quarta-feira, 10 de março de 2010

Breves anotações de um fantasma

Jorge Adelar Finatto

desenho a bico de pena, 1979, j.finatto
 
As dedicatórias, nos velhos livros dos sebos, me comovem.

Dói nelas a solidão de não mais pertencerem a alguém. Estão soltas no mundo como a mão que acaricia o vento. Caíram no alçapão do tempo, o afeto cobriu-se de pó.

Numa estante qualquer perdida no planeta, as velhas dedicatórias sofrem a tristeza da ausência.

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Abro ao acaso o volume das Elegias de Duíno*, poemas de Rainer Maria Rilke, livro que não visitava há muitos anos. Na orelha está a minha assinatura e o registro de um tempo: abril de 1977.

O primeiro verso da primeira elegia inaugura a perplexidade diante da existência, o recolhimento do ser, a transcendência:

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?

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Tenho o costume de fazer pequenos apontamentos nos livros que leio. Não me constranjo de sublinhar trechos, tecer comentários nas margens, corrigir alguma coisa que me pareça fora de lugar. Faço isso sem remorso, hábito enraizado como o de cheirar os livros. Cada um tem seu aroma.

Nunca me incomodo de encontrar anotações nos livros comprados nos sebos da vida. Pelo contrário, me interessa saber o que o anterior proprietário escreveu, o que lhe chamou a atenção, as impressões que lhe ficaram da leitura, alguma observação curiosa.

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Heitor dos Crepúsculos, o fantasma-mor de Passo dos Ausentes, costuma me visitar nos dias chuvosos como hoje, aqui no escritório onde leio, escrevo e, às vezes, desapareço em pleno ar.

Diz ele que os fantasmas são os grandes frequentadores dos sebos. À noite, no silêncio dos corredores desertos, entre estantes pesadas de volumes e o cheiro adocicado no ar, proveniente das páginas envelhecidas, os voláteis põem-se a vasculhar as histórias contidas nas dedicatórias e registros escritos. Sabem que existe vida ali.

Dos Crepúsculos afirma que os fantasmas amam a vida e só por isso são fantasmas.

Observa que eles procuram nos sebos o livro da vida perdida. Esse livro traz o perfume ressequido do tempo, e as marcas dos dias felizes.

- Costumo fazer anotações à margem das outras anotações. No futuro, quem sabe, ao lê-las, alguém vai se lembrar de mim com o mesmo carinho -, confidencia o volátil Heitor.

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* Elegias de Duíno, Rainer Maria Rilke, tradução de Dora Ferreira da Silva. Editora Globo, 2ª edição, Porto Alegre, 1976.

Ilustração em bico-de-pena (1979) e foto: J. Finatto

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