Jorge Adelar Finatto
Gradualmente, o aprazível universo o foi abandonando; uma insistente névoa apagou as linhas de sua mão, a noite se despovoou de estrelas, a terra era insegura sob seus pés. Tudo se afastava e se confundia. Quando soube que estava ficando cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem menoscabo. "Não verei mais (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico nem este rosto que os anos vão transformar." ¹
Jorge Luis Borges
Buenos Aires, calle Tomás Manuel de Anchorena, 1660. Neste endereço está a Fundación Internacional Jorge Luis Borges (http://www.fundacionborges.com/lafundacion/lafundacion.html).
Aqui se encontram objetos de uso pessoal e documentos que pertenceram a Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo, entre eles duas bengalas, manuscritos, fotografias, talismãs, medalhas, títulos, coisas curiosas como uma vestimenta de samurai, e livros, muitos livros, como as primeiras edições de suas obras, e publicações de outros escritores, como Os Lusíadas, de Luís de Camões.
O lugar é silencioso. Os iniciados na obra de Borges vêm a esta casa numa peregrinação em busca da memória do mestre. Querem ver algum sinal, algum vestígio, saber se Borges de fato existiu ou se foi só um sonho sonhado pelo outro Borges, o fantasma que vaga pelos espelhos e bibliotecas.
Na escadaria da antiga casa, paira o seu retrato. A senhora que atende o visitante é atenciosa. Informa que no andar superior será montado, em breve, o quarto do autor de Fervor de Buenos Aires (1923), Historia Universal de la infamia (1935), Ficciones (1944), El Aleph (1949), Los Conjurados (1985), entre outros. Neste espaço todos os detalhes passam pelo exame da guardiã da memória de Borges, María Kodama, viúva do escritor.
A fundação foi criada em 1988 e situa-se ao lado da casa número 1670, na qual Borges viveu com sua família de 1938 a 1943. Nela escreveu Las ruinas circulares.
A funcionária esclarece que o acervo muda de tempos em tempos. Conheceu Borges em palestras, não teve contato pessoal com ele. As peças viajam para exposições em outros países. Não há programação prevista para o Brasil em 2010.
Pergunto-lhe se há livros do e sobre o escritor para vender. Ela providencia alguns exemplares. A Fundação não faz comércio das obras como uma livraria comum, embora ofereça alguns títulos, dentro da finalidade de preservar o legado e a história de Borges. Há livros para casos de urgência, como o meu, que - devoto inconveniente na biblioteca do mosteiro - pretendo folheá-los, ler trechos, adquiri-los ali mesmo.
Jorge Luis Borges nasceu em 24 de agosto de 1899, na casa 840 da calle Tucumán, na capital da Argentina, filho de Jorge Guillermo Borges, advogado e professor de psicologia, e de Leonor Acevedo. Morreu em 14 de junho de 1986 em Genebra, Suíça, onde está enterrado no cemitério de Plainpalais. No ano da morte, em 26 de abril, casou-se com María Kodama, cerca de trinta e cinco anos mais jovem que ele. Há muito tempo María o acompanhava, tendo auxiliado Borges na escrita e também na organização de seus trabalhos.
Em 1956, por determinação médica, o escritor não pôde mais ler nem escrever. A nuvem da cegueira invadia sua existência. Uma ironia para quem passou a vida no meio dos livros e teve nas bibliotecas seu ambiente natural. O pai do escritor, Jorge Guillermo, ficou cego ainda mais jovem do que o filho, interrompendo uma sonhada carreira de escritor.
O homem cego não desistiu da leitura nem da produção literária. Registrava na memória os poemas e textos. Depois os ditava para alguém chegado a ele. Da mesma forma passou a ouvir a leitura dos livros.
A espessa névoa não impediu Jorge Luis Borges de construir uma obra única. Tornou-se um dos maiores escritores do século 20.
Um escritor raro, dotado de humanismo e notáveis recursos técnicos.
Um homem, como todos, contraditório, com dificuldades de lidar com o mundo real.
As contradições levaram-no a não receber o Prêmio Nobel de Literatura. A mais importante distinção dada anualmente a um escritor é concedida levando em conta critérios não apenas de mérito literário como políticos. Borges foi recusado, na década de 1970, por sua simpatia, no momento inicial, pela ditadura argentina e pelo governo não menos ditatorial de Pinochet, no Chile.
Mais tarde revisou suas posições, reivindicou a volta ao estado democrático de direito, insurgiu-se diante da questão dos desaparecidos na ditadura, posicionou-se contra a Guerra das Malvinas.²
De qualquer forma, o tempo passou, o escritor foi capaz de rever conceitos, mas jamais receberia o Nobel. Esse foi um grave equívoco cometido pelo comitê que outorga a premiação. Tanto ou mais do que outros, Borges merecia o galardão.
Jorge Luis Borges não apenas construiu uma importante obra literária como teceu para si uma biografia de escritor, mosaico de fatos cuidadosamente recolhidos do cotidiano e da imaginação. A invenção, mais do que a realidade, ocupa o centro do seu universo.
Ele sentia-se inglês, embora com nome de origem portuguesa. A avó paterna nasceu na Inglaterra. Por isso, aprendeu a ler primeiro em inglês e só depois em espanhol. A condição de argentino e latino-americano lhe doía, às vezes, pelo atraso cultural.
Borges teve o tempo necessário para fazer uma obra, tornando-se um escritor universal. Era alguém a quem as ideias de morte e suicídio visitavam com alguma frequencia.
Sempre buscou amparo e refúgio nos livros.
Identificado o câncer que lhe sobreveio já octogenário, negou-se ao tratamento convencional. Saiu da Argentina. Viveu os últimos tempos em Genebra, cidade de sua devoção, ao lado de María Kodama.
Passou por um constrangimento desnecessário ao postular, e não obter, por essa época, a nacionalidade suíça. Não tinha como preencher os requisitos, tais como 12 anos de residência continuada naquele país.
Morto, foi enterrado em Genebra. Não voltou para sua Buenos Aires.
Não há quase esperança na obra de Borges. Existem livros, bibliotecas, espelhos, sombras num casarão povoado de memória e espectros.
Uma súbita manhã costuma emergir dos textos de Jorge Luis Borges.
Ele alcançou o maior reconhecimento que um escritor pode sonhar: sua obra continua lida e amada por sucessivas gerações.
Silenciosamente desesperado, escreveu as histórias do nosso mundo pequeno, no qual se movem criaturas feitas de sangue e névoa.
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1. Trecho do texto O fazedor, do livro O Fazedor (El hacedor - 1960). Companhia das Letras, São Paulo, 2008. Tradução de Josely Vianna Baptista.
2.Informações extraídas do livro Jorge Luis Borges, El tejedor de sueños. Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 1a. ed., Buenos Aires, 2006.
Fotos: Jorge Finatto 1 - Retrato do escritor na Fundación Internacional Jorge Luis Borges, Buenos Aires. 2 - Fachada parcial da Fundación. 3 - Fachada parcial da casa onde viveram Borges e sua família.
Quanto tempo levará o mundo para gerar outro Borges, se é que isto é possível?
ResponderExcluirAlguém que, mesmo na escuridão dos sentidos, foi capaz de impulsionar sua obra.
Também esta referência da simpatia pelas ditaduras latino-americanas. Mas, como ser inteligente, revisou suas posições e isto é o que vale.
Brilhante texto sobre uma personalidade brilhante.
Abs.
Ricardo Mainieri
Muitíssimo obrigado, amigo Ricardo.
ResponderExcluirUm grande abraço.
JF