sábado, 21 de março de 2020

Tempo de quaresmeiras em flor

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 

Só agora me dou conta de que as QUARESMEIRAS explodiram em lilases, rosas e brancos, anunciando a chegada do outono e o advento da Páscoa. A nova estação chega cheia de significados
(fala de Ressurreição e de urgentes renascimentos).
 
As flores das quaresmeiras têm tudo a ver com sentimento claro, respirar limpo, passar distante da morte.
É o que eu sinto e penso nesse instante vendo-as vibrar na claridade, apesar da densa sombra que se abate sobre o Brasil e o mundo
(o bicho invisível e coroado nos remete aos confins do isolamento).
 
Estamos perplexos, temerosos, impotentes, diante da realidade que nos assola. As ruas estão vazias.
Um estranho silêncio percorre a cidade.
 
O bicho é pequeno, intocável, inodoro, inaudível, mas é suficiente para danar a minha/nossa vida. Capaz de sugar nossa alegria, nosso trabalho, nossa paz, nosso sangue, nossos sonhos.
 
Mas olhando as quaresmeiras em flor, nesta hora e neste lugar (pequeno lugar perdido no planeta: minha casa),
ao menos nesse efêmero instante,
a morte e o desespero não têm nem terão guarida.
 
As flores das quaresmeiras são o oposto da escuridão
(e do abandono)
a delicadeza dos ramos e das pétalas remete a um mundo outro.
Um mundo de recolhimento e silenciosas caminhadas por estradas interiores.
De solidária espera.
 
Um tempo de quaresma (quarentena, quadragésima).
De esperança num novo renascimento para todos.
 
Tempo de resistência
(como sempre)
de atravessar a ponte
(sobre o rio das mortes)
e chegar vivo do outro lado.
 

terça-feira, 17 de março de 2020

A peste

Jorge Finatto

Se há uma lição que se pode tirar da pandemia do novo coronavírus é a de que estamos muito atrasados em matéria de empatia. Os países, como os indivíduos, vivem longe da solidariedade, só pensam em si. É a lei do cão. Vive-se como se não houvesse outros habitantes no edifício, no bairro, na cidade, no planeta.
 
Então não surpreende a maneira simplista como se fecham fronteiras ao invés de buscar soluções conjuntas. O modo pouco civilizado com que muita gente tem ido aos supermercados com sede de armazenar víveres, gerando falta de produtos. A ânsia de salvar a própria sobrevivência num momento em que a exigência é olhar para o lado, enxergar o semelhante, dar e receber ajuda.
 
A peste fere de morte a noção de civilização, esta frágil construção.
 
O noticiário maciço tratando da doença 24 horas por dia serve para informar, mas serve também para espalhar o medo. Há alarme no jeito como se trata do assunto, além do alarme imanente. E todos dizem que se deve evitar o pânico. Está bem... 
 
É difícil ficar calmo quando a ordem é: "não saia de casa, não aperte a mão, não beije, não abrace, guarde distância mínima de um metro e meio de outra pessoa, evite encontros mesmo entre familiares etc.". Há uma imposição de confinamento e solidão que se diz indispensável para quebrar a cadeia de transmissão da doença.
 
A peste mexe fundo com a emoção das criaturas e com a alegria de viver. Afasta-nos e prova que, por mais evoluídos que nos consideremos, um simples vírus bota tudo abaixo. Somos vulneráveis. Muito mais do que supõem nosso egoísmo e nossa vaidade.
 
Talvez, no fim de tudo, reaprendamos a valorizar a convivência, a importância do outro, do toque, do encontro. O inefável prazer de poder sair na rua outra vez. 

segunda-feira, 16 de março de 2020

Alhures, algures

Jorge Finatto

Fussen, Alemanha. photo: jfinatto
 
Uma das boas coisas de VIAJAR é estar entre. Entre dois continentes, entre duas cidades, entre dois quartos, entre dois mundos. Não estar em parte alguma: estar em trânsito (a única permanência).
 
Estar em vários lugares, só de passagem, olá, como vai?, até um dia, até logo, até a próxima estação. Andarilho, caminhante, vagabundo, beija-flor. Ver e ser visto ao acaso, ao relance, ao relento.

Nuvem ligeira sobre o mar.
 
80 por cento sentimento. 20 por cento matéria. Amálgama de sonho. Peregrino, passageiro, gentil viajante. Não plantar raiz, não afundar num cotidiano qualquer. Passar, passar.

Belvedere, miramar. 
 

segunda-feira, 9 de março de 2020

A lição de Codogno

Jorge Finatto

A cidadezinha de Codogno, na região da Lombardia, entrou para a história como a que registrou o paciente número 1 de coronavírus na Itália, país que ostenta a maior incidência de casos da doença na Europa neste momento. Codogno está situada na denominada zona vermelha, sujeita a severas restrições. Ninguém pode entrar ou sair sem autorização; todos os serviços estão interrompidos, exceto os essenciais; o transporte público está suspenso. Mas a vida continua, e a população descobriu coisas boas em meio às dificuldades.

Entrementes, o tratamento dado pela imprensa ao surto tem sido hiperbólico, aterrorizante, com longas e constantes inserções em todos os noticiários. Aqui em Portugal divulgam-se os novos casos hora após hora, dia após dia, um a um, com muitos detalhes como se o vírus estivesse tomando conta. No entanto, não é isso que se vê. Na última contagem os casos eram 35 e nenhuma morte. Alguns meios de comunicação tratam do assunto como se uma catástrofe sanitária de enormes proporções estivesse em expansão. 

Sabe-se ainda pouco sobre o vírus que veio da China. As entrevistas, por isso, são em geral pouco elucidativas, enfadonhas, e servem mais para assustar do que para esclarecer. Algumas autoridades demonstram despreparo no trato do tema.* Exceção feita às recomendações de cuidados a serem observados pela população, os mesmos, aliás, de qualquer gripe; e às orientações sobre locais de tratamento, telefones para tirar dúvidas, etc.

Quem assiste a programas de notícias e lê jornais fica alarmado e deprimido. Sentimo-nos fragilizados diante da ideia de uma doença que parece avançar como um monstro. E não há motivo para este enfoque, principalmente quando da China vêm informações de que o contágio e o número de casos estão diminuindo.

A superexposição midiática feita sem cuidado não apenas impõe medo como tem conseqüências econômicas. Claro que a informação é importante, mas neste caso parece estar indo além do razoável. Não se trata de culpar a imprensa pelo coronavírus, mas de evitar conteúdos alarmistas. 

Mas voltemos a Codogno. Um professor do lugar escreveu carta para um jornal de circulação nacional abordando o sofrimento diante das restrições. Relata, também, que coisas boas estão acontecendo: as pessoas estão conversando mais umas com as outras na rua, mesmo com quem não conhecem; poucas estão usando máscaras; as ciclovias têm um movimento nunca antes visto; há uma disposição de ajuda e colaboração entre os habitantes.

Então, ao invés de um desastre planetário em franca expansão, o que se vê é um aumento de solidariedade e amor social. Um outdoor foi criado na cidade e diz: " Codogno é uma doença que não nos larga mais". 

O medo paralisa. O afeto, a união e o bom senso nos levam adiante.
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- Hoje, 11 de março, entre as inúmeras manchetes sobre a doença, os jornais noticiam que Angela Merkel disse que até 70% da população da Alemanha poderão contrair o coronavírus. Convenhamos que é o tipo de declaração alarmista que em nada contribui. Vindo de líder política, causa sérias preocupações pelo modo leviano como estão tratando do tema. Aqueles que devem manter a serenidade não podem, com base em hipóteses,  semear o pânico.

- Em 04 de abril, 2020. Efetivamente, em países como Itália, Espanha, China e Estados Unidos, a catástrofe se confirma com milhares de mortes. Em outros, não. Como Portugal, por exemplo. Esperemos que o Clovid-19 não faça mais tantas vítimas em outros países.

Algo estranho acontece na China onde tudo começou e o número de mortes oficial está em cerca de 3 mil, muito abaixo de outros. Ainda haverá que investigar esses números e o tratamento que aquele país deu à doença que não rapidamente se alastrou pelo mundo.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Adeus à Livraria Cotovia

Jorge Finatto

Livraria Cotovia
Foto: Livraria Cotovia. Autor: L.Cotovia

Fiz uma última visita à LIVRARIA COTOVIA no Chiado, em Lisboa. Comprei alguns livros do ótimo acervo (é, essencialmente, editora). O anúncio do fechamento da loja física foi feito há poucas semanas. Funcionava no local há 30 anos. Motivo: os altos custos das rendas (aluguéis) nessa Lisboa hoje tomada pela indústria do turismo. 

Pequenos negócios como livrarias médias e de reduzido porte estão fechando. Mas não só. Pessoas que vivem há 30 ou mais anos em regiões hoje "turísticas" (Chiado, Rossio, Alfama, Bairro Alto, etc) são forçadas pelo mercado a abandonar suas casas. Mudam-se para locais periféricos e mesmo a outras cidades. Perdem-se vizinhos de uma vida. Afetos são separados e dificilmente se recuperam.

A cidade vai adquirindo uma nova face, distanciando-se de seu perfil mais humano. Milhares de turistas percorrem as ruas todos os dias, principalmente o turista que vem atraído pelos baixos preços de alimentação e hospedagem (se comparados com outros países dentro e fora da Europa). 

Confesso meu cansaço ao caminhar pelas ruas mais centrais com interesses históricos e literários. É difícil se mexer em meio à multidão. Pra não falar que vivemos tempos de coronavírus. Dizem que o turismo é um dos principais fundamentos da economia em Portugal. Para o bem e para o mal.

A Cotovia passa a funcionar só pela internet. Não haverá mais loja física. Os livros também poderão ser encontrados em outras livrarias. Essa situação já atingiu outras lojas de livros e alfarrabistas, que encerraram em definitivo as atividades. Esse tipo de negócio está, ao que parece, com os dias contados. E os freqüentadores de livrarias rumam talvez à extinção.
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PS - Ontem, 10 de março, passei em frente à Cotovia (rua Nova da Trindade, 24) e deu um aperto no peito. As paredes de vidro cobertas com jornais, vendo-se nas frestas, lá dentro, só a sombra e nada de livros. Triste.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Eu comecei a sair da mina

Jorge Finatto

Eu comecei a sair da mina
com meus ferros retorcidos
meus tocos de vela apagados
meu alforje vazio

fazia lá fora um dia solar
desses de não se perder
eu vi um rosto bom
o jeito sereno de um homem
que me ajudou a respirar
                                          me abraçou
me desamarrou as mãos

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Lautréamont em Montevideo (L'autre à Mont)

Jorge Finatto
 
Río de La Plata entre edifícios, Montevideo. photo: jfinatto

Sí, cuál es el más profundo, el más impenetrable de los dos: el océano o el corazón humano? ¹

                           Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont
 
UMA VIAGEM só é boa quando voltamos diferentes pra casa. Quando algo bom, novo ou há muito esquecido, passa a respirar na nossa sensibilidade.
 
A arte é um tipo particular de viagem. Como as viagens reais, tem poder transformador. De um jeito ou de outro, é preciso viajar, deixar-se tocar: mudar. Tirar o coração e o pensamento do lugar-comum.
 
Em Montevideo, fiz uma expedição à rua onde viveu - até os 13 anos - o Conde de Lautréamont, nom de plume de Isidore Lucien Ducasse (1846-1870), poeta de vida obscura, futuro papa profano do Surrealismo. Ele é autor do estranhíssimo, belo e terrível Les Chants de Maldoror (Os Cantos de Maldoror). Filho de pais franceses que foram trabalhar e morar no Uruguai, nasceu em Montevideo, em 4 de abril de 1846, tendo ali vivido até o início da adolescência.

Única photo conhecida de Isidore Lucien Ducasse,
fonte Wikipédia

Uma tarde de sol, lá me fui a bordo do chapéu de palha encontrar o jovem bardo na Calle Camacuá, 544.

A rua Camacuá é pequenina. Diante dela estende-se, a perder de vista, o Río de La Plata. Fica na ciudad vieja. Chegando ao local, constatei que não existe mais a casa 544 onde ele morou. Em seu lugar apenas um edifício modernoso. Nenhuma placa alusiva ao imaginário conde. Do outro lado da rua, um terminal de ônibus e, depois dele, a Praça Espanha com suas palmeiras conversando com o vento, e logo adiante o rio.

No fim da Camacuá, bifurcam-se velhas ruas e, nelas, habitam prédios muito antigos. Por elas certamente andou o jovem Ducasse quando, aos 21 ou 22 anos, retornou a Montevideo para visitar o pai que o sustentava enquanto vivia, estudava às vezes e escrevia na França. Provavelmente nessa época já tinha concluído Les Chants. De sua vida pouco se conhece.

Eu sei muito pouco a respeito do estranho Isidore: a mãe morreu quando ele contava cerca de um ano. Ele gostava muito de ler na ampla biblioteca do pai. É certo que leu os principais autores de seu tempo. Eis o que diz dos Cantos:

Cantei o mal como fizeram Misçkiéwickz, Byron, Milton, Southey, A. de Musset, Baudelaire, etc. Naturalmente exagerei um pouco o diapasão para fazer algo novo em relação a esta literatura sublime que não canta o desespero senão para oprimir o leitor, e fazê-lo desejar o bem como remédio. (Eu cantei o mal...) ²

Era um rapaz alto, magro, vestia-se bem, carregava muitas coisas dentro da cabeça. Coisas pouco corriqueiras, de espantar. Uma revolta contra Deus, e uma náusea de viver e da humanidade que não se sabe qual a origem.

Río de La Plata. photo: jfinatto. vista da Calle Camacuá

O pseudônimo teria sido inspirado pela obra Lautréamont, de Eugène Sue; outros acreditam que significa o outro em Montevideo  (L'autre à Mont (evideo). Um mistério entre tantos.

O seu texto jorra do inconsciente.

Seriam os Cantos a antevisão literária dos tempos sombrios que vinham pela frente com suas guerras sangrentas (Primeira e Segunda Guerras Mundiais, Guerra do Vietnã), tiranias terríveis (Stalin na União Soviética, ditaduras sul-americanas) e violências rotundas contra o ser humano (todos os dias em todas as cidades do mundo)? Seriam a consciência crua e desesperançada da presença do homem na Terra? Quem sabe?

De qualquer forma, alguns o consideram mais importante do que Arthur Rimbaud.

Na livraria Más Puro Verso, na Peatonal Sarandí, comprei uma edição espanhola dos Cantos pra reler no hotel. Não lia Lautréamont há mais de 30 anos.

Depois de não encontrar a morada do fictício Conde, fiquei um tempo observando a expansão azul do rio. Imaginei-o caminhando pelas calçadas, à sombra de escuras paredes, sonhando em fugir da cidade, do mundo, de si mesmo. Mastigando seus desertos e sua triste poesia.

Por fim, entrei num restaurante e bebi um Medio y medio (vinho branco suave, frisante, tradicional do Uruguai), em memória do poeta Lautréamont, morto em solidão e anônimo, às 8 da manhã da quinta-feira, 24 de novembro de 1870, na rua Faubourg-Montmartre, 7, Paris, ninguém sabe de quê, aos 24 anos.
 
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¹Los Cantos de Maldoror - Poesías. Isidore-Lucien Ducasse, Conde de Lautréamont. Editorial Gredos, Madrid, 2004. Introducción por Luis A. de Villena. Trecho da pág. 59.
² idem, pág. 8, tradução livre de JA Finatto. Fragmento de Carta do poeta ao editor Verboeckhoven.
Leia também "Lautréamont y el surrealismo", por Mónica Marchesky:
http://www.monografias.com/trabajos75/lautreamont-surrealismo/lautreamont-surrealismo2.shtml  
Texto revisto, publicado antes em 14 de março de 2015.