terça-feira, 16 de março de 2010

Grupo Sanguinovo

Jorge Adelar Finatto


Estive em São Paulo pela primeira vez em 1979. O motivo da viagem era conhecer de perto os integrantes do Grupo Sanguinovo, que só conhecia por cartas. O poeta Antonio Carlos Lucena, o Touchê, foi um dos idealizadores do movimento. Era um querido amigo e parceiro. Morreu precocemente em 1985.

O Sanguinovo organizou passeatas poéticas em São Paulo, intervenções em lugares públicos, lançamentos de obras, leituras de poemas, e aproximou gente do Brasil inteiro. O Sanguinovo lutava pela democratização do país, queria a livre circulação da arte e da poesia.  O tempo difícil da ditadura exigia fé, coragem e criatividade. Era comum o pessoal mostrar e vender o trabalho do grupo na rua, em bares, festas, reuniões, eventos.  

Touchê criou, entre tantas coisas, os poemas do poste, que eram cartazes com textos de cinco ou seis autores cada um. Era um jeito diferente de mostrar a poesia. O suporte eram os postes de iluminação da cidade. A população gostou, a ideia fez sucesso. Na época, a imprensa ainda abria espaço a esse tipo de manifestação.

Participei do Poema do Poste nº 6, lançado em setembro de 1980. A publicação teve apoio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, sendo impressa na Gráfica Municipal.

O meu primeiro livrinho de poemas, Viveiro, saiu pelo Sanguinovo em 1981, com noite de autógrafos (!) no Spazio Pirandello, o lugar cult da cidade na época. Na ocasião também foi lançado um livro da poeta Leila Míccolis, outra amiga  e incentivadora do grupo. Aliás, Leila fez uma das apresentações do Viveiro. A outra foi escrita por Heitor Saldanha.  O meu pequeno livro só foi possível graças à participação do poeta Touchê, que tinha um invulgar talento criativo e enorme capacidade de agregação.

Como não havia email, as comunicações entre os integrantes do grupo eram feitas por carta. Durante muitos anos eu tive uma caixa-postal na agência central do correio em Porto Alegre.

Havia muita vida naquelas cartas, muitas trocas, muita amizade. Notícias de sonhos e realidade chegavam e partiam nas malas postais.

Um tempo de esperança e pequenas gentilezas que fazia tão bem.

Cheguei, então, na rodoviária de São Paulo. Como não conhecia nada nem ninguém, saí andando, apenas com um endereço no bolso. Acabei na frente da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo.

Estava estacionada ali perto uma viatura da então muito temida Rota, da Polícia Militar de São Paulo. Havia nela dois policiais. Desceu um deles e veio em minha direção. Eu estava vestindo roupa de brim, tênis, o velho bornal ao ombro, uma mochila. Me perguntou se estava tudo bem, iniciou uma conversa. Eu fiquei frio, e fui sincero: preciso ir neste endereço e não sei como fazer. Expliquei que tinha acabado de chegar de Porto Alegre.

O soldado então me convidou a entrar na viatura. Disse que me levariam até aquele lugar. Entrei, embora desconfiado e estranhando tanta gentileza por parte de policiais, incomum ou inexistente em plena ditadura. Acho que andamos uns 20 minutos. A conversa foi agradável, amenidades. Os policiais me deixaram na frente da casa, que ficava em Vila Madalena, bairro de intelectuais e artistas. Nos despedimos com um aperto de mão.

Mais tarde contei o acontecido às pessoas da casa - artistas pásticos, músicos, escritores, professores - que não acreditaram na minha história. Onde já se viu aquele tipo de gentileza? Custei muito a convencê-los.

Num outro dia, durante aquela viagem, caminhava pela rua quando caiu uma forte chuva. Me abriguei sob o pequeno toldo de uma fruteira. A dona, uma senhora que parecia japonesa, veio lá de dentro e me convidou a entrar. Eu agradeci, disse que não, não queria incomodar. Ela foi lá dentro. Em seguida voltou e me entregou um guarda-chuva para me proteger melhor. Esperei uns quinze minutos até a chuva passar. Entrei, devolvi o guarda-chuva e agradeci. Me despedi. Ela sorriu e desejou tudo de bom.

Na noite em que retornei, caía uma garoa e havia uma leve neblina em São Paulo. Dentro do ônibus, olhando lá fora as ruas da cidade, tive a impressão de ver Mário de Andrade numa esquina, com os óculos redondos, terno e gravata. Segurava um guarda-chuva numa da mãos. Com a outra, me acenou sorrindo.

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Foto: J. Finatto. Poema do Poste nº 6. Grupo Sanguinovo, São Paulo, setembro, 1980.

4 comentários:

  1. Lembranças destes tempos loucos em Sampa, também, Adelar.
    Da Livraria Pau Brasil e os poemas-posters, lá na Vergueiro, defronte ao Centro Cultural.
    De Fred Maia, de Ulisses Tavares, de Philadelpho.
    Da poesia estampada em camisetas, na extinta feira da Praça da República.
    Dos shows gratuitos de MPB no vão livre do MASP.
    Tenho este livro em casa, ofertado gentilmente pelo autor, quando não tinha nenhum, ainda, para retribuir.
    Bons tempos que, infelizmente, não sei se voltam mais...

    Abraço.

    Ricardo Mainieri

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    1. Ninguém podia imaginar que, passada a ditadura, outra escuridão nos esperava, profunda e dolorosa, essa que estamos vivendo. Mas vai passar. Um abraço.

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    2. Adelar, não sabia desta história da carona gentil na viatura da Rota. Estive em São Paulo também neste período, carregando poesia na mochila e deparei também com várias manifestações de humanidade. um abraço

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    3. Caro amigo anônimo. Eu me surpreendi com essas e outras manifestações em São Paulo. Elas me deram força, me senti protegido por uma onda de afeto. Ulisses Tavares, Aristides Klafke, Paulo Nassar e autor do livro A Rosa da Recusa (me deu um branco sobre o nome dele), sem falar no Touchê, no Takaoka e nos outros amigos do Sanguinovo. Com eles participei da primeira feira de rua de Vila Madalena que misturava arte, culinária, etc. Lá encontrei com Plínio Marcos vendendo seus livros na rua e batemos um papo (como então se dizia), um cara admirável.Tudo era encontro, troca e aprendizado Havia esperança no Brasil e isso alimentava a alma da gente.

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