sexta-feira, 24 de julho de 2020

Respiro, logo existo

Jorge Finatto

magnólia. photo: jfinatto, julho 2020


Mais de quatro meses de quarentena, reduzido a este microterritório do universo que é minha casa, a sensação é de sufoco. Não que eu não goste de ficar em casa. Sou dos viventes mais caseiros, capaz de repetir ad nauseam as rotinas domésticas. 

O que causa mais sofrimento é o afastamento do contato humano. Somos seres gregários, gerados no generoso útero feminino há milênios, sobreviventes de pragas e tempestades.  Precisamos do outro, ansiamos seu calor. O que não nos impede de sermos, às vezes, profundamente egoístas.  Contudo, neste momento, em meio à peste, devemos manter distância do semelhante.

Os doentes da covid-19 ficam em quartos e ambientes isolados, em casa ou nos hospitais. Quantos já morreram sem ter tido ao menos o conforto de afagar uma mão humana,  de ver o rosto querido de um parente, um amigo. Este é o lado cruel.

O que tenho feito nesses dias de pandemia? Lavar louça, passar pano no chão, tirar lixo, limpar banheiro. Não são novas habilidades. Sempre fui da turma da faxina. Aprendi com o tempo que os outros só nos valorizam (a nós, limpadores e arrumadores) quando o serviço falta. Quando está em dia, passamos invisíveis.

A primeira coisa que faço quando levanto, de manhã, é ir até a janela olhar o quintal, ver se ainda está lá. Com suas árvores, pássaros, hortaliças, flores, terra. Depois do café, é pra lá que eu vou. Respirar. Respirar é tudo que realmente importa. Tudo mais é vã literatura, inclusive esta crônica.

Ao cogito ergo sum (penso, logo existo) do filósofo francês René Descartes, acrescento este modestíssimo, porém incontornável, respiro, logo existo. Porque, nesta altura do drama, é do que mais precisamos. O resto vai ter que esperar.

sábado, 18 de julho de 2020

O Senhor não está

Jorge Finatto

cartum de Quino*


No aniversário de Quino, 88 anos completados ontem, a nossa homenagem! Feliz cumpleaños, Maestro!

NÃO, O DONO da casa não está. Saiu cedo e não disse a que horas volta. Ele foi por aí, não falou onde ia. Talvez não volte mais hoje nem nunca mais. Escafedeu-se. De fato, ele é esquisito. Vivo com ele uma vida inteira e não o conheço.

A Senhora sabe: as pessoas são estranhas. A cidade é grande, tem muito trânsito, muita livraria, muita coisa que ver, fazer, se distrair, e, sobretudo, muitos perigos. Sabe-se lá a que horas uma criatura destas retorna pra casa, se é que retorna.

Andar pelas ruas, nos dias de hoje, é uma odisseia. O Senhor gosta de olhar vitrines, até conversa com manequins, imagine; e perde horas na banca de jornal. O velhote vai ao cinema e dorme durante os filmes, acredita? É um biruta, vai pra onde leva o vento.

O quê, veio buscá-lo? Não, minha Senhora, não vale a pena ocupar-se dele, sujeito sem importância, tiozinho solitário, frugal. Gosta de viver, sim, e só isto. Teve vida difícil. Melhor deixá-lo em paz, não acha? Eu acho.

A Senhora tenha paciência, vá embora, que eu tenho mais o que fazer. Não, não posso convidá-la a entrar, não me leve a mal. Adeusinho, adeusinho.
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*site oficial de Quino:
http://www.quino.com.ar/  
Este post foi inspirado no cartum do genial artista argentino, "pai" de Mafalda, de quem sou grande admirador. Publicado antes em 3 de janeiro, 2018.

sábado, 11 de julho de 2020

As primeiras horas

Jorge Finatto

photo: jfinatto



Imagino o que os habitantes da Arca de Noé devem ter sentido quando as águas do Dilúvio baixaram e puderam olhar o azul do céu outra vez. Hoje, depois de muitos dias de pandemia, chuva, frio, ventania, ciclone bomba, enchentes, mortos e desabrigados, e sem poder ver uma nesga de céu claro, o dia amanheceu azulzinho. Abri a janela do escritório e respirei aquele azul.

Como tinha sede do Sol, desci a escada Santos Dumont e fui para o nosso jardim. Um pouco maltratadas com o mau tempo, as rosas estavam lá ainda. E as camélias, as magnólias, as azaleias, as flores de mel, as éricas também. Fiquei ali com elas, apanhando sol.

Depois fui recolher galhos e gravetos que caíram com a tempestade, para acender o fogão a lenha. Cada movimento com calma, como se o mundo estivesse começando agora. E fosse preciso viver essas primeiras horas com a delicadeza e o espanto de uma borboleta.

domingo, 5 de julho de 2020

O jeitinho brasileiro diante da tragédia

Jorge Finatto

photo: jfinatto. rosa amarela: esperança


A estimativa de que o Brasil poderá chegar a 100 mil mortos pela covid-19 nos próximos dois meses está se confirmando. O número diário de óbitos passa de mil e, seguindo assim, ultrapassará aquela projeção feita por especialistas. Uma catástrofe.

O que se percebe é uma quase indiferença em relação ao assunto. Quando a pandemia se instalou na Europa, houve comoção. Agora que está aqui, em números muito maiores, parece que não nos diz respeito. 

A falta de coesão no enfrentamento da doença é alarmante. O pouco caso de parte da população às orientações sanitárias é inacreditável. A maioria sabe o que precisa ser feito para impedir a propagação da doença. Mas muitos reagem como se se tratasse de uma gripezinha apenas, como a relativizou há algum tempo o Presidente da República. Aliás, um capítulo especial caberá a este senhor, quando for contada a história da pandemia no Brasil.

O que falta ao nosso país é amor social. Não nutrimos apreço pela vida em sociedade, a lei que vale é a famosa "quem pode mais chora menos". Não temos sentimento de coletividade. Somos capazes de atos solidários no varejo, aqui e ali, mas não alimentamos a empatia como um valor necessário e indispensável.

Claro que existem pessoas solidárias e envolvidas com o bem comum. Mas a média dos que praticam tais virtudes é insuficiente. A indiferença em relação às muitas tragédias que nos atingem pode ser observada quando olhamos para o número anual de assassinatos, para  as favelas, presídios, para a falta de saúde, educação, saneamento, moradia, para os elevados níveis de corrupção, devastação da natureza, etc.

Não formamos propriamente uma nação, mas um amontoado de gente sem direção, os "espertos" puxando brasa para o seu assado, achando que isso é o certo. O resultado é o que se vê. 

Somos uma sociedade autofágica, que não se comove com a dor do próximo. Não fomos educados para desenvolver ideia de pertencimento que reforce nossos vínculos com a comunidade na qual estamos inseridos e da qual bem ou mal dependemos. Ao contrário, o mantra desse modus vivendi é: cuide de si, leve vantagem, suba na vida, não olhe para os lados.

Uma sociedade com esse nível de desunião é incapaz de acusar o golpe ante as mais de 100 mil mortes anunciadas (hoje esse número chegou a 64.365*, sendo o primeiro óbito em março passado).

É um triste espetáculo para o mundo. Um atestado de frieza moral. Um péssimo legado para nossos filhos e netos.

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O Globo:
https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/brasil-registra-64365-mortes-por-covid-19-informa-consorcio-de-veiculos-da-imprensa-em-boletim-das-20h-24515993

terça-feira, 30 de junho de 2020

As últimas folhas

          Jorge Finatto

photo: jfinatto


Caíram as últimas folhas do outono
novelo de lã nas mãos de Maria
fogão a lenha, pinhão
conversa na noite fria

anúncio do inverno: ventania

esperança de vida
apesar do isolamento,
da pandemia
e do autoritarismo
(em progresso)
no Brasil

que Deus proteja o povo (todos nós)
da peste e da tirania

sexta-feira, 26 de junho de 2020

O visitante

Jorge Finatto

Lausanne, Suíça. photo: jfinatto


Quando o frio chega
eu saio com o bolso
cheio de pássaros
e vou até aí te visitar

tempero o inverno
no teu calor
de mulher

de manhã parto feliz
com tua luz
nas entranhas

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Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

terça-feira, 23 de junho de 2020

O caçador

Jorge Finatto

Rosa. photo: jfinatto

O caçador de flores, na sua floral loucura, busca reter a beleza do que, por natureza, é volúvel ao tempo e perecível.
Sou amador na arte de caçar. Dedico-me ao ofício por puro prazer, sem fazer disso meio de vida. Também não nutro espírito de emulação com outros caçadores.
Lanço-me à faina, mesmo sabendo que retratos conservam apenas a aparência do que foi belo um dia, e depois deixou de ser.
Saio por aí com a Coruja, vetusta máquina fotográfica que me acompanha há séculos, e começo mais um dia de caçada.
E haja corola pra satisfazer a sanha insana.
O gesto é egoísta, típico de quem quer dar expansão ao próprio deleite estético, numa ânsia predatória de fazer arrepiarem-se as pedras.
O caçador satisfaz o cruento instinto ao capturar as imagens, escondendo-as em seguida em secreto compartimento.
Todavia, o segredo não resiste à evidência de que o belo precisa ser compartilhado pra ser admirado.
Só a exposição da caça torna completa a alegria do caçador.
Um dia as flores secam e morrem, como tudo que é vivo e respira. Alguma coisa delas permanece nas photos. Será essa, quem sabe, a possível atenuante para a conduta do caçador, no seu afã de ter consigo todas as flores que puder e mais algumas.
Na cidade grande quase não há flores. Por isso, e por não gostar de viver distante delas, quando estou longe de Passo dos Ausentes, levo comigo o baú de fotografias. Um jardim de emergência em meio ao deserto de concreto, suavizando o feio e o triste.
No lugar onde escrevo essas frágeis linhas, não faltam flores, graças a Deus. Elas crescem generosamente e a caça é abundante.
O retrato é, talvez, um modo patético de aprisionar o efêmero. Mas o que não é patético nessa tosca existência, não é mesmo, raro leitor?
Magnólia rosa. photo: jfinatto
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Texto revisto, publicado antes em 26 nov. 2013.