segunda-feira, 1 de março de 2021

Lágrimas de papel

 Jorge Finatto

photo: jfinatto

O poema nasce, às vezes, de um profundo sofrimento.

As palavras são lágrimas de papel.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

O leitor inusitado

 Clara Finatto*

Ilustração: Clara Finatto

Era o começo de uma noite fria do mês de junho e eu estava caminhando pelas ruas do bairro quando vi, ao longe, um homem deitado na calçada bem debaixo de um poste de luz.

Ao me aproximar percebi que era um morador de rua. Naquele chão frio, com um cobertor até o pescoço, segurava na mão esquerda um livro aberto e, com a direita, pegava bolachas de um saco plástico para comer - no intervalo entre uma página e outra.

Fiquei muito tocada ao ver a cena. Custei a acreditar.

Que homem seria aquele? Mesmo diante da pobreza extrema cultivava o hábito de ler. Como conseguia manter assim viva a sensibilidade naquelas condições?

Chegando mais perto pude ver que ele lia “O Fantasma de Canterville” de Oscar Wilde. Fato este que me deixou mais emocionada, pois sou apaixonada por esse escritor.

Nada sabia sobre aquele homem, mas me identifiquei instantaneamente com ele.

Perguntei qual era o seu nome. Ele respondeu, com uma voz suave, que se chamava João. Quis lhe fazer mais perguntas, mas me segurei. Não queria incomodá-lo.

Na sequência questionei se teria interesse em ler outros livros. Ele abriu um largo sorriso e disse que sim.

Então, combinamos que eu faria a entrega de um livro diferente a cada 10 dias, sendo a entrega feita naquele mesmo local que chamamos de Poste da Leitura...

No dia seguinte emprestei-lhe o primeiro livro. Escolhi  “O Retrato de Dorian Gray” do mesmo Oscar Wilde já que ambos gostávamos do autor.

Passados 10 dias fui ao Poste da Leitura para entregar o segundo livro e para saber o que havia achado do anterior. Ele, muito educado, agradeceu e disse que tinha gostado bastante do livro. Assim, ele devolveu o primeiro e entreguei “Os Dragões não conhecem o Paraíso” de Caio Fernando Abreu.

Decorridos mais 10 dias fui, muito contente, ao encontro do meu amigo João para alcançar-lhe o terceiro livro: “Dom Casmurro” de Machado de Assis.

Transcorrido outro período saí para a próxima troca, mas, de longe, percebi que João não estava lá. E quando cheguei ao Poste da Leitura vi que ele havia deixado o livro entre folhagens enrolado em um papel de pão.

Ao pegar o livro vi que ele havia escrito um bilhete que dizia:

“ESSE LIVRO FOI O ÚLTIMO. COM HISTÓRIAS ASSIM VOU ACABAR ME MATANDO”.

Nunca mais o vi nem tive notícias dele. Queria muito revê-lo para pedir desculpas pela seleção que não lhe agradara e, quem sabe, tentar outros livros.

Espero que João, onde estiver, continue com suas leituras. 

______ 

*Advogada e artista plástica.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Um verão cordial

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


As hortênsias estão floridas em volta da casa. Isso, em meados de fevereiro, alto verão, é raro. O sol violento de dezembro em diante costuma castigar as hortênsias e outras flores, e é comum restarem secas ao final de janeiro. Este ano não foi assim. Plantas e flores estão bem vivas.

Um verão cordial, portanto. A brandura das temperaturas faz pressentir os primeiros acenos do outono  que começa em 20 de março. Tem chovido cordialmente, também, afastando-se a hipótese de seca. Plantações prometem, reservatórios não se ressentem.

De modo que, ao menos nisso, estamos bem. Não vou falar da lentidão brutal da vacinação contra a covid-19, da impiedosa disseminação do vírus nas últimas semanas, do triste aumento das mortes, da insubordinação de parte da população contra normas básicas de prevenção, do sofrível desempenho das autoridades ao lidar com a crise.

Não vou falar do modo patético como alguns indivíduos, que deveriam dar exemplo, lidam com esta realidade, promovendo aglomerações, não usando máscara, subestimando a gravidade do que está acontecendo, ao invés de estimularem os cuidados necessários. 

Eu nunca vi nada parecido com o que está acontecendo no Brasil. A situação geral piorou muito. Não se veem horizontes por perto. E não apenas devido à pandemia. Parece que os nossos piores defeitos enquanto sociedade resolveram aflorar ao mesmo tempo.

Como estava dizendo, as flores e plantas estão vivas em volta da casa, e resistem.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Saudade dos dias que virão

 Jorge Finatto

Contraforte dos Capuchinhos. foto: jfinatto


VAMOS para meados de fevereiro, quase um ano depois que isso tudo começou. As primeiras doses de vacina começaram a ser aplicadas em janeiro, mas a aplicação segue tão lenta aqui no Brasil que não sabemos se estaremos vivos quando a nossa vez chegar. Enquanto isso, tome confinamento longe da família, dos amigos, da antiga vida.

É preciso paciência, é preciso não enlouquecer enquanto se aguarda. É preciso esperar, também, pela apuração de responsabilidades dos que subestimaram os efeitos da pandemia e, assim agindo ou se omitindo, contribuíram para o mau gerenciamento da crise sanitária que resultou na maior disseminação do vírus, na enorme pressão sobre serviços de saúde, nos milhares de mortos (233.588 até o dia de hoje).

Sinto saudades não do tempo de antes da pandemia, mas dos dias que virão (um dia virão). Me vejo caminhando nas ruas do bairro outra vez, indo ao café na frente da praça para conversar com o atendente sobre o tempo e futebol, e para beber um cappuccino folheando livro ou revista.

Saudade de comprar jornal na banca da esquina, pão no balcão do armazém, de ir ao barbeiro como nos velhos tempos (meu Deus, quanto tempo!).  

De tanta saudade das coisas do futuro, chego a sentir um nó no peito. Mas corto por aqui essas visões. Não dá para enfartar agora em que esse amanhecer surge - tímido embora - no horizonte.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Memória do vento

 Jorge Finatto

photo: jfinatto. Canela

Não posso

fechar a porta 

às histórias

que o vento traz


o mundo esquecido

a vida pequena

seres e coisas

que têm em mim

a eternidade

possível

________

Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

4 rosas

 

photo: jfinatto, jardim da casa

sábado, 23 de janeiro de 2021

Da amorosa arte de guardar peixes e flores*

 Jorge Finatto

photo: Henrique do Valle, 1979
autora: Ana Maria Lopes de Almeida Bastos


Te chamei porque queria que guardasses
meus peixes e flores
agora que vou viajar.

Conhecerei novas terras, outras pessoas
e isso me enche de tanta alegria
que nem sei como expressar.

Prometo que te trarei presentes
e que te contarei tim tim por tim tim
tudo que passei.

Mas até eu voltar, dá uma força,
cuida bem dos meus peixes e flores. 

Henrique do Valle


Há trinta e dois anos trago comigo os peixes e as flores de Henrique do Valle. Em 1981, pouco antes de morrer, ele me confiou um envelope com trinta e um poemas datilografados em folhas de caderno. Escreveu à mão na primeira: "Estive aqui mas não havia ninguém. Espero que aproveites estes textos".

Chovia muito naquela tarde. Ele deixou o envelope na porta e foi embora. Nunca mais o vi.

Eram tempos estranhos aqueles. Trazíamos no peito o sol dos vinte e poucos anos. Em nossa volta, porém, a realidade era sombria e maniqueísta: civis e militares, comunistas e patriotas, Arena e Mdb, direita e esquerda, bons e maus. Não havia meio-termo. A Semana de Arte Moderna de 1922 era ainda o grande acontecimento da literatura brasileira nas salas de aula.

O Brasil era preto e branco, cinema mudo sem Carlitos, cidade morta.

O poema inaugural do envelope falava dos peixes e das flores que o poeta cultivava em seu mundo espiritual. Era talvez o que tinha de mais precioso na vida. A breve existência do Henrique foi toda dedicada à escrita. Foi a maneira que ele encontrou - possivelmente a única - de suportar a passagem pelo mundo.

A entrega do envelope foi um gesto simbólico. A metáfora da preparação de uma longa viagem - a última - que o levaria para muito longe, para bem depois dos moinhos, vales e montanhas estelares. Só entendi isso depois que ele partiu.

______  

* Primeira parte do meu depoimento no livro Henrique do Valle, Obra Reunida, organizado por Paulo Seben e publicado pelo Instituto Estadual do Livro em 2014. É uma publicação de resgate da obra deste grande poeta que morreu aos 22 anos (21 de março,1958 - 28 de fevereiro,1981). Um livro precioso.