quinta-feira, 26 de maio de 2016

Sentimental

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

O  sentimento é a única coisa capaz de nos salvar. É tudo quanto  temos. Ninguém pode roubar. O resto é matéria bruta que mais dia, menos dia, se dissolve no ar, como a bruma.
 
Ninguém está aqui negando a razão. Nem se imagina possa haver vida humana longe dela. A razão nos mantém ativos, vigilantes e de pé desde que acordamos até a hora de dormir (ou de curtir a velha insônia).
 
O sentimento é que nos dá sentido, motivos para viver e nos justifica. Não existe riqueza maior do que sentir: as pessoas, as coisas, os outros seres, o mundo. Isso que estou dizendo é óbvio, eu sei, mas gosto de recordar o óbvio.

No sentimento é que brilham as minas de diamantes das nossas afeições. O mais é ferro velho, ilusão de poder, baita solidão. 
 

sexta-feira, 20 de maio de 2016

O desmemoriado António Nevoeiro

Jorge Finatto

photo: jfinatto

 
- Existem precedências e ritos a observar, disse Ângelo das Horas Findas, voando de um lado para outro na sala dos recém-chegados. Entoava uma cançoneta suave enquanto espalhava flores de maio nos vasos alinhados sobre a grande mesa que atravessava o ambiente de ponta a ponta. De acordo com a suma teologal, não podia responder às perguntas do jovem viajante.

António Nevoeiro da Tábua queria saber onde estava, que lugar estranho era aquele. Sentia como se tivesse acordado de um sono de muitos dias. Entrou no ambiente branco e silencioso numa tarde de chuva e foi recebido pelo esvoaçante angélico, que por sinal simpático e alegrão.

Um anjo de leves passos e breves assuntos, que prefere a superfície às profundezas, que não faz parte do capítulo dos ângelos escolásticos, mas dos serviçais, e adora tocar rabeca nos interstícios.

Comunicou a António Nevoeiro que não podia revelar-lhe a razão de estar ali, obedecia ordens superiores e mais não podia revelar. António resignou-se na altura, pois ninguém ousa questionar um anjo. Estava encantado com a beleza das asas do angélico, de um rosa clarinho com rendas brancas nas bordas.
 
Lembrava-se apenas de parte de sua vida. Tinha sido poeta de aldeia num lugar escondido dos Campos de Cima do Esquecimento. Sobrevivia do ofício de marceneiro. Olhou para as mãos e constatou os dedos grossos, a pele dura das palmas. Havia uma mulher, mas não conseguia ver-lhe a face nem sabia o nome. A sua própria idade ele desconhecia.

As poucas coisas que recordava surgiam recortadas na memória, páginas de um álbum incompleto. Havia muitas folhas em branco e outras tantas foram arrancadas. Isso o inquietava.

Quem fora ele na vida, que coisas terríveis ou boas havia feito em sua passagem?

Ângelo das Horas Findas, com pena de seu desalento, acompanhou-o sobre uma nuvem até a velha casa onde vivera. António Nevoeiro sabia que aquele lugar lhe era familiar, mas as peças estavam todas vazias. Não havia pessoa, nenhum retrato nas paredes. Nem móvel, nem lembranças. As ventanas estavam abertas e por elas entrava o aroma de um roseiral perto do portão de ferro.

Sentou-se no banco do jardim, alheio a tudo e profundamente só, como se todos os habitantes do mundo tivessem partido. Sentado no umbral da casa, com as asas fechadas, Das Horas Findas olhou-o com pesar. E já pressentia o castigo que levaria do escolástico Miguel, o Piedoso, pelo que estava fazendo, contrariando o Livro das Prédicas Angelicais.

O que eles jamais podiam imaginar era o desastre que os esperava na viagem de retorno.

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Próximo capítulo: qualquer dia.
 

sábado, 14 de maio de 2016

Caminho do sol

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto


Perdi o sono antes do amanhecer. Eu nunca perco o sono. Aí chegaram uns pensamentos escuros: realidade do Brasil com sua corrupção terrível, passagem desumana do tempo, saúde, perdas, essas coisas que afligem mais quando é noite. 

Pensei um dia que, com a chegada dos anos, tudo ia ficar mais claro, mais calmo, viveria em paz com meus fantasmas. As angústias dariam lugar à serenidade. Que ilusão! A minha sabedoria terminou entre os 18 e 25 anos, quando fui eterno e a beleza estava em quase tudo que eu via. 

Os anos não trazem sabedoria, trazem cansaço e desilusão (pensava eu no escuro). Aí disse chega. Levantei, vesti o capote, a manta, o chapéu, e coloquei os óculos (a essa altura, mais parecem um binóculo). Saí pela estrada de chão batido que conheço bem aqui na montanha. 

Era noite cerrada ainda. Vi uma coruja no velho muro de taipa. A ave noturna pareceu fazer-me um leve aceno de cabeça. Eu correspondi. 

Fui entrando na neblina enregelado (fazia dois graus), só queria caminhar, esquecer as amofinações, respirar o ar da nova manhã. 

Caminhei para encontrar o sol. Foi o que fiz, vendo-o levantar-se no Contraforte dos Capuchinhos. Depois voltei pra casa. Fui fazer café no fogão a lenha. Tudo ficou mais claro dentro de mim.

Não fico mais no escuro pensando bobagem: caminho até o sol. 
 

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Calle de los suspiros

Jorge Finatto
 
photo: j.finatto. Colonia del Sacramento, Uruguai


Um dia encontrei no mapa
aquela cidade ao sul.
Um lugar que nasceu num tempo muito antigo.
Nela havia uma rua chamada Calle de los suspiros.
Fui até lá como atrás de um segredo.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas habitam as casas coloniais.

Quem mora na rua dos suspiros?

A moça da janela olha as buganvílias lilases e vermelhas nos muros.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo cálido.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado no tempo.

Os ventos se reúnem na Calle de los suspiros antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem pra dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam se dispersaram na noite.

De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

A rua dos suspiros é um retrato em branco e preto caído no oblívio.

Quem chora a essa hora na calle deserta?

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Texto revisto,  publicado no blog em 18/12/2010.

terça-feira, 3 de maio de 2016

O escrevinhador e o pássaro

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

Há sempre uma palavra querendo sair, porque existe sempre algo a partilhar. Por isso se escreve e se fala. Por isso escutamos e lemos a voz do outro. Somos palavra. 
 
Escrever fora da proposta comercial não tem retorno. Nem me refiro a algo material. Falo de simples troca, cumplicidade literária, espiritual. Mas a gente faz mesmo assim, por gosto mesmo. Dizem que é coisa de desocupado, mas às vezes é muito mais.
 
Certos vagabundos têm mil coisas pra dizer, como o Carlitos, do Charlie Chaplin. Mostrou-nos maravilhas sobre as coisas do coração, ao tempo do cinema mudo, sem efeitos especiais. Vale a pena ouvir este sublime vagabundo.

A escrita dá muito trabalho, ainda que não pareça. É ofício que se aprende uma vida inteira. Escrevo por prazer e por angústia. Deve ser pela mesma razão que o pássaro canta sozinho no seu galho, sem nenhuma ideia de recompensa ou plateia.

Canta simplesmente. Canta para si e para quem quiser ouvir, porque cantar é o que gosta de fazer. É o seu momento no mundo. Triste é passar pela vida sem ser ouvido.

Há felicidade na escrita como na leitura. A alegria do fazer em si mesmo, do trabalho em construção. Viajar num trem de palavras por caminhos de vales e montanhas. É bom saber que essa viagem pode ter significado para alguém.

Um dia a luz da palavra vai se apagar como acontece com tudo que respira e ilumina. Dura o tempo do vaga-lume. Porque tudo tem seu tempo. Continuamos no galho virtual a lançar signos às estrelas. Uma lanterna de mina na escuridão.
 

quinta-feira, 28 de abril de 2016

O homem que roubou o sol

Jorge Adelar Finatto

pintura: Maria Machiavelli

Um homem de coração triste pode entristecer a vida de muita gente.
 
O sol está preso no sótão da casa do homem sem esperança.

Em uma manhã de infinita tristeza, ele ergueu os braços, apanhou o sol com as duas mãos, como se fosse uma laranja, e o levou para o trevoso lugar. Desde então, não mais o devolveu para a rua onde mora.
 
- Nunca, nunca mais vou soltar o sol -, disse a um grupo de meninos e meninas que foram até a frente de sua porta pedir a libertação do astro-rei.

- Ninguém mais vai ver a luz nem receber calor nessa rua.
 
À noite, os vizinhos observam a estranha claridade que escapa pela janela e pela claraboia. Raios iridescentes giram entre si, perpassam o espaço e vão em direção ao vazio do universo.

Nenhum, no entanto, fica para iluminar aquele pequeno lugar mergulhado na sombra.
 
O homem triste tem uma pedra enorme, pesada e fria, no coração. Uma lápide com uma inscrição feita numa estranha, obscura língua que ninguém entende. Ele não consegue mais falar nem sentir.

O roubo do sol foi um ato de desespero, de revolta com coisas más que aconteceram na sua vida, algumas provocadas por ele próprio. Ao agir dessa maneira, privou a rua e seus habitantes de luz, calor e alegria.
 
É preciso trazer urgentemente de volta o homem triste para o convívio da rua e seus habitantes, antes que tudo em volta dele congele, antes que os corações esfriem, antes que desapareça a vida daquele lugar.
 
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Pintura: Maria Machiavelli, artista plástica em Passo dos Ausentes.
Texto revisto, publicado antes em 12 de setembro, 2011.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Paiuia

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 
Quando eu era criança, tinha medo-pânico de cortar o cabelo. O drama se estendeu até os cinco anos mais ou menos. Era um medo primitivo, das cavernas, pavor ancestral dos raios e do trovão.
 
Quando o avô me levava ao barbeiro, na ruazinha central de Passo dos Ausentes, aquilo era um suplício.
 
Havia na cidade um homem que vivia na rua. Vestia sempre um casacão de lã, fosse inverno ou verão, tinha longos cabelos cor de cobre, uma cara amarrotada, chupada, fustigada pelo sol e pelo vento.

Sobrevivia ele com os trocados que ganhava pelas momices e mugangas que fazia aos passantes nas calçadas, onde instalava seu escritório de saltimbanco.
 
O nome dele era Paiuia.
 
Para amenizar a sessão de tortura, o avô contratava Paiuia para distrair-me junto à cadeira do barbeiro. Ele conseguia me acalmar menos pelos trejeitos que fazia do que pela sua feiura. Eu ficava impressionado com o fato de alguém tão feio ser ao mesmo tempo tão alegre.
 
Eu já não chorava nem sofria como antes, deixava o barbeiro fazer seu trabalho. Com sua arte humilde, Paiuia me consolava no sofrimento. Acaso não será esta a sublime missão de todo artista?
 
No dias difíceis, recordo com ternura de Paiuia, que não está mais neste mundo para me dar consolo com suas momices. Hoje percebo que a beleza que ele tinha era invisível ao olhar. Ele a carregava luminosa dentro da alma e com todos compartilhava generosamente.