Jorge Adelar Finatto
Mario Benedetti |
Não tive a ventura de conhecer pessoalmente Mario Benedetti. Mas pude, como muitas pessoas pelo mundo, travar conhecimento com sua obra. Lê-lo desde a adolescência, em livros comprados com grande sacrifício em sebos de Porto Alegre, era tê-lo como companheiro, caminhando na paisagem gris da cidade.
A morte de Mario Benedetti, aos 88 anos, no domingo, 17 de maio de 2009, em Montevideo, significou uma perda para os que amam a literatura feita com emoção, razão e compromisso. Sentem muito os que veem a poesia como revelação e transcendência. Sobretudo aqueles que não separam a beleza estética de uma ética do respeito ao ser humano.
Os atos de viver e de criar, em poetas como Mario Benedetti, são inseparáveis.
A arte que não busca na vida a sua razão e as suas origens está perdida.
O desaparecimento do poeta deixou o mundo um pouco mais sombrio.
A luz que escorria de seus textos alumiou generosamente a vida de muita gente, nos lugares mais distantes do seu Uruguai (nasceu em Paso de los Toros, em 14 de setembro de 1920).
A força da palavra de Mario Benedetti haverá de sobreviver à extinção física do autor, e continuará a distribuir encanto e consolo.
Os que o conheceram no refúgio da amizade, e mesmo aqueles que apenas o encontraram ocasionalmente, falam de sua bondade no trato pessoal, de sua capacidade de ouvir o outro (aptidão infelizmente quase desaparecida), do bom humor, do calor humano, da revolta contra as ditaduras, da gentileza.
Gentileza, essa outra palavra no rumo do exílio.
Caminhei com Mario Benedetti em diferentes estações da vida, na beira do Guaíba e em bairros como Menino Deus, Centro, Cidade Baixa, Moinhos de Vento, Ipanema. Nos invernos, frequentamos as mesas de cafés noturnos. Partilhamos longas conversas, e a inefável meia taça com pão e manteiga. Amizade espiritual, é certo, mas nem por isso menos verdadeira. Essa que reúne pessoas que nunca se viram em torno de um texto, pedaço de vida pulsante.
Muitas vezes pegamos juntos o ônibus que nos levava para o trabalho, para o estudo, para casa, para lugar nenhum.
Em muitos sábados de chuva e dispersão, mergulhei no bosque fraterno de seus poemas, ouvindo-o falar da vida, sobre como era difícil, áspero e belo o ofício de viver, apesar das maldades, mesquinharias e injustiças de uma realidade cada vez mais pobre em valores humanos.
Muito desespero ficou pra trás graças a esse convívio.
Coração claro batendo no breu do seu e nosso tempo, Mario Benedetti escreveu coisas que nos tocaram, e abriu ventanas para o sol da lucidez e da esperança em nossas vidas de sobreviventes.
Não há adeus, portanto.
Continuaremos a nos encontrar e caminhar pelas ruas, praças e salas miseráveis do cotidiano. Continuaremos a falar da vida com sentimento de quem tem muito por descobrir, aprender e viver.
Pelas primaveras e invernos que compartilhamos, por todas as manhãs e calabouços, pela vida que ainda temos pela frente, Obrigado, Mario.
Soy un caso perdido *
Mario Benedetti
Por fim um crítico sagaz revelou
(eu já sabia que iam descobrir)
que nos meus contos sou parcial
e tangencialmente apela
que assuma a neutralidade
como qualquer intelectual que se respeite
creio que tem razão
sou parcial
disto não tem dúvida
mais ainda eu diria que um parcial irrecuperável
caso perdido enfim
já que por mais esforço que faça
nunca poderei chegar a ser neutral
em vários países deste continente
especialistas destacados
fizeram o possível e o impossível
para curar-me da parcialidade
por exemplo na biblioteca nacional do meu país
ordenaram o expurgo parcial
dos meus livros parciais
na Argentina me deram quarenta e oito horas
(e senão me matavam) para que me fosse
com minha parcialidade nos ombros
por último no peru incomunicaram minha parcialidade
e a mim me deportaram
de ter sido neutral
não teria necessitado
essas terapias intensivas
porém que se vai fazer
sou parcial
incuravelmente parcial
e mesmo que possa soar um pouco estranho
totalmente
parcial
já sei
isso significa que não poderia aspirar
a tantíssimas honras e reputações
e preces e dignidades
que o mundo reserva para os intelectuais
que se respeitam
quer dizer para os neutrais
com um agravante
como cada vez existem menos neutrais
as distinções se dividem
entre pouquíssimos
além disso e a partir
das minhas confessas limitações
devo reconhecer que a esses poucos neutrais
tenho certa admiração
ou melhor lhes reservo certo assombro
já que na realidade é necessário uma têmpera de aço
para se manter neutral diante de episódios como
girón
tlatelolco
trelew
pando
la moneda
é claro que a gente
e talvez seja isto o que o crítico queria me dizer
poderia ser parcial na vida privada
e neutral nas belas-letras
digamos indignar-se contra Pinochet
durante a insônia
e escrever contos diurnos
sobre a atlântida
não é má ideia
e lógico
tem a vantagem
de que por um lado
a gente tem conflitos de consciência
e isso sempre representa
um bom nutrimento para a arte
e por outro não deixa flancos para que o fustigue
a imprensa burguesa e/ou a neutral
não é ma ideia
mas
já me vejo descobrindo ou imaginando
no continente submerso
a existência de oprimidos e opressores
parciais e neutrais
torturados e verdugos
ou seja a mesma confusão
cuba sim ianques não
dos continentes não submergidos
de modo que
como parece que não tenho remédio
e estou definitivamente perdido
para a frutífera neutralidade
o mais provável é que continue escrevendo
contos não neutrais
e poemas e ensaios e canções e novelas não neutrais
mas aviso que será assim
mesmo que não tratem de torturas e prisões
ou outros tópicos que ao que parece
tornam-se insuportáveis para os neutros
será assim mesmo que tratem de borboletas e nuvens
e duendes e peixinhos
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* Antologia Poética. Mario Benedetti, pp. 119-123.Tradução de Julio Luís Gehlen. Editora Record. Rio de Janeiro, 1988.
Fotos de Mario Benedetti: A primeira é da Reuters, arquivo de Mario Benedetti. A segunda, de Pablo Porciuncula, AFP. Ambas estão na internet.
jfinatto@terra.com.br
Esse poema de Benedetti revela um intelectual, diríamos orgânico, para lembrar Gramsci.
ResponderExcluirNeutrais são aqueles que se venderam no altar do consumo e das honrarias, que abdicaram de suas convicções por interesses. Concordo e apoio, inteiramente, Benedetti.
Comprei um livro dele em Montevideu, em castelhano, e muito me orgulho disso. Paralelamente, li Benedetti por recantos diversos e, inclusive, cantei seu poema Te quiero em arranjo para coral.
Sobrou, ainda, Galeano, para quem entende que as Veias da América Latina continuam abertas...
Abraço.
Ricardo Mainieri