sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Mario Benedetti

Jorge Adelar Finatto

Mario Benedetti

Não tive a ventura de conhecer pessoalmente Mario Benedetti. Mas pude, como muitas pessoas pelo mundo, travar conhecimento com sua obra. Lê-lo desde a adolescência, em livros comprados com grande sacrifício em sebos de Porto Alegre, era tê-lo como companheiro, caminhando na paisagem gris da cidade.

A morte de Mario Benedetti, aos 88 anos, no domingo, 17 de maio de 2009, em Montevideo, significou uma perda para os que amam a literatura feita com emoção, razão e compromisso. Sentem muito os que veem a poesia como revelação e transcendência. Sobretudo aqueles que não separam a beleza estética de uma ética do respeito ao ser humano.

Os atos de viver e de criar, em poetas como Mario Benedetti, são inseparáveis.

A arte que não busca na vida a sua razão e as suas origens está perdida.

O desaparecimento do poeta deixou o mundo um pouco mais sombrio.

A luz que escorria de seus textos alumiou generosamente a vida de muita gente, nos lugares mais distantes do seu Uruguai (nasceu em Paso de los Toros, em 14 de setembro de 1920).

A força da palavra de Mario Benedetti haverá de sobreviver à extinção física do autor, e continuará a distribuir encanto e consolo.

Os que o conheceram no refúgio da amizade, e mesmo aqueles que apenas o encontraram ocasionalmente, falam de sua bondade no trato pessoal, de sua capacidade de ouvir o outro (aptidão infelizmente quase desaparecida), do bom humor, do calor humano, da revolta contra as ditaduras, da gentileza.

Gentileza, essa outra palavra no rumo do exílio.

Caminhei com Mario Benedetti em diferentes estações da vida, na beira do Guaíba e em bairros como Menino Deus, Centro, Cidade Baixa, Moinhos de Vento, Ipanema. Nos invernos, frequentamos as mesas de cafés noturnos. Partilhamos longas conversas, e a inefável meia taça com pão e manteiga. Amizade espiritual, é certo, mas nem por isso menos verdadeira. Essa que reúne pessoas que nunca se viram em torno de um texto, pedaço de vida pulsante.

Muitas vezes pegamos juntos o ônibus que nos levava para o trabalho, para o estudo, para casa, para lugar nenhum.

Em muitos sábados de chuva e dispersão, mergulhei no bosque fraterno de seus poemas, ouvindo-o falar da vida, sobre como era difícil, áspero e belo o ofício de viver, apesar das maldades, mesquinharias e injustiças de uma realidade cada vez mais pobre em valores humanos.

Muito desespero ficou pra trás graças a esse convívio.

Coração claro batendo no breu do seu e nosso tempo, Mario Benedetti escreveu coisas que nos tocaram, e abriu ventanas para o sol da lucidez e da esperança em nossas vidas de sobreviventes.

Não há adeus, portanto.

Continuaremos a nos encontrar e caminhar pelas ruas, praças e salas miseráveis do cotidiano. Continuaremos a falar da vida com sentimento de quem tem muito por descobrir, aprender e viver.

Pelas primaveras e invernos que compartilhamos, por todas as manhãs e calabouços, pela vida que ainda temos pela frente, Obrigado, Mario.






Soy un caso perdido *

Mario Benedetti


Por fim um crítico sagaz revelou

(eu já sabia que iam descobrir)

que nos meus contos sou parcial

e tangencialmente apela

que assuma a neutralidade

como qualquer intelectual que se respeite



creio que tem razão

sou parcial

disto não tem dúvida

mais ainda eu diria que um parcial irrecuperável

caso perdido enfim

já que por mais esforço que faça

nunca poderei chegar a ser neutral



em vários países deste continente

especialistas destacados

fizeram o possível e o impossível

para curar-me da parcialidade

por exemplo na biblioteca nacional do meu país

ordenaram o expurgo parcial

dos meus livros parciais

na Argentina me deram quarenta e oito horas

(e senão me matavam) para que me fosse

com minha parcialidade nos ombros

por último no peru incomunicaram minha parcialidade

e a mim me deportaram



de ter sido neutral

não teria necessitado

essas terapias intensivas

porém que se vai fazer

sou parcial

incuravelmente parcial

e mesmo que possa soar um pouco estranho

totalmente

parcial



já sei

isso significa que não poderia aspirar

a tantíssimas honras e reputações

e preces e dignidades

que o mundo reserva para os intelectuais

que se respeitam

quer dizer para os neutrais

com um agravante

como cada vez existem menos neutrais

as distinções se dividem

entre pouquíssimos



além disso e a partir

das minhas confessas limitações

devo reconhecer que a esses poucos neutrais

tenho certa admiração

ou melhor lhes reservo certo assombro

já que na realidade é necessário uma têmpera de aço

para se manter neutral diante de episódios como

girón

tlatelolco

trelew

pando

la moneda



é claro que a gente

e talvez seja isto o que o crítico queria me dizer

poderia ser parcial na vida privada

e neutral nas belas-letras

digamos indignar-se contra Pinochet

durante a insônia

e escrever contos diurnos

sobre a atlântida



não é má ideia

e lógico

tem a vantagem

de que por um lado

a gente tem conflitos de consciência

e isso sempre representa

um bom nutrimento para a arte

e por outro não deixa flancos para que o fustigue

a imprensa burguesa e/ou a neutral



não é ma ideia

mas

já me vejo descobrindo ou imaginando

no continente submerso

a existência de oprimidos e opressores

parciais e neutrais

torturados e verdugos

ou seja a mesma confusão

cuba sim ianques não

dos continentes não submergidos



de modo que

como parece que não tenho remédio

e estou definitivamente perdido

para a frutífera neutralidade

o mais provável é que continue escrevendo

contos não neutrais

e poemas e ensaios e canções e novelas não neutrais

mas aviso que será assim

mesmo que não tratem de torturas e prisões

ou outros tópicos que ao que parece

tornam-se insuportáveis para os neutros



será assim mesmo que tratem de borboletas e nuvens

e duendes e peixinhos

__________________

* Antologia Poética. Mario Benedetti, pp. 119-123.Tradução de Julio Luís Gehlen. Editora Record. Rio de Janeiro, 1988.

Fotos de Mario Benedetti: A primeira é da Reuters, arquivo de Mario Benedetti. A segunda, de Pablo Porciuncula, AFP. Ambas estão na internet.


jfinatto@terra.com.br

Um comentário:

  1. Esse poema de Benedetti revela um intelectual, diríamos orgânico, para lembrar Gramsci.
    Neutrais são aqueles que se venderam no altar do consumo e das honrarias, que abdicaram de suas convicções por interesses. Concordo e apoio, inteiramente, Benedetti.
    Comprei um livro dele em Montevideu, em castelhano, e muito me orgulho disso. Paralelamente, li Benedetti por recantos diversos e, inclusive, cantei seu poema Te quiero em arranjo para coral.
    Sobrou, ainda, Galeano, para quem entende que as Veias da América Latina continuam abertas...

    Abraço.

    Ricardo Mainieri

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