapa do Rio Grande do Sul. Somos poucos. Somos invisíveis. Temos uma história que começa com a destruição dos Sete Povos das Missões.

Algumas famílias de índios guaranis e uns poucos jesuítas fundaram o povoado. As casas eram de pau a pique e barro, cobertas com capim-santa-fé. Vieram fugindo do massacre movido contra os missioneiros por espanhóis e portugueses, em 1756, durante a Guerra Guaranítica, de tristíssima memória.

Depois dos fundadores aqui chegaram pessoas de outras etnias (africanos, judeus, árabes, ciganos, etc.), todas tendo em comum uma história de violência e perseguição.
 
Quem se importa com isso, raro leitor? Nem o governo tampouco, que se nega ao reconhecimento político da cidade (por sem-razões que maltratam a inteligência e a sensibilidade das pedras).

E assim vamos vivendo. Os jovens cedo vão embora em busca de um futuro. Os vetustos resistem. A solidão nos devora e nos une. Mas não perdemos tempo com lamentações, porque amamos a vida assim mesmo com suas trampas e lágrimas.

A cidade existe e, apesar de tudo, nela ninguém passa necessidade, pelo contrário. Os serviços básicos nos orgulham. A estação de trem está abandonada desde 1950. Mas nela está localizado o famoso Café da Ausência onde se toma o melhor café colonial da serra gaúcha.

A Sociedade Filosófica, Literária, Histórica, Geográfica, Artística, Antropológica, Astronômica, Geológica, Esportiva, Recreativa e Antropofágica é nosso órgão de governo e deliberação.

Não temos aviões, mas temos alguns balões e até dirigíveis. Lampiões de gás alumiam as ruas esquecidas. Somos poucos.

As nuvens são nossas testemunhas.

Ingmar Bergman esteve aqui em 1958 após filmar Morangos Silvestres. Fez amigos, como não? Ficou três meses. Dizem os mais velhos que chorou na hora de partir, do mesmo modo que Oscar Wilde, conforme aqui já relatado. Disse que ia voltar, mas isso não aconteceu.

A casa que o cineasta sueco ocupou, com a frente voltada para o Contraforte dos Capuchinhos, está como ele deixou. Com vários de seus pertences, inclusive a câmera que ele utilizava e três latas de filmes filmados nessas montanhas. Ninguém toca em nada. É patrimônio espiritual.
 
Quem dera tudo isso não passasse de um delírio de uma mente carcomida pela invenção! Uns transportes d'alma, como diz o nosso poeta Farandolino Brouillon. Mas não, ai de nós.
 
Ficção, estimado leitor, é o que se vive na duríssima realidade.
 
Passo dos Ausentes, território de gentes e voláteis falantes, perdido nas álgidas alturas dos Campos de Cima do Esquecimento. Esta é a cidade. Somos invisíveis.

Os fantasmas andam sobre os telhados, sentam nas soleiras das velhas casas. Caminham pelas ruas e praças com suas roupas antigas, suas mantas, seus olhares distantes, seu silêncio. Aqueles que gostam de ler e filosofar passam as tardes no Café da Ausência, conversando entre si sem dizer palavra e mirando o Vale do Olhar.
 
Este é o mundo onde vivo e escrevo, raro leitor. Recolho as histórias dos seres que povoam esse pequeno universo. Sou apenas o confidente de um mundo em extinção e seus habitantes.

Escritos disparatados em que almas do outro mundo conversam com os vivos, afirmam com galhofa os doutos e os de pouca fé. Pois é o que eu digo: todas essas criaturas pertencem ao mundinho que é, afinal, toda a Terra.
 
Sou apenas o interlocutor, o escrevedor, a antena torta que capta essas vibrações. Se não resgatar esse mundo da sombra e do oblívio, quem o fará?
 
O único personagem de ficção que povoa essas histórias é o autor dessas mal traçadas.

O inverno é feito de espessas neblinas, vultos, remorsos, folhas secas, memórias. E esperança. Sim, esperança. E uma pitada de canela no chá de maçã.

O que não está escrito não existe. É o que me dizem as estrelas no seu quintal de infinito, é o que eu sinto vivendo no farelo das horas. Como se alguém se importasse com essas migalhas.
 
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Texto publicado em 26 de junho, 2014. 
Histórias de Passo dos Ausentes. Registro na Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Escritório de Direitos Autorais, nº 663.190.

domingo, 21 de dezembro de 2014

No tempo do Cine Vogue

Jorge Adelar Finatto
 
Retratos de Ingmar Bergman. fonte: site oficial*
 
Teve um tempo em Porto Alegre que assistir a filmes de Ingmar Bergman (1918 - 2007) era uma religião. O diretor sueco era o pastor de almas de muita gente por aqui, principalmente estudantes, intelectuais,  perdidos na vida e trânsfugas em geral.
 
Era na época da ditadura civil-militar. Eu andava pelos 19 anos em 1976. O general Geisel era o presidente de plantão com o apoio de parcela da sociedade civil brasileira e parte da imprensa. Os direitos e garantias individuais estavam fora da ordem jurídica. Ter ideias e opiniões diferentes dos que ocupavam o poder configurava crime do pensamento. Sim, muito parecido com o "1984", de George Orwell.
 
Nos regimes em que a escuridão vigora, as nuances são proibidas e qualquer sutileza é vista como inimiga. Todos são suspeitos (de alguma coisa) até prova em contrário. Era assim.

O Cinema Vogue, na Avenida Independência, era, como os demais de então, um cinema de rua. Tinha uma programação especial, considerada "cabeça". Um território de resistência em meio à repressão, assim como os bares da Esquina Maldita. 
 
A delicadeza era uma ilha deserta a mil milhas do continente.

O nórdico Ingmar Bergman não tinha nada a ver com a ditadura no Brasil. Não sabia que era o pastor daquelas almas abismadas em voos interiores e travessias espirituais.

Não sendo possível mudar a realidade, muitos buscavam outras claridades. Havia um mundo intangível a ser descoberto, onde os donos do poder e os emissários da morte não entravam.
 
Apesar da pobreza material em que eu vivia, e do escasso tempo para os assuntos do espírito, apreciava os itinerários bergmanianos através da consciência, da memória e, sobretudo, do inconsciente. A manhã seguinte aos filmes de Bergman era sempre o cru desafio da luta pela sobrevivência.

O Brasil de então era e, sinto dizê-lo, ainda é um lugar onde reina uma grande violência social baseada na exclusão e na indiferença. O acesso às coisas da arte continua um privilégio para poucos.

O país conseguiu livrar-se da ditadura, mas não logrou o mesmo com a corrupção, responsável direta pelo atraso e pelo sofrimento da maioria. A dita esquerda tomou o poder central, mas as práticas continuam as mesmas, e em algumas situações pioraram muito como evidenciam os escândalos de grossa corrupção dos últimos anos.
 
Devo dizer, também, que gostava de filmes de Teixeirinha e Mazzaropi, que assistia em outras salas tidas como menos cult, do povão. Havia um grande preconceito das classes média e alta, principalmente entre universitários, em relação a esses filmes brasileiros. Uma coisa idiota como todo preconceito.
 
Essas lembranças me vêm porque andei revendo Morangos Silvestres (1957) e Fanny e Alexander (1982), duas obras-primas do grande cineasta. Me lembrei de mim e de nós. Da vida que foi e da que poderia ter sido. Da vida que passou, tempo finito.

Olhei com esperança para a vida que é e para a que vem vindo logo ali.
 
Viver pode até ser difícil para quem leva o coração entre as mãos, sem omiti-lo nas suas ações e decisões. Mas é infinitamente melhor do que ser mais um a roubar, a dar porrada, a pisar na cabeça dos outros, a destruir a vida alheia, a não ter valores.
 
Muita gente se perdeu no caminho em sinistras direções. Eu inventei tempo para a poesia e a arte em minha vida e tentei/tento compartilhar isso. Foi e é uma maneira de não me perder e de não enlouquecer em meio a uma realidade tão absurda, desumana e violenta como a do nosso país.

Ave, sentimento.
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Site Oficial de Ingmar Bergman:
Os direitos humanos em Cuba:
Texto publicado em 12 de agosto, 2014.