sábado, 24 de janeiro de 2015

La que nunca tuvo novio

Jorge Adelar Finatto
 
Ruazinha do bairro Palermo Viejo, Buenos Aires. photo: jfinatto


Melancólica e linda canção. A que nunca teve namorado.

Estava no avião, indo para Buenos Aires, quando ouvi o belo disco Tango, do violonista e guitarrista argentino Luis Salinas. Música instrumental de alta qualidade, oferecida pelo serviço de entretenimento do barco voador.

Nunca tinha ouvido falar em Salinas. Fiquei impressionado com seu talento e com a inspirada seleção de repertório desse disco de 2007.

La que nunca tuvo novio. A melodia nostálgica, suave e doce deste tango de 1930 me levou a encontrar a mulher que nunca teve namorado, que triste!

E a vi horas sem fim na janela, olhando a calle desierta, onde algum moço passava de vez em quando, e ela então sonhava. Mas o moço apenas passava diante de sua janela, todos os moços passavam e se iam para outras moças em outras janelas.

Ela morava com a mãe, cuidava da casa e dos sobrinhos. Numa calle com casas coloridas e flores humildes nas janelas, num bairro distante.

Uma ruazinha perdida em Buenos Aires, um lugar escondido de Deus, um ermo esquecido ao sul do planeta. Igual a tantos no mundo. Lá ela morava.

Aos sábados, la que nunca tuvo novio se enfeitava com um vestido florido que ela mesma fizera e se ia pelas ruas do barrio com a sombrinha lilás doendo sob o sol. Olhava as vitrines, conversava na praça com as vizinhas, tomava refresco do vendedor ambulante.

Depois voltava sozinha pra casa por ruas estreitas. Assim passaram-se os anos. As amigas de infância se casaram, depois as filhas delas. A vida passou. E as vizinhas diziam: la que nunca tuvo novio. Pobrecita!

Essas coisas eu vi enquanto ouvia o dedilhado sensível e introspectivo do violão de Luis Salinas. Caminhei pela calle triste da mulher que nunca teve namorado.


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Don Alberto Casares y la última tarde de Borges en Buenos Aires

Jorge Adelar Finatto 

Alberto Casares. photo: jornal Clarín, Buenos Aires*

Na tarde de segunda-feira me dediquei a visitar livrarias, que é o que tenho feito em Buenos Aires. O que esta cidade é para mim? Cafés e livrarias. E caminhadas pelo bairro Puerto Madero, olhando os barcos e o movimento das pessoas ao longo do braço do Rio da Prata que entra pela cidade.

Antes de sair do hotel, telefonei para a librería de Alberto Casares. Fui atendido ao telefone pelo próprio. Queria saber até que horas estava aberta: até as 19h30min, ele respondeu. A bordo do chapéu de palha, lá me fui na tarde quente do janeiro bonaerense.

A livraria está situada no centro da cidade, na Calle Suipacha, 521. Há ali primeiras edições de livros raros. Há ambiente de livros e cheiro de livros. Não é um supermercado onde também se vende literatura. Mas há nesse lugar, sobretudo, a figura de Don Alberto.

photos: jfinatto, 19/1/2015

Apresentei-me ao livreiro dizendo que era um antigo leitor de Jorge Luis Borges (1899-1986), um borgista. Ao que ele respondeu: fazemos parte de uma comunidade espalhada pelo mundo. Senha e contrassenha ajustadas, começamos a falar do mestre, mas não só. Alberto admira, como eu, a saga das Missões Jesuítico-Guaranis. E lamentamos que Borges não tenha escrito sobre o assunto.

Em seguida falamos a respeito do tema deste texto. Alberto Casares organizou, sem o saber, aquela que foi a última tarde de Borges em Buenos Aires, passada no seu ambiente natural: uma pequena livraria na cidade amada. O escritor viveu ali sua despedida dos amigos e da Argentina.

Ao realizar uma exposição com as primeiras edições das obras do escritor, no mês de novembro de 1985, convidou-o para estar presente. Conversou com Borges ao telefone em diversas ocasiões. Borges escolheu o dia 27 de novembro para o evento. Explicou que viajaria no dia seguinte para a Itália, onde passaria o Natal, e depois iria para Genebra, uma de suas pátrias, como dizia. Alberto ponderou se não seria melhor outra data. Borges disse que não, 27 estava bem. Só o escritor sabia que naquele lugar e naquele dia faria sua despedida.

photo: jfinatto

Na dia marcado, Alberto telefonou-lhe pela manhã e Borges falou que não poderia ir à livraria, estava complicado por causa da viagem a realizar-se em menos de 24h. Alberto ficou desanimado, mas desejou-lhe uma ótima ida à Europa. Restou triste e abatido.

Naquela mesma manhã, falou com um amigo, na livraria, sobre o ocorrido (notando seu ar de desalento, o amigo queria saber o que havia). Disse-lhe o companheiro para telefonar outra vez a Borges. Foi o que fez mais tarde. Do outro lado, o escritor atendeu e perguntou-lhe:

- Casares, que esperas para vir me buscar?

Eram 14h. Correu até sua casa, na Calle Maipú, e o levou para a livraria. Borges conversou e autografou livros para os presentes (não era um grupo grande), entre os quais o amigo e também escritor Adolfo Bioy Casares, que não encontrava havia muito tempo. Foram cinco horas de convívio, um encontro simples e cálido, sem discursos. Ao despedir-se, no fim da tarde, Borges disse que estava partindo para a Europa no dia seguinte. Iria para Genebra onde morreria.

- Me voy a Ginebra a morir.

Borges com Bioy Casares. Atrás, Alberto (de barba). photo de Julio Giustozzi

As pessoas não entenderam a manifestação do escritor. Ninguém sabia que estava muito doente. A realidade é que partiu com María Kodama no dia 28 de novembro, nunca mais voltou à Argentina e, de fato, morreu cerca de sete meses depois, em 14 de junho de 1986, em Genebra, onde foi sepultado no Cemitério de Plainpalais.

Alberto Casares ama a literatura de Borges e os livros em geral. Dirige a importante Coleção Memória Argentina, publicada por Emecé Editores. Além de parente, foi amigo muito próximo de Adolfo Bioy Casares. Nas paredes de sua livraria, habitam fotos de Borges e outros escritores. Entre elas, alguém que nos é muito caro: Miguel de Unamuno.

O Don que dedico a Alberto Casares é resultado de um breve porém rico encontro. O reconhecimento a um homem que cultiva a humildade, o humanismo e a cultura.

photo: jfinatto
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*Vídeo com entrevista de Alberto Casares para o jornalista Luis Sartori do jornal Clarín:
http://www.clarin.com/sociedad/Admiro-Borges-abre-cabeza-corazon_0_905909590.html
 

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O cheque de Erico Verissimo

Jorge Adelar Finatto
 
Erico Verissimo*
 
O fato é que eu estava em casa quando bateram à porta. Fui abrir e qual a minha surpresa: era Erico Verissimo (1905-1975). Vinha me fazer uma visita. Nunca imaginei que um dia na vida ia conhecê-lo pessoalmente e, menos ainda, que receberia sua visita. Passamos à sala. O Erico estava alegre e cordial, magro como sempre, e com aquele boné que usava nas caminhadas.

Disse-lhe então que, durante um certo tempo, na infância (eu tinha dez anos), morei na Rua Dona Eugênia, bairro Petrópolis, em Porto Alegre, que é paralela à Rua Felipe de Oliveira, onde ele tinha a famosa casa na qual recebeu, por muitos anos, com a esposa Mafalda, não apenas os amigos do casal como inúmeros leitores que o procuravam vindos de toda parte. Todos queriam conhecer o autor de O Tempo e o Vento.

A tal ponto que sua residência virou uma espécie de ponto turístico da cidade, o que lhe criava algumas dificuldades, pois precisava de silêncio e recolhimento para trabalhar. Mas ele e Mafalda eram anfitriões generosos e, na medida do possível, procuravam receber os visitantes.

De ouvir falar em Erico, de suas obras e seu pensamento humanista, eu, menino ainda, queria muito conhecê-lo. E, sem embaraço, fui umas três vezes à casa da Rua Felipe de Oliveira. Me lembro que nessas ocasiões uma senhora atendeu à porta e disse que ele estava em viagem.

Não consegui conhecer o escritor e disso me ficou uma frustração. Esse sentimento mais se acentuou quando, em seguida, li Clarissa, livro que me encantou e impressionou. Jamais esqueci a solidão de Amaro, seu amor secreto, inconfessado e dolorido pela adolescente da pensão onde vivia. A admiração cresceu com a leitura de seus outros livros.

Mas então, esta visita agora, assim de repente, eu já um senhor cozido e recozido pelos anos, me causou imensa alegria. Conversamos sobre a vida, sobre livros e leituras (mas não muito), uma conversa cálida, eu mais ouvindo do que falando, claro, porque não é todo dia que se recebe a visita de um grande escritor que também é um belo ser humano.

Quando chegou a tardinha, Erico disse que tinha de partir. Perguntei-lhe como voltaria para casa, ele respondeu que de ônibus. Acompanhei-o até a parada do ônibus Petrópolis. Nos abraçamos e ele se foi.

O mais incrível aconteceu alguns dias depois.

Tocou o telefone, era o Erico.

- Tu recebeste o cheque?, ele perguntou.

- Cheque?, que cheque, Erico?

- O cheque que te mandei num envelope.

- Não, não recebi nada. Mas por que o cheque?

- É bom verificares a caixa de correspondência. Até logo, ele disse, e desligou.

Abri a caixa e constatei que, de fato, lá estava o envelope. Nele havia um cheque dobrado. Tinha a assinatura do Erico. Eu não estava entendendo nada. Afinal, por que o pagamento? Corri os olhos para conferir a importância. No lugar do valor numérico, estava registrado 150. E, por extenso, estava escrito: cento e cinqüenta abraços.

Então pensei comigo: esse Erico é mesmo um grande cara.

Depois acordei, estava chovendo aqui em Buenos Aires. Fui até a janela, fiquei olhando Puerto Madero nessa manhã de domingo. A cidade é bonita de qualquer jeito, pensei. Estava profundamente feliz com o que acabara de sonhar. Não sei de onde tudo isso veio, mas que bom que veio.

Guardei o cheque do Erico no cofre do coração.
 
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photo reproduzida do site da editora Companhia das Letras.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

La dulzura puede cambiar el mundo

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto


A frase me chamou a atenção enquanto tomava um café no Café Brasilero em Montevideo. Em tempos de radicalismos como os que vivemos, de todos os lados, ler algo assim alivia a alma.

Sim, a doçura pode mudar o mundo. Um pouco de açúcar nas relações, em todas as relações, faria muito bem ao planeta. Salvaria muitas vidas, despertaria os corações para a amizade, para o encontro, para a tolerância e o respeito.

Ninguém tem a verdade toda a seu lado. É preciso colocar-se no lugar do outro, é preciso tentar enxergar e entender suas razões e até suas sem-razões.

Para os que reivindicam direitos absolutos, em qualquer atividade ou situação da vida, vale lembrar que a liberdade e a democracia só se sustentam quando existem limites. Todo direito encontra limitação em outro direito. Sem limites, de uns e de outros, não há vida possível em sociedade. 

A propósito disso, em muito boa hora o filme argentino Relatos Selvagens, que tem o extraordinário Ricardo Darín como um dos atores, foi indicado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. São relatos que tratam justamente da falta de limites no comportamento das pessoas e das terríveis conseqüências que podem resultar.

Eduardo Galeano, em photos no Café

A frase do título está escrita nas embalagens de açúcar da marca uruguaia Azucarlito, que acompanham o cafezinho. Raras vezes um slogan foi tão feliz. Lê-lo, nestes tempos revoltos, é motivo de esperança.

O Café Brasilero fica na Calle Ituzaingó, 1447, na Ciudad Vieja. Foi fundado em 1877 e é patrimônio cultural de Montevideo. Freqüentado por escritores, artistas e poetas, recebe também estudantes e turistas. Entre os freqüentadores históricos, Eduardo Galeano e Mario Benedetti (já falecidos, infelizmente). O atendimento é atencioso e o lugar merece uma visita.

Interior do Café

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Azucarlito - Galeria:
 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

El pajarito triste

Jorge Adelar Finatto

Visão do Rio da Prata. Montevideo. photo: jfinatto, 14/01/2015
 
- Eu necessito desesperadamente de um amigo. Não quero alguém que me julgue, por favor.  As verdades, sobretudo as mais duras e profundas, não me interessam neste momento. Não quero um juiz nem um psiquiatra. Preciso de um amigo.
 
Um passarinho no galho de um plátano, aqui em Montevideo, me disse essas coisas. Eu caminhava pela Ciudad Vieja, hoje à tarde, quando ele me chamou. Sentei no banco da Plaza Constitución para escutá-lo. O passarinho triste tinha o cabelo espetado como os pássaros de sua idade, mas não andava com o bando.

Plaza Constitución. photo: jfinatto
 
Era um pássaro poeta e me falou de sua solidão. Eu não sou pássaro, mas compreendi perfeitamente o que dizia. Fiquei com dó do bichinho. Mas o que eu podia fazer? Sou um estrangeiro na cidade, conheço pouco o lugar, não tenho amigos aqui, estou só de passagem.

- Converse comigo, ele disse. Fazia um tempo agradável, a brisa corria na praça e na Peatonal Sarandí.

- Sinto falta de um amigo pra conversar coisas corriqueiras, do dia a dia, banalidades ou coisas sérias, não importa. Conversar sem medo, até tarde, até as cinco da manhã, você compreende? Como aquelas conversas de gente que não se vê há muito tempo.

- Qualquer coisa, nada misterioso, num café qualquer. Só ir pra casa dormir quando o sol espalhar o leque com os primeiros raios alaranjados sobre o Rio da Prata. Um amigo sem hora pra ir embora.

Antes que eu dissesse alguma coisa, ele saiu voando entre as árvores e desapareceu na tarde montevideana.

Enquanto estiver aqui, conte comigo, pajarito. Vamos montevidear pelas calles do Conde de Lautréamont, Mario Benedetti e Eduardo Galeano.
 

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O barco mais triste do mundo

Jorge Adelar Finatto

photo antiga de Coimbra e do Mondego*

A minha paixão por barcos e navegações sempre me leva a cidades de mar ou rio. Sou um bicho das águas.

O fato de ter nascido e de viver numa cidade serrana é apenas uma das contradições que me definem.

O sonho menino de ser marinheiro jamais me abandonou. Contudo, nunca vesti a farda azul-marinho ou branca. Em contrapartida, conheço o suspiro das cordas que seguram os navios no cais.

A nostalgia das velas enfunadas não sai do meu coração.

Em Coimbra, existe um barco de passageiros com o nome de Basófias, fundeado no pequeno cais, perto do centro da antiga cidade portuguesa.

Resolvi um dia ir ao encontro do Basófias e fazer um passeio pelo Mondego, o rio que me faz sentir saudades de todos os rios do mundo.
Ocorre que, nas três ocasiões em que fui ao cais, não consegui realizar a navegação.

Numa das vezes, o barco estava em manutenção; noutra, não havia passageiros além de mim; numa outra ainda, o tempo mau do inverno não permitiu levantar âncora.

Em suma, nunca consegui viajar pelo Mondego no Basófias. A nave permaneceu, no meu imaginário, como um barco que jamais sai do cais.
 
A tripulação do Basófias é composta por marinheiros uniformizados a rigor, afáveis no trato. A pose e o orgulho náuticos não deixam dúvida de que estamos diante de calejados navegadores.

Às vezes, fico recordando as minhas tentativas vãs.

O Basófias, nas amarras que o impedem de lançar-se ao rio e cumprir o destino para o qual nasceu, é o barco mais triste do mundo.
 
De certa forma, o Basófias da minha lembrança é a metáfora da existência de muitos. Por isso, dele me enterneço.

Porque é o retrato de tantas vidas que ficam à margem, esperando no cais, esperando uma viagem que nunca acontecerá.
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Texto revisto, publicado antes em 03 de março, 2010.
* O crédito da imagem será dado tão logo informada a autoria
 

domingo, 11 de janeiro de 2015

Nelson Jungbluth

Jorge Adelar Finatto
 
Rendeira, 1981. Hotel Laje de Pedra. N.Jungbluth. photo: jfinatto

Convivi menos do que gostaria com o artista plástico Nelson Jungbluth (1921-2008). Os primeiros contatos foram para convidá-lo a fazer a capa do Caderno de Literatura nº 15, da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, em 2007. O tema daquele número foi O Brasil que veio da África. A capa, assim como toda a revista, ficou uma beleza.

detalhe Rendeira
 
Devo ter ido à casa do artista umas três, talvez quatro vezes. Falamos ao telefone em outras ocasiões. O último encontro foi num jantar, em Porto Alegre, com a escritora Helena Jobim, irmã do maestro Tom Jobim, para o qual o convidei.

Vendedor de peixes, 1981. Hotel L.de Pedra. N.Jungbluth. photo: jfinatto
 
Apesar do pouco tempo que durou nossa relação, sentia-me como se já o conhecesse há muito. Havia histórias, muito talento, generosidade e simplicidade no seu ateliê, no subsolo de sua casa. Era muito bom conversar com o Nelson, principalmente ouvi-lo. Ele tinha muita energia e entusiasmo pela vida e pelo trabalho.
 
Trabalhou com grande sucesso na publicidade (entre outras coisas, criou a Rosa-dos-ventos como símbolo da Varig, sendo responsável também pela identidade visual da empresa desde que nela entrou em 1946).

Um dia resolveu abandonar tudo para dedicar-se somente a sua arte. Foi um bem para arte.

Moça com cerâmicas, 1981. Hotel L. de Pedra. photo: jfinatto
 
A obra que construiu é original e vigorosa. É fácil identificar seu traço, nas formas, temas e cores vivas de suas pinturas.

A figura do gaúcho, nas suas mãos, ganhou encanto.
 
Tomando café da tarde no Hotel Laje de Pedra, o que faço com certa freqüência, essas recordações me vieram ao reencontrar alguns dos quadros de Nelson na parede. Há vários. Estão ali há muitos anos e não me canso de admirá-los. Fiz as fotos para ilustrar essas breves memórias e homenagear o amigo. 
 
detalhe Vendedor de peixes
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photos tiradas em 10/01/2015