segunda-feira, 24 de julho de 2017

Van Gogh vai ao café

Jorge Finatto

quarto de Van Gogh no Auberge Ravoux. photo: jfinatto
 
Um dia ou outro eu acho que vou encontrar uma maneira de fazer uma exposição em um café.
Vincent Van Gogh em carta ao irmão Theo, de 10 de junho de 1890.
 
AUVERS-sur-OISE é uma pequena cidade nos arredores de Paris. Atravessada pelo rio Oise, é um lugar tranquilo onde se caminha pelas ruas em paz. Uma cidade interiorana, aprazível. Mas há algo que a destaca no conjunto das cidadezinhas francesas. Foi nela que um dos maiores pintores da humanidade viveu seus últimos dias.
 
Quando estive lá, em duas ocasiões num intervalo de cinco anos, minha intenção era me aproximar dos passos de Van Gogh naqueles ambientes em que realizou cerca de 75 obras-primas.
 
Entre os lugares em que trabalhou em Auvers, nenhum me tocou mais fundo do que o campo de trigo no alto da cidade. Ali pintou, entre outros, o Trigal com corvos, uma das últimas pinturas. Entrei no seu quarto, no sótão do Auberge Ravoux, e senti a imensa solidão daqueles 7 metros quadrados. Era o quarto mais barato da estalagem, sem janela, tendo como única abertura uma claraboia. Mudou-se para lá em 20 de junho de 1890.

Da profunda solidão, da pobreza e da rejeição social, nasceu uma das obras pictóricas mais sublimes e poderosas já produzidas em todos os tempos. Não à toa costumam dizer que ele libertou as cores.

V. Gogh. quadro La pluie (a chuva). photo: jfinatto
  
Van Gogh foi incompreendido na sua época como o seria hoje. Não se sustentava, não teve um emprego tradicional, não conseguiu encontrar uma mulher nem constituir uma família. Viveu de léu em léu, ao desamparo, sem uma alma para se consolar. Um atrapalho para a família e um estorvo para a sociedade. Um espírito de luz vivendo em meio a seres primitivos, mesquinhos e violentos.

A vida só não lhe restou mais trágica porque contou sempre com a ajuda material e a solidariedade moral de Theo, irmão mais moço, que foi seu cálido confidente, conforme demonstram as centenas de cartas que trocaram. Vendeu apenas um quadro em vida, Vinhedo vermelho. Vestia-se com roupas surradas. Com o chapéu de palha, parecia um espantalho. Por não ser um "normal", foi alvo de zombaria e escárnio em todos os lugares onde morou

Existia, ao lado do homem genial, um temperamento difícil e a doença que o levava a crises psíquicas que o torturavam e faziam sofrer os que o cercavam. Até hoje ninguém sabe o que era.

Van Gogh estava longe de ser um artista interessado apenas na pintura. Era um pensador lúcido que leu os autores mais importantes de seu tempo e os antigos. Era um indivíduo culto.

túmulos de Vincent e Theo em Auvers. photo: jfinatto
 
A biografia mais recente e exaustiva concluiu que não se matou com o tiro no abdômen.* Alguém, cuja identidade ele não quis revelar no leito de morte, atirou contra ele. Os autores do livro chegam a dizer o nome do suposto agressor, um que fazia parte do grupo de jovens com quem o pintor encontrou-se algumas vezes no período de pouco mais de dois meses em que viveu em Auvers. Morreu em 29 de julho de 1890, no quarto minúsculo, nos braços do irmão Theo. Ambos estão sepultados lado a lado no cemitério da cidade.
 
Quando fiz as fotografias que integram a exposição O último quarto de Van Gogh não tinha a menor ideia de que um dia faria uma mostra sobre este tema. Como sempre faço, fui fotografando na base do sentimento, da intuição. O resultado poderá ser visto a partir desta terça, 25 de julho de 2017, no Café do Porto, na Rua Padre Chagas, bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre.
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*Van Gogh, a vida. Steven Naifeh e Gregory White Smith. Tradução de Denise Bottmann. Companhia das Letras, São Paulo, 2012.


terça-feira, 11 de julho de 2017

Un amore

Jorge Finatto

Borboletas e papoulas. Van Gogh
Van Gogh Museum, Amsterdam

La speranza di pure rivederti                             
m'abandonava.                                                          
                          Eugenio Montale


No mais remoto deserto
- o sal e o labirinto do tempo
amadureço o poema

E parece que para encontrar-te
tinha de perder-te um dia

Colho no caminho as pétalas
da rosa que não te dei
e distraída desfolhaste

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, JFinatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
A esperança de ver você de novo me abandonava, tradução livre do verso de Montale.

sábado, 8 de julho de 2017

Rio de Janeiro em prosa e verso

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

A interessantíssima história da segunda terra natal de todos os brasileiros e de todo estrangeiro de coração aberto à graça da vida (...)*
                           (frase da orelha do livro)

UMA DELÍCIA DE LIVRO. Trata-se de Rio de Janeiro em prosa e verso, antologia de 200 autores organizada por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, lançada no distante 1965. O assunto é a cidade maravilhosa em suas mil faces, visões, cores, histórias, alegrias e dramas. Uma relíquia de edição.
 
Contei, para sua aquisição, com os bons préstimos da Livraria Erico Verissimo, de Porto Alegre, à qual nunca havia antes recorrido. Trata-se de livro usado.
 
A variedade de autores e enfoques é preciosa, tornando o volume único em seu valor documental e literário. O sabor fica por conta das excelentes iguarias oferecidas em forma de crônicas, poemas, artigos, lendas, relatos de costumes, histórias das ruas, paisagens, plantas, carnavais, livrarias e tudo mais.

Escritores e poetas ilustres, como os dois organizadores, estão presentes nas 584 páginas, além de jornalistas, historiadores, ensaístas, viajantes, missionários, artistas. Não faltam belas imagens em forma de desenhos, fotografias, mapas e outras ilustrações.

photo: Manuel Bandeira

O poeta e diplomata francês Paul Claudel faz uma bela síntese do ambiente natural do Rio de Janeiro:

O Rio é a única cidade que ainda não conseguiu enxotar a natureza. (pág. 562)
 
Com Lúcio Rangel ficamos sabendo que em 1917 surgiu o primeiro samba, o famoso Pelo telefone,

nascido na casa da Tia Ciata, na Praça Onze, onde se reuniam os melhores compositores populares da época. (pág. 243)

De autoria de um certo Ernesto dos Santos, o Donga, integrante do grupo de compositores Oito Batutas, a letra diz coisas como:
 
Pelo telefone
Chefe de Polícia
Mandou me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar. (pág. 243)
 
O escritor austríaco Stefan Zweig, um dos grandes do século XX em todo o mundo, assim escreve:

A beleza dessa cidade, dessa paisagem, com efeito, quase não se pode reproduzir nem pela palavra, nem pela fotografia, porque é demasiado variada, demasiado heterogênea e inesgotável; um pintor que quisesse representar o Rio em toda a sua plenitude, e com todos os seus milhares de cores e cenas, não teria tempo para concluir a sua obra numa vida inteira. (pág. 559)

Tem Alvaro Moreyra falando da Melindrosa, genial criação de J. Carlos, e da obra do artista:
 
O ente que olhar, daqui a cem anos, as obras-primas de J. Carlos poderá viver a vida que andamos vivendo... (1922) (pág. 529)
 
photo: Carlos Drummond de Andrade
 
Graciliano Ramos nos diz a respeito da Livraria José Olympio, ícone de uma época e ponto de encontro de escritores e intelectuais:

A Livraria José Olympio daria um romance. Entre aquelas paredes, que para bem dizer não são paredes, porque os livros cobrem tudo, um observador curioso, um desses que vão lá todos os dias, poderia arranjar assunto para um bom romance, que o editor impingiria ao público facilmente numa edição grande, porque estaria fazendo propaganda do seu negócio. (pág. 443)

Machado de Assis, Gilberto Freyre, Olavo Bilac, Vinicius de Moraes, José de Alencar, José Lins do Rego, Astrogildo Pereira, Jean Baptiste Debret, Coelho Neto, João do Rio (Paulo Barreto), Júlia Lopes de Almeida, Eneida, Mário de Andrade, Antônio Maria, José Carlos Oliveira, Elsie Lessa, Lúcio Costa, Di Cavalcanti, Olegário Mariano, Paulo Armando, Jorge de Lima, Mário Pederneiras e miles e miles de outros autores com seu caleidoscópio de observações sobre a cidade amada.
 
Está aí um livro cuja reedição, a bem da cultura brasileira, está a clamar aos céus e aos editores de boa vontade da Terra de Vera Cruz.
 
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*Rio de Janeiro em Prosa e Verso. Organizado por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965, 584p., ilustrado. Vol. V da Coleção Rio 4 Séculos.
O créditos das fotos serão registrados tão logo conhecidos os autores. 

sábado, 1 de julho de 2017

Corvo, camélia e guarda-chuva

Jorge Finatto
photos: jfinatto
 

UM DIA apareceste no meu jardim com a cara mais linda desse mundo. Guardei tua imagem para a eternidade fugaz de um álbum digital. Não és apenas uma a mais no mundo: és a camélia que nasceu de um sonho de delicadeza do Criador.


EM ALEGRE bando, dançam pelos céus de Canela, nenhuma chuva cai sobre os panos coloridos, mas vento, o andarilho vento de julho embala as cores e a pura alegria de ser.


O CORVO do cemitério Père-Lachaise*, em Paris, se dá ares, faz caras e bocas no galho seco sobre os túmulos de gente famosa (Balzac, Proust, Oscar Wilde, Chopin, etc.) Em Paris até mesmo os corvos fazem pose e se consideram acima dos mortais...

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Delicie-se, raro leitor, clicando sobre as imagens. E que julho nos seja mais leve.

*Cemitério de Père-Lachaise:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/search?q=P%C3%A8re-Lachaise

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Van Gogh, o caminho do campo de trigo

Jorge Finatto
 
trilha de Van Gogh no trigal. photo: jfinatto
 
Se pelo menos uma vez tivesse encontrado alguém a quem pudesse abrir o coração, talvez as coisas nunca tivessem chegado a tal ponto.*
                                           Theo Van Gogh

VAN GOGH TRILHOU este caminho algumas vezes, no campo de trigo, parte alta de Auvers-sur-Oise, perto de Paris, a última morada. A íngreme e solitária ladeira desemboca no amarelo trigal.
 
Sim, sempre o amarelo, esperança na vida, girassol, alegria breve em meio ao turbilhão da doença mental e da solidão que o atormentam até o fim.
 
Ele sobe a ladeira já sem ilusões. A morte está próxima. A única ponte de contato com a lucidez, os homens e a vida é o trabalho. Carrega o equipamento de pintura às costas e o chapéu de palha. Busca um pouco de luz, ar puro, a amiga natureza, o silêncio. Ali pinta Trigal com corvos, um dos últimos quadros, exatamente nesta encruzilhada.
 
lugar onde VG pintou Trigal com corvos. photo: jfinatto
 

Trigal com corvos. fonte: Van Gogh Museum, Amsterdam
 
O poeta das cores, das longas caminhadas solitárias, do cavalete e do chapéu de palha não sabia viver só e, no entanto, quase nunca viveu de outra maneira.

O inverno da doença, da incompreensão, da miséria e da falta de reconhecimento o levaram ao fundo do poço. Mas ali, curiosamente, havia cores, formas e emoções vivas e elas iluminaram o seu e o nosso mundo.
 
Este mês de julho, em que se recorda o 127º aniversário de morte do artista, no dia 29, haveremos de lembrá-lo aqui no blog e na exposição que farei a partir do dia 25 de julho no Café do Porto, em Porto Alegre. Intitula-se O último quarto de Van Gogh e retrata o sombrio quartinho do artista no sótão do Auberge Ravoux, algumas de suas últimas pinturas e lugares onde as realizou a poucos dias da morte.
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*Van Gogh, a vida. Steven Naifeh e Gregory White Smith. pág. 823. Tradução de Denise Bottmann. Companhia das Letras, São Paulo, 2012.

sábado, 24 de junho de 2017

Fragmento

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

E no quarto dia que. Depois de tanto se.
Mas Deus viver é isso? E a morte cumé?
Se tanto depois de. Eu você e uma puta solidão
a nos unir. E que dia no quarto. O sol abre
os braços um abraço. A mulher abre as pernas
quentes um mundão no ventre
tanta luz derramada nas entranhas.
Se depois de tanto.
A vida de todos os dias
a que eu sempre quis

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Poema do livro Claridade. Prefeitura de Porto Alegre, 1983.

sábado, 17 de junho de 2017

Fernão de Magalhães e a viagem ao fim do mundo

Jorge Finatto
 
Estreito de Magalhães. photo: jfinatto
 
Descobrimos, no dia 21 de outubro [de 1520], aos 52º de latitude meridional, um estreito (...). Como pudemos constatar em seguida, tem quatrocentas e quarenta milhas de comprimento (...) e desemboca em outro mar, a que chamamos de Pacífico. O estreito é rodeado de montanhas muito altas e cobertas de neve. É tão profundo que, mesmo estando bastante próximo da terra, não se encontrava fundo para a âncora, nas vinte e cinco ou trinta braças. *
                                                                      Antonio Pigafetta

 
OLHANDO AQUI DE CIMA, desde as entranhas do grande pássaro de metal da Aerolineas Argentinas, que agora sobrevoa a Cordilheira dos Andes rumo ao sul extremo, custa acreditar que o português Fernão de Magalhães (1480 - 1521) andou por estes mares gelados e revoltos em 1520. Foi ele quem navegou pela primeira vez através do estreito que faz a ligação entre Atlântico e Pacífico ao longo de cerca de 600 km. A passagem mais tarde foi batizada com seu nome, Estreito de Magalhães.
 
O navegante lusitano comandava então a primeira expedição de circum-navegação da Terra, a serviço da Coroa Espanhola. Em agosto de 1519 partiu do porto de Sevilha com cinco navios e 237 marinheiros. Foi o primeiro a chegar à Terra do Fogo.

Não consigo deixar de comparar a ousadia daqueles marinheiros com o arrojo dos astronautas em suas viagens espaciais. Penso que era mais difícil andar pelos mares do fim do mundo naquelas frágeis embarcações do que ir a Marte nos dias de hoje.

mapa do Estreito de Magalhães. fonte: Wikipédia. clicar
 
O escritor italiano Antonio Pigafetta (1491 - 1534) juntou-se a Magalhães com intenção de relatar a viagem, tendo para isso que comprar seu lugar no navio já que não era membro da tripulação.

A expedição iniciou a travessia do estreito em 1º de novembro daquele ano, vinda do Atlântico. Nominaram-no Canal de Todos os Santos em razão do dia. Ao desembocar do outro lado, no desconhecido oceano, Magalhães deu-lhe  o nome de Pacífico em oposição à turbulência e temeridade das águas no interior do grande canal.

Não bastasse isso, foi no Pacífico que o grande navegador avistou e descreveu as galáxias Grande Nuvem de Magalhães e Pequena Nuvem de Magalhães, que são vizinhas da nossa Via Láctea. Mais tarde deram seu nome às duas em homenagem.

Infelizmente, Fernão de Magalhães não conseguiu retornar com vida à Espanha, tendo sido morto numa batalha com nativos nas Filipinas aos 41 anos. A expedição regressou ao porto espanhol em 1522, com apenas um navio, o Victoria, e 18 homens, Pigafetta entre eles, sob o comando de Juan Sebastián Elcano.

photo: jfinatto
 
Das observações e anotações do escritor resultou a obra A primeira viagem ao redor do mundo, publicada em Veneza em 1536, dois anos após a morte do autor. Gabriel García Márquez considerava este um dos livros mais importantes de sua vida.

Recordo essa história voando em direção ao sul profundo, e quase não acredito no que aquela gente fez embarcada numa casca de noz sobre a superfície tenebrosa do abismo do mar. Parece ficção científica. E, no fundo, foi até mais.

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*A primeira viagem ao redor do mundo. Antonio Pigafetta.  pp. 65-66. Editora L&PM. Tradução de Jurandir Soares dos Santos. Porto Alegre, 2005.
http://www.lpm.com.br/site/default.asp?Template=../livros/layout_produto.asp&CategoriaID=610619&ID=642907