terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Cais

Jorge Adelar Finatto



Tem dias em que saímos

com o corpo nu

para alojá-lo na primeira copa de árvore

e chorar longe dos homens


dias em que os desejos

até os mais secretos

sucumbem apagados

na penumbra


tempo de total privação

da carne e do sonho

tardes em silêncio reveladas

intervalo entre dois mundos


olhamos o céu

no quadrado da janela

esperando ver a face de Deus

procuramos Deus

no íntimo da alma e das coisas

precisamos repousar no colo de Deus

sentir suas mãos nos olhos

para amparar a lágrima quente

que por ali verte


tem dias que estranhamos

o próprio olhar

que amanheceu mais seco


não reconhecemos a rua

onde tantas vezes inventamos o amor

na sombra dos cinamomos


as melhores viagens

ficaram sonhando no cais

enquanto navios partiam

repletos de homens decididos

em busca de cidades felizes


onde andará o menino

que nos visitava nos dias

em que tudo em volta

parecia desabar?


em que gare deserta

se perdeu o guarda-chuva melancólico

com que meu avô ia à cidade

buscar a porção diária de pão

esperança

e jornal?


tem manhãs em que apesar do sol

não habitamos o claro sentido

de existir

mal percebemos a luz

acalentando o corpo


manhãs em que o carteiro

extravia a carta que irá nos salvar

a notícia tão esperada

que nos revelará

um mundo desconhecido

onde pandorgas falam

e o arco-íris é uma escada

que nos retira do poço


não compreendemos

as mãos cansadas

a boca amarga

com que damos bom-dia aos vizinhos

cumprimentamos os ‘superiores’



tem noites que o isolamento

é tão assombroso

que sentimos tristeza em tudo

principalmente na alegria ingênua

das velhas fotografias

uma dor inevitável

diante dos sonhos da infância


dormimos em quartos de aluguel

projetamos ataúdes de aluguel

as dívidas invadem a porta

os poros


o amanhã ficou torto

na cordilheira dos dias

sem luz


a cidade parou no escuro

sufocou nossos melhores anos

inundou o rio

com seus maus óleos

seu excremento


não merece um verso

sequer uma notícia fugidia

em página de jornal


talvez careça uma bomba

um terremoto

talvez uma flor

povoando o asfalto


estamos um pouco mais tristes

e calados

(um pouco só)


trazemos um gosto de sol

entre os dentes

um resíduo de primavera

na palma da mão

uma promessa de encontro

no olhar


_________________

Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

Fotos: Jorge Finatto. Outono em Porto Alegre com Guaíba ao fundo.

jfinatto@terra.com.br

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