sexta-feira, 5 de março de 2010

Cartas perdidas

Jorge Adelar Finatto 


O que acontece quando uma carta não chega ao destinatário? Em que misteriosos desvãos se perdem essas correspondências que não encontraram seus legítimos donos?

A comunicação postal faz parte da vida humana. Um mundo sem cartas e sem correio é algo sombrio.

A livre expressão do pensamento, nas cartas, é vista como perigosa pelos estados autoritários. As ditaduras limitam e, não raro, suprimem a liberdade de correspondência.

Esse direito está assegurado no art. XII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XII).

As cartas e o correio estão na origem da civilização. Os mensageiros sempre existiram. Relatos bíblicos contêm referências expressas a respeito deles, como se vê no livro de Jeremias 51:31  (escrito no ano 580 antes de Cristo) e no livro de Ester 3:13 (escrito por volta de 475 a.C.)

Com o advento da internet, o correio tornou-se lento no que diz com a troca de mensagens. Mas o velho sistema persiste, entre outras razões, porque o modo de tratar dos assuntos nas cartas é muito diferente daquele do e-mail, por exemplo. Além disso, o correio permite a remessa física de documentos e objetos.

Voltemos. O descaminho de uma correspondência pode mudar a vida de uma pessoa. O raro leitor não acredita?

Pois foi isso mesmo que aconteceu com o médico norte-americano Royal Ellwood Durham.

O fato só veio à tona em fevereiro de 1987. O correio dos Estados Unidos entregou-lhe, naquela ocasião, dois pacotes com data de 1917. Portanto, com 70 anos de atraso…

O Dr. Ellwood Durham tinha então 92 anos e vivia num asilo na localidade de Linwood, Nova Jersey (nordeste dos EUA).

A correspondência atrasada continha dois documentos assinados pelo ex-presidente dos Estados Unidos Thomas Woodrow Wilson. O primeiro deles consistia na nomeação de Durham para o posto de primeiro-tenente da seção médica do corpo de oficiais da reserva da Marinha americana, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O segundo nomeava-o médico do Jefferson Medical College.

Os pacotes chegaram misteriosamente ao hospital episcopal da Filadélfia, Pensilvânia (costa leste dos EUA), no dia 04 de fevereiro de 1987. Naquele hospital o velho médico havia trabalhado entre 1916 e 1917. Dali foram remetidos para o asilo.

Durham surpreendeu-se, como não podia deixar de ser. Custou acreditar no que via. Ignorava que uma vez o presidente dos Estados Unidos havia se ocupado dele, decidindo coisas importantes a seu respeito.

O médico soube, então, que entre a vida que foi e a que poderia ter sido havia uma correspondência extraviada. Dois documentos que se perderam no caminho, e só encontrariam o destinatário sete décadas depois, quase centenário, enredado nos escaninhos da memória.

As armadilhas do correio e do tempo não conseguiram extraviar o bom humor de Durham. Ao ler o conteúdo dos documentos, comentou: “Isso é uma coisa extraordinária, depois de tanto tempo. Dá o que pensar. O que terá acontecido em todos esses anos?”.

O fato pode levar a algumas incômodas digressões.

E se fosse uma carta contendo uma declaração de amor?

O que poderia fazer com isso setenta anos depois?


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Foto: Jorge Finatto
jfinatto@terra.com.br

2 comentários:

  1. Adelar, neste texto, narras algo real, mas que ganha contornos do melhor surrealismo.
    Parece Buñuel ou o Garcia Marques de "Ninguém escreve ao Coronel"...
    Embora tenha aderido à modernidade, tenho saudade das cartas. Guardo a dos amigos e, claro, aquelas perfumadas de amor juvenil e de ilusões.

    Abraço.

    Ricardo Mainieri

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    1. Ricardo, as cartas são - ou foram - uma bela forma de comunicação na vida das pessoas. Havia todo aquele ritual: pensar, escrever, pôr no envelope, levar ao correio. Depois aguardar a resposta. Era um mundo bem diferente. As coisas eram mais lentas, amadureciam, tinham seu tempo. Agora é só rapidez, falta conteúdo, sentimento. Faltam cartas perfumadas!

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