sábado, 11 de junho de 2016

Café dos Ausentes

Jorge Finatto

photo: jfinatto

Os habitantes dos Campos de Cima do Esquecimento sabem que só se vive uma vez e por isso padecem severas solitudes nesse mundo. A ideia da transitoriedade da vida se faz sentir especialmente no inverno. Tempo de dispersa solidão.
 
Passo dos Ausentes, nossa velha aldeia, tem 600 e poucas almas que penam na grelha da existência. Montanhas e brumas fizeram de nós o que somos: esse jeito calado, desconfiado, sempre ao desamparo.
 
É fácil reconhecer um ausentino na multidão. Basta olhar o abandono estampado na cara: é a marca indelével. Mas estamos aí, viventes desse mundo de Deus, sobreviventes de um tempo que se esfuma impiedosamente.

O frio polar dos últimos dias torna rara a presença humana fora das casas. A temperatura média, durante o dia, tem sido de -6 ºC. À noite desce para álgidos -12 ºC, -15 ºC. O Vale do Olhar, submerso no nevoeiro de algodão, é bonito de se admirar no Belvederezinho da Ausência, a dois mil metros de altitude. No local três troncos de pinheiro fazem as vezes de banco para os visitantes. Todo dia 15 de cada mês os Capuchinhos do Perpétuo Amanhecer ali se reúnem para ver o sol nascer.

Em silêncio e de pé, com os capelos sobre a cabeça e seus hábitos brancos enlaçados com corda na cintura, observam o vale. Depois que o sol se ergue, retiram-se em fila. Atravessam a cidade tão silenciosamente que ninguém ouve seus passos. Somem na estrada de chão batido em direção ao convento no Contraforte dos Capuchinhos.
 
Antes de começar a falar sozinho, no ermo invernal, é melhor sair de casa e ir ao encontro dos amigos, no Café dos Ausentes, na antiga estação de trem. Nas terças-feiras Juan Niebla faz ali um concerto com seu bandoneón argentino. No cardápio, músicas de Piazzolla, Francis Poulenc, Villa-Lobos e Joaquín Rodrigo, entre outros.

Nos sábados, o programa é "Conversa na Estação", bate-papo de Niebla com Don Sigofredo de Alcantis e quem mais quiser. O tema do próximo encontro será, conforme cartaz fixado na porta do café:

"O dia em que o filósofo espanhol Miguel de Unamuno desafiou a ditadura incipiente do general Franco diante de cerca de 300 soldados armados, no salão de atos da Universidade de Salamanca, da qual era reitor, durante a cerimônia de abertura do ano acadêmico, em 12 de outubro de 1936, ao proferir o célebre discurso Vencereis, mas não convencereis. De como escapou da morte certa graças à intervenção de Carmen Franco, mulher do ditador, que o retirou do local e o levou para casa dele, onde permaneceu em prisão domiciliar e perdeu suas funções".*

Nessas alturas austrais, a palavra e a música nos aproximam e nos tornam conviventes.

Solidão é quando a madeira da casa começa a estalar e ranger por causa do frio e da umidade, como um velho barco rasgando as ondas do mar.

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*Don Miguel de Unamuno:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/02/visita-don-miguel-de-unamuno.html
 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

A hora do beija-flor

Jorge Finatto
 
beija-flor com névoa. photo: j.finatto
 
Observando com atenção, há um beija-flor na ponta do ramo da magnólia. Ele está pousado no galho pensador, os olhos semicerrados, pensando na sua vidinha. Um momento de pausa no seu dia. Ninguém é de ferro.

Há de ter lá os seus compromissos o beija-flor, uma casa pra voltar, filhos pra criar, contas a pagar, preocupações de quem vive neste mundo difícil.

Mas nesse momento ele precisa ficar sozinho e em silêncio. Precisa disso pra saber quem ele é. Porque, às vezes, na dura faina da sobrevivência, a gente esquece quem é.

A nossa face perde-se na multidão. Um estranho passa a viver através de nós.
 
Na maior parte da vida cumprimos deveres, tarefas, horários, saímos e chegamos apressados, dormimos sonos interrompidos por relógios e pesadelos, sonhamos um sonho alheio, corremos todo o tempo até a exaustão, e agradecemos por não perder o emprego nem levar um tiro.

Austeras solidões nos habitam. Rígidos papéis nos aguardam todos os dias, implacáveis, inadiáveis.

O mundo espera que ponhamos a máscara de granito ao nascer e não a retiremos nunca mais. Haja Deus!
 
No caso do beija-flor, querem que ele seja sempre e eternamente a mesma ave descrita pelos estudiosos nos tratados: apodiforme, penas pequenas, úmero robusto e cúbito curto, que se alimenta do néctar das flores e de insetos minúsculos.

Igual a milhões de outros beija-flores que vivem no planeta, também conhecidos por nomes estranhos como binga, chupa-flor, chupa-mel, cuitelo, guainumbi, pica-flor. E por aí.

O beija-flor personagem deste texto tem vida interior, seus próprios sonhos e pensamentos, não quer ser igual a nenhum outro existente no mundo.

No fundo, é um poeta o nosso beija-flor. Passa o dia procurando quintais, praças e jardins, não só para alimentar-se, mas para fugir dos predadores e da loucura das pessoas, e para ter um momentozinho de contemplação.

Sim, a nossa pequena ave interioriza-se para poder melhor observar a natureza e os seres, senti-los, talvez escrever alguma coisa.
 
Agora, calado e enovelado em si mesmo, no repousante galho da magnólia, o que o beija-flor quer é ficar só, distante, tentando reunir os fragmentos, reconstruir-se com o que sobrou (se é que ainda existem asas e cores suficientes do pássaro que um dia ele foi), longe dos olhares intrujões, das mesquinharias cotidianas e do fotógrafo abelhudo.
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Heráclito e o espelho:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/02/heraclito-e-o-espelho.html
Texto revisto, publicado antes em 27 de fevereiro, 2013.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

O vendedor de picolé

Jorge Finatto
 
ilustração: Maria Machiavelli

Tinha 12 anos quando encontrei um modo de arrumar dinheiro pra comprar picolé. Foi no verão, período de férias escolares. Fiz o que os meninos pobres da rua, como eu, faziam: tornei-me vendedor de picolé. 
 
Havia uma pequena fábrica de gelados a poucas quadras de casa. O produto era bom, o negócio fez sucesso e se expandiu. A proprietária comprou um sobrado pra diversificar e aumentar a produção. 
 
A venda era feita nas ruas por vendedores ambulantes, em carrinhos refrigerados ou em caixas de isopor. Os maiores levavam os carrinhos e os menores, as caixas com tira de couro pra pendurar no ombro.
 
Esse foi o meu primeiro emprego. Caminhar horas a fio debaixo do astro-rei em pleno calor de janeiro era o de menos. O difícil era ter que dizer, bem alto, "olha o picolé", nas esquinas e na frente das casas. Fazia  isso com grande constrangimento. A timidez me atarantava.

Mas o trabalho durou só três semanas. O salário era tão miserável que desisti. Mal dava pra comprar dois ou três gelados por caixa vendida. Não compensava a sola do sapato, a sede, o suor, o cansaço.

Cheguei a ficar devendo uns trocos pra dona do negócio (sempre de cara feia, acho que sua boca nunca conheceu um sorriso). Devi porque comi picolés além da conta, durante o trabalho; e também porque vendi fiado e não me pagaram. Incauto vendedor! Pra quitar o débito com a patroa, trabalhei uma semana sem nada receber.

Não precisei de grandes teorias para aprender, a partir de então, que a vida do trabalhador é regida pela lei da selva. Os mais fortes devoram os mais fracos na relação capital e trabalho. E não há picolé que adoce essa exploração.
  

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Sentimental

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

O  sentimento é a única coisa capaz de nos salvar. É tudo quanto  temos. Ninguém pode roubar. O resto é matéria bruta que mais dia, menos dia, se dissolve no ar, como a bruma.
 
Ninguém está aqui negando a razão. Nem se imagina possa haver vida humana longe dela. A razão nos mantém ativos, vigilantes e de pé desde que acordamos até a hora de dormir (ou de curtir a velha insônia).
 
O sentimento é que nos dá sentido, motivos para viver e nos justifica. Não existe riqueza maior do que sentir: as pessoas, as coisas, os outros seres, o mundo. Isso que estou dizendo é óbvio, eu sei, mas gosto de recordar o óbvio.

No sentimento é que brilham as minas de diamantes das nossas afeições. O mais é ferro velho, ilusão de poder, baita solidão. 
 

sexta-feira, 20 de maio de 2016

O desmemoriado António Nevoeiro

Jorge Finatto

photo: jfinatto

 
- Existem precedências e ritos a observar, disse Ângelo das Horas Findas, voando de um lado para outro na sala dos recém-chegados. Entoava uma cançoneta suave enquanto espalhava flores de maio nos vasos alinhados sobre a grande mesa que atravessava o ambiente de ponta a ponta. De acordo com a suma teologal, não podia responder às perguntas do jovem viajante.

António Nevoeiro da Tábua queria saber onde estava, que lugar estranho era aquele. Sentia como se tivesse acordado de um sono de muitos dias. Entrou no ambiente branco e silencioso numa tarde de chuva e foi recebido pelo esvoaçante angélico, que por sinal simpático e alegrão.

Um anjo de leves passos e breves assuntos, que prefere a superfície às profundezas, que não faz parte do capítulo dos ângelos escolásticos, mas dos serviçais, e adora tocar rabeca nos interstícios.

Comunicou a António Nevoeiro que não podia revelar-lhe a razão de estar ali, obedecia ordens superiores e mais não podia revelar. António resignou-se na altura, pois ninguém ousa questionar um anjo. Estava encantado com a beleza das asas do angélico, de um rosa clarinho com rendas brancas nas bordas.
 
Lembrava-se apenas de parte de sua vida. Tinha sido poeta de aldeia num lugar escondido dos Campos de Cima do Esquecimento. Sobrevivia do ofício de marceneiro. Olhou para as mãos e constatou os dedos grossos, a pele dura das palmas. Havia uma mulher, mas não conseguia ver-lhe a face nem sabia o nome. A sua própria idade ele desconhecia.

As poucas coisas que recordava surgiam recortadas na memória, páginas de um álbum incompleto. Havia muitas folhas em branco e outras tantas foram arrancadas. Isso o inquietava.

Quem fora ele na vida, que coisas terríveis ou boas havia feito em sua passagem?

Ângelo das Horas Findas, com pena de seu desalento, acompanhou-o sobre uma nuvem até a velha casa onde vivera. António Nevoeiro sabia que aquele lugar lhe era familiar, mas as peças estavam todas vazias. Não havia pessoa, nenhum retrato nas paredes. Nem móvel, nem lembranças. As ventanas estavam abertas e por elas entrava o aroma de um roseiral perto do portão de ferro.

Sentou-se no banco do jardim, alheio a tudo e profundamente só, como se todos os habitantes do mundo tivessem partido. Sentado no umbral da casa, com as asas fechadas, Das Horas Findas olhou-o com pesar. E já pressentia o castigo que levaria do escolástico Miguel, o Piedoso, pelo que estava fazendo, contrariando o Livro das Prédicas Angelicais.

O que eles jamais podiam imaginar era o desastre que os esperava na viagem de retorno.

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Próximo capítulo: qualquer dia.
 

sábado, 14 de maio de 2016

Caminho do sol

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto


Perdi o sono antes do amanhecer. Eu nunca perco o sono. Aí chegaram uns pensamentos escuros: realidade do Brasil com sua corrupção terrível, passagem desumana do tempo, saúde, perdas, essas coisas que afligem mais quando é noite. 

Pensei um dia que, com a chegada dos anos, tudo ia ficar mais claro, mais calmo, viveria em paz com meus fantasmas. As angústias dariam lugar à serenidade. Que ilusão! A minha sabedoria terminou entre os 18 e 25 anos, quando fui eterno e a beleza estava em quase tudo que eu via. 

Os anos não trazem sabedoria, trazem cansaço e desilusão (pensava eu no escuro). Aí disse chega. Levantei, vesti o capote, a manta, o chapéu, e coloquei os óculos (a essa altura, mais parecem um binóculo). Saí pela estrada de chão batido que conheço bem aqui na montanha. 

Era noite cerrada ainda. Vi uma coruja no velho muro de taipa. A ave noturna pareceu fazer-me um leve aceno de cabeça. Eu correspondi. 

Fui entrando na neblina enregelado (fazia dois graus), só queria caminhar, esquecer as amofinações, respirar o ar da nova manhã. 

Caminhei para encontrar o sol. Foi o que fiz, vendo-o levantar-se no Contraforte dos Capuchinhos. Depois voltei pra casa. Fui fazer café no fogão a lenha. Tudo ficou mais claro dentro de mim.

Não fico mais no escuro pensando bobagem: caminho até o sol. 
 

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Calle de los suspiros

Jorge Finatto
 
photo: j.finatto. Colonia del Sacramento, Uruguai


Um dia encontrei no mapa
aquela cidade ao sul.
Um lugar que nasceu num tempo muito antigo.
Nela havia uma rua chamada Calle de los suspiros.
Fui até lá como atrás de um segredo.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas habitam as casas coloniais.

Quem mora na rua dos suspiros?

A moça da janela olha as buganvílias lilases e vermelhas nos muros.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo cálido.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado no tempo.

Os ventos se reúnem na Calle de los suspiros antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem pra dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam se dispersaram na noite.

De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

A rua dos suspiros é um retrato em branco e preto caído no oblívio.

Quem chora a essa hora na calle deserta?

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Texto revisto,  publicado no blog em 18/12/2010.