Jorge Adelar Finatto
A arte é também um modo de conhecer o mundo sem sair de casa.
Através da convivência com os bens culturais visitamos lugares estranhos, distantes, a começar pelo mais desconhecido de todos: a alma humana.
Há cidades que têm fundações mais sólidas na cultura do que nos alicerces de suas vestustas construções.
Paris é uma cidade espiritual. Habita a nossa memória afetiva mesmo que nunca tenhamos ido lá. Muito tempo antes de conhecê-la, eu já transitava por suas ruas, frequentava seus cafés, salões, navegava nos barcos do Sena, através das páginas de seus escritores e poetas. Conheci o íntimo da cidade do espírito e das luzes nas obras de gente como Balzac, Victor Hugo, Rimbaud, Rosseau, Anatole France, Jacques Prévert, Alexandre Dumas, Verlaine, Baudelaire, Montesquieu, Foucault, Sartre, Voltaire. Também seus pintores abriram portas na minha sensibilidade: Van Gogh, Renoir, Cézanne, Seurat, Monet, Picasso, Modigliani, Chagall e tantos outros.
Aquele foi um dia de viagem. Tinha chegado há poucas horas da Itália. Estava cansado e feliz por retornar ao Quartier Latin. Saí do hotel ao lado da Praça da Sorbonne, na frente da velha universidade. Desci a pé o Boulevard Saint-Michel, quase vazio àquela hora da noite, em direção à catedral de Notre-Dame. Na esquina das ruas Galant e Petit Pont, encontrei o pequeno e acolhedor restaurante Aux Trois Maillet. Enquanto olhava o cardápio, duas mulheres acercaram-se do piano. Uma pianista e uma cantora lírica, esta com traços orientais. O homem que aparentava ser dono ou responsável pelo estabelecimento também era de origem oriental. Todos falavam a língua de Édith Piaf com desenvoltura.
As artistas iniciaram, então, um belo recital. O repertório era encantador. Para quem, como eu, vinha exausto, ouvi-las naquela noite de sábado era um alento.
O prato que escolhi, steak au poivre, estava muito bom e o preço era razoável. As coisas iam bem até o momento em que adentraram no recinto quatro homens aparentando cerca de 28 anos.
Tomaram de assalto uma das mesas. Falavam francês com acento parisiense, e o tom era exageradamente alto. Fizeram questão de perturbar a apresentação musical. Debocharam com estúpido sarcasmo da cantora, que estava em pé ao lado do piano. Imitavam seu jeito de cantar, ridicularizando-a.
Percebi que estava diante de mais um caso de grosseira intolerância a imigrantes.
O padrão de comportamento daqueles tristes senhores seguia a cartilha da direita nacionalista da França e de outros países europeus.
Essa gente não tolera a presença de pessoas de outras nações, principalmente pobres, na Europa. O estrangeiro só é suportado se e enquanto estiver gastando euros. Depois, rua.
Indignado, estive a ponto de levantar da mesa para intervir, mesmo sabendo que, na condição de forasteiro, podia arrumar problema.
Nesse exato momento, surgiu diante da mesa dos lamentáveis rapazes ninguém mais nem menos do que Obelix (nome que me ocorreu naquele instante, pois lembrava muito o famoso personagem gaulês das histórias em quadrinhos de Goscinny e Uderzo). Era um funcionário do restaurante de quase dois metros de altura.
Obelix não era apenas alto, mas, como seu homônimo dos livrinhos de aventura e humor, era sobretudo musculoso, rijo, largo. Tinha uma cara basáltica de poucos, raros amigos. Ele pôs os dois punhos no meio da mesa dos sacripantas. E disse:
- Querem pedir alguma coisa? Façam agora o pedido, por favor. Mas não falem, peçam por escrito. Se eu ouvir a voz de um só de vocês uma única vez, atiro os quatro na calçada. E então, o que vai ser, cavalheiros?
Os fascistas desculparam-se engasgando a voz. Ante a iminência do grande trovão que os ameaçava, retiraram-se imediatamente.
O homem com semblante oriental fechou a porta atrás deles com delicadeza. Obelix retornou para o bar, onde agora preparava uma bebida para um freguês.
As moças voltaram a tocar e cantar divinamente.
Fez-se a tão sonhada, necessária e muitas vezes ausente justiça, sem a demora habitual que tanto fere as pessoas que têm direitos violados. Coisa rara nesse mundo de Deus onde o demônio anda solto.
A poucos metros dali brilhava a fachada iluminada da catedral de Notre Dame.
Antes de me retirar, fiz questão de cumprimentar as artistas. Conversamos um pouco. Quando souberam que eu era brasileiro, pediram que ficasse mais um minuto, por conta da casa.
Para meu encanto e maior surpresa, em homenagem ao Brasil, executaram a maravilhosa Bachiana nº 5, do nosso genial maestro e compositor Heitor Villa-Lobos (Rio de Janeiro, 1887-1959).
O que se viu foi um inefável momento de arte, sensibilidade e integração humana. A cantora pronunciou os versos da obra erudita em bom português. Os presentes, como eu, emocionaram-se com a música de Villa-Lobos na interpretação das jovens. Com sua arte elas transcenderam a brutalidade e a discriminação, provando que a expressão artística irmana as pessoas de boa vontade.
O Brasil foi lembrado como país da assimilação das diferenças e da solidariedade (ainda que haja muito a fazer nesse sentido).
Despedi-me. Obelix abriu a porta educado e sério. Retornei para a solidão do meu quarto de hotel com a alma lavada.
O coração em paz por testemunhar a realização da justiça e da arte.
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Fotos: Jorge Finatto
jfinatto@terra.com.br
O fato, que poderia passar fortuito em mentes desnutridas, ganha tons quase antologícos em tua narrativa.
ResponderExcluirGosto demais desta crônica, bem sabes, pela qualidade literária e pelo posicionamento ideológico.
Aproveitei, hoje, para divulgar teu blog junto a amigos escritores.
Espero que te leiam e comentam.
Estas páginas não merecem ficar esquecidas.
Abraço.
Ricardo Mainieri
Beleza de narrativa, amigo do amigo Ricardo, parabéns!
ResponderExcluirSe quiser, visite meu blog, no momento também com uma crônica de viagem, sobre Portugal, "E quero frátria":
http://ogozodaletra.blogspot.com/2010/01/e-quero-fratria.html
Abraços!