sexta-feira, 18 de junho de 2021

Paroxismo da maldade

 Jorge Finatto

Em memória dos quase 500 mil mortos* durante a pandemia covid-19 no Brasil

"A pessoa tenta puxar o ar para dentro dos pulmões mas o ar não vem. Uma, duas, três, várias vezes. Até que o ar não é mais preciso. A pessoa não está mais ali. Meu pai do céu amado!" De um sobrevivente de UTI.

A todos aqueles que subestimaram a pandemia e negaram seu imenso poder de destruição está reservado um capítulo na história. Como se diz, a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória. Ninguém foge disso.

Muitos dos que debocharam e ainda hoje debocham da gravidade do que estamos vivendo, da dor e do sofrimento de milhões de pessoas, amanhã ou depois, diante de um tribunal local ou internacional, haverão de fazer-se de inocentes ou arrependidos. Mas então será tarde. 

Tiveram todas as chances de perceber o que estava acontecendo e de agir de modo diferente e, no entanto, desprezaram os fatos movidos sabe-se lá por quais sentimentos.

Como se o horror de 500 mil mortos fosse o preço razoável (e necessário) a pagar para o aumento do pib.

Como se todas essas mortes fossem inevitáveis e não fruto da mais abjeta e cultivada maldade de uns e ignorância de outros.

Como se medidas simples e universalmente aceitas não fossem capazes de evitar muitas dessas perdas, se tivessem sido adotadas tempestivamente em programa nacional de prevenção voltado para a população em todos os entes federados.

Como se a politização da pandemia, o conflito permanente, a vaidade pessoal exacerbada, a sede absurda de poder não fossem a chave do abismo. 

O futuro chegará e haverá julgamento para todos que usaram a pandemia para obter vantagem.

500 mil vidas perdidas serão registradas para sempre na História e permanecerão em nossos corações, nas nossas preces e na memória das gerações que virão.

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* Com 496.172 mortos, estima-se que o país atingirá, oficialmente, os 500 mil nos próximos dias. Nesta quinta (17/6) morreram 2.335 pessoas vítimas da doença, registrando média móvel de 2005. Considerando as subnotificações, crê-se que o número total já ultrapassou os 500 mil.

Mais informações jornais O Globo e Folha de S. Paulo:

https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/brasil-notifica-2335-mortes-por-covid-19-media-movel-permanece-acima-de-2-mil-1-25066096

https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/06/brasil-registra-2335-mortes-por-covid-19-e-mais-de-74-mil-casos-em-24-h.shtml

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Saíra

 Jorge Finatto

saíra. photo: Ricardo Gasparin. Canela


Esses são dias sombrios

de pouca alegria

de sofrida esperança

em meio à pandemia


mas hoje eu vi

um pequeno pássaro

pousado no galho

diante da minha janela


vestia delicadas penas

de cores várias


ficou um instante

cantarolou doce melodia

depois partiu


ele salvou o meu dia 

aliviou um pouco a opressão

desse tempo de tantas mortes

e dores e medos


abriu uma fresta 

de luz

dentro de mim

domingo, 6 de junho de 2021

Depois que tudo isso passar

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


Depois que tudo isso passar vou tomar banho de mar. Vou procurar amigos que não vejo há muito tempo. Vou beber cerveja da Patagônia, espessa, gelada, salutar. Está decidido. Não dá mais para esperar.

Irei ao mercado público de Porto Alegre sentir o cheiro misturado de peixe com erva mate, entre outras tantas fragrâncias daquele lugar. Pedirei salada de fruta com sorvete na Banca 40, vou me esbaldar.

Escreverei cartas depois que a peste passar. Tantas que faltarão carteiros para delas se ocupar. 

Vou caminhar pelas ruas do bairro até o sapato gastar. Cumprimentarei todo mundo na rua. Os maldosos dirão que estou diferente, nem pareço o cáctus de antigamente. Falarão que estou com medo da morte, o que não deixa de sarapantar.

Depois que tudo isso passar vou sentar no café pra ler jornal, beber cappuccino, ver o movimento passar. Coisa boa assim não há.

Depois que tudo isso passar deitarei no fundo do meu barco de papel e mirarei o céu até a vista cansar. Navegarei pelo Guaíba, Lagoa dos Patos, Atlântico em alto mar. Rumarei pelo Sena até Paris. 

No Quartier Latin guardarei o barquinho no bolso do capote azul marinho e me hospedarei no hotelzinho da praça da Sorbonne Velha. Andarei na mesma calçada onde caminharam Rimbaud, García Márquez e Cortázar. 

Descerei a Rue Cujas, dobrarei à direita no Boulevard Saint-Michel em direção a Place Saint-Sulpice, em Saint-Germain-des-Prés. Entrarei no café, na tabacaria e sentarei no mesmo banco em que Georges Perec, durante três dias, no outono de 1974, escreveu Tentativa de esgotamento de um local parisiense*.

Tudo isso eu vou fazer quando o mundo voltar a respirar. 

E prometo nunca mais fazer rima rica em ar.

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Tentativa de esgotamento de um local parisiense. Georges Perec. Tradução de Ivo Barroso. Editora G. Gili Ltda. São Paulo, 2016.

domingo, 30 de maio de 2021

A vida sem pandemia

Jorge Finatto

Festa das folhas. Outono. photo: jfinatto



Ah, saudade que eu sinto daquele tempo em que éramos eternos...

Adão e Eva tiveram tudo à mão. Dos mais doces frutos aos mais delicados perfumes.

De lambuja, Deus lhes ofereceu a vida eterna.
 
Mas nossos vetustos avós, por razões difíceis de entender, decidiram chutar - e chutaram mesmo - o pau da barraca, comendo do fruto interdito da árvore do conhecimento. Contrariando o Criador, foram expulsos do Paraíso e tornaram-se mortais, transmitindo-nos, desde então, a finitude.

O Paraíso situava-se nas cercanias da rica região do Tigre e do Eufrates, devastada, nos últimos tempos, por guerras, atentados terroristas e saques ao antiquíssimo acervo de objetos históricos.

Com sua desobediência, o famoso casal nos deixou a morte de herança.

Com Cristo veio a esperança da reconquista da eternidade perdida.

Eu não entendo. Por que não podiam comer do fruto do conhecimento? Por que a pena eterna da perda da vida?

Isso tem a ver com o grave conflito que se trava nas altas esferas entre o Todo Poderoso e o Coisa Ruim. Os estilhaços sobram para o povo da Terra, nós. Que não somos grande coisa, vá lá. Mas talvez pudéssemos receber alguns benefícios durante o cumprimento da pena. Como, por exemplo, neste momento, ver a pandemia ir embora do planeta. Tanto sofrimento, tantas lágrimas, tantas mortes.

Quem sou eu para questionar os desígnios do Alto. Mas que a coisa está duríssima e tristíssima aqui embaixo não resta dúvida. Desde a tremenda insignificância dessa página, eu ouso pedir vênia ao Criador, solicitando um armistício que nos dê, nessa hora difícil, o benefício da dúvida, tornando, se possível, menos dolorosa nossa passagem pela existência.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Coisas que o mar trouxe à praia

 Jorge Finatto

photo: a meio do voo. Lugano, Suíça. jfinatto

Uma garrafa com bilhete do náufrago, datado de 1956, um tênis enrolado em algas, um canudo de plástico, uma lágrima guardada num lenço azul de renda, uma lata de cerveja, uma boia amarela, um diário com o nome do(a) autor(a) riscado, um lápis de cor,  uma anêmona desfalecida, uma flauta doce soprando uma cançoneta medieval, uma bola de borracha, um livro de Rilke que se desprendeu de uma mala do navio afundado, um pôr do sol cor de laranja, um audiobook com o livro do desassossego em mandarim, um bronzeador cheio, um barco a vela quebrado sem ninguém a bordo com um flamingo na proa, um chinelo de dedo pé direito, um coco verde, uma máscara de colombina, uma lupa da Finlândia, um guarda-sol com a inscrição philosofia à beira mar, uma concha cor-de-rosa, um búzio enorme, um chapéu de palha, uma boneca de porcelana com olhos fechados, uma cortina de tule, uma toalha com desenho de um palhaço atônito, uma tartaruga em viagem, um pingüim perdido, um grito distante de afogado, um boné de marinheiro branquinho, uma canção de ninar gente velha, um pelicano pimpão, um livro de poemas em inglês de robert frost, um óculos preto e redondo sem lentes, um canivete suíço, uma caixa de música polonesa, uma bailarina de papel machê sem uma perna, a memória de um homem sentado sozinho num café em Paris, uma mulher sentada no lado oposto deste mesmo café, um dente que caiu em 1963, o latido de um cachorro aflito atrás do dono, uma foto 3x4 em que o sujeito aparece com a mão direita tapando um olho, um piano que escorregou do convés e foi quando o baile terminou, um relógio de corda marcando 17h em ponto do dia 10 de maio do ano da peste de 2021.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Vigília

 Jorge Finatto

photo: jfinatto

a Mauro Carboni


Faz três dias que não durmo.
Enquanto isso ele dorme
profundamente.
Tenho de aceitar que ele não acordará
como se isso fosse normal
como se não fosse a negação da velha
amizade
como se ele não fosse um desses
essenciais
que andam invisíveis pelo mundo
tecendo generosidade
cuidando dos amigos
velando sua solidão.
Ele sequer se despediu
não avisou
nem disse nada
nem escreveu.
O sono
brutal e traiçoeiro
assaltou-o em pleno dia.
Simplesmente adormeceu
saiu de cena
partiu em silêncio
num retiro absoluto, irrevogável.
Faz três dias que não durmo
sentado junto à janela
vendo a noite e o dia lá fora.
Ele dorme profundamente
sem se despedir, sem dizer nada
sem ao menos pedir desculpas
pela inumerável ausência
dolorosa saudade.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Ocaso

 Jorge Finatto

photo: jfinatto

Um belo pôr do sol iluminou a copa dos pinheiros, dos plátanos e dos telhados, hoje, aqui na montanha. Vermelho suave no início, depois rosicler, viva aquarela. 

Uma pintura delicada num tempo desesperado. Um concerto de trompa alpina a céu aberto. Um mergulho na maravilha. 

Clareira de luz em meio à treva absoluta.