quinta-feira, 8 de abril de 2010

Acordo Ortográfico: intenções e decepções

Niamara Pessoa Ribeiro
Graduada em Letras e Especialista em Teoria Literária. Porto Alegre.


O trema tornava o "u" sonoro, audível (nos grupos gue/gui e que/qui). Como ensinar a uma criança que, nesses grupos, o "u" permanece sonoro mesmo sem a existência de um sinal para marcar a pronúncia?

Como todo assunto polêmico, o Acordo Ortográfico, mais conhecido como Reforma Ortográfica (ou, segundo o povo, "Desacordo Ortográfico"), arregimentou defensores e oposicionistas. Fácil seria adotar-se posição maniqueísta, tipo "(Brasil) ame-o ou deixe-o", de tão triste memória nos anos de chumbo sequentes ao golpe militar de 64. Com o Acordo Ortográfico, embora já promulgado, as coisas não foram colocadas bem assim ("ame-o ou deixe-o"), pois aparentemente existe a via dialógica abrindo espaço a reavaliações. Isso, porém, é mais teoria do que prática. O Acordo foi sancionado; o prazo para adoção definitiva (1º de janeiro de 2013), estabelecido.

Considerando o elevado nível dos leitores d'O Fazedor de Auroras, dispensável detalhar o texto em seus itens, até mesmo porque edições proliferam com amplas explicações quanto às mudanças. Portanto, de maneira breve, ressalto o infradeclinado.

Um aspecto positivo: a queda do acento na primeira vogal dos hiatos "ee" / "oo" (abotoo, leem, enjoo, creem, voo, deem...). O acento era completamente desnecessário, pois impossível ler-se a palavra, mesmo sem acento de marca paroxitônica, como se acentuada ela fosse na última sílaba (pois a regra das oxítonas por si só imporia o acento pertinente).

Um aspecto neutro: a tentativa de simplificação no caso do hífen. Os "acordistas" trocaram "meia dúzia por seis". O custo-benefício valeu? Quem possuía ilustração, teve que se atualizar. Quem encontrava dificuldades, assim permanece. Quem nada sabia, continuará à margem de impactos culturais. Simplificação? Não houve. A regra continua indigesta, não oferecendo a reforma atrativos, principalmente para discentes.

Um aspecto "maligno": a supressão do trema. A mudança foi ortográfica, "visual", mas não fonética, "auditiva", porque a pronúncia quedou inalterada. O trema tornava o "u" sonoro, audível (nos grupos gue/gui e que/qui). Como ensinar a uma criança que, nesses grupos, o "u" permanece sonoro mesmo sem a existência de um sinal para marcar a pronúncia? A criança vai visualizar "consequência" e "linguiça", e informaremos que o "u" é pronunciado, mesmo sem o trema. Pelas tantas, o aluno vai se deparar com "quero", "querida", "enguiça" ... Sem o sinal diacrítico nos outros grupos citados, como querer que o educando em processo de letramento entenda que não se pronuncia "qüero", "qüerida", "engüiça" ?

Dois objetivos do Acordo se destacam. Objetivo claro: unificação, pois a Língua Portuguesa possuía duas normas oficiais de registro gráfico. Objetivo tácito: a questão editorial, ou seja, a questão econômica, que subjaz a tudo o que acontece de modificativo no mundo. A circulação de livros, em virtude da redação agora uniformizada, se estendeu, comercialmente falando, a territórios mais vastos. Lógico, o mercado está redirecionando investimentos, fruindo a vantagem de as edições circularem com trânsito total após a unificação proposta pela reforma.

Por enquanto, a própria Academia Brasileira de Letras (ABL) não apresentou material conclusivo satisfatório, estando a dever posicionamento diante dos conflitos que recheiam a publicação do VOLP. Até lá, em sua maioria, as redentoras intenções do (des)Acordo configuram-se questionáveis. Um aspecto negativo é a ambiguidade de assimilação por parte de quem deveria ser o "carro-chefe" na adesão às novas regras: a ABL. Exemplifiquemos: profissionais do idioma alertaram imediatamente quanto a situações como a do prefixo "co". Reza o Acordo (Anexo I - Base XVI - Do hífen nas formações por prefixação (....) "se emprega o hífen nos seguintes casos: a) Nas formações em que o segundo elemento começa por h: (....) co-herdeiro (....)". Muito bem. Então, vamos dar uma olhadinha no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), obra da Academia Brasileira de Letras? Lá está, sem hífen e sem "h", "coerdeiro". Tantos já compraram o VOLP editado pós-reforma. E agora, quem cobre o dano? A Academia bem que deveria proceder a um recall para minimizar o prejuízo dos adquirentes do VOLP, levando a sério os especialistas terem apontado não poucas incongruências e demonstrando consideração por quem investiu na aquisição dos exemplares. A ABL deveria se harmonizar com o Decreto.

Personagem interessante: "exceção especial". Ocorre que há uma "Nota explicativa da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL sobre os procedimentos metodológicos seguidos na elaboração da 5ª edição do VOLP (....)" , cabendo ressaltar a data: 2009. Tal "Nota explicativa" informa terem sido tomadas medidas pela Comissão referida (15 medidas!), consideradas "as principais". Pois, retomando o exemplo do prefixo "co-" , lá está a medida nº 9: "Excluir o prefixo co- do caso 1º (....) por merecer do Acordo exceção especial (o grifo é nosso) na observação da letra b (....)".

As exceções pretendidas pela Comissão da ABL via "Nota explicativa" na verdade são improcedentes, pois descabidas se revelam mudanças no Acordo efetuadas pela Academia pertencente a apenas um dos países signatários do Acordo. Nota-se, portanto, que a discussão do tema não havia sido esgotada, sendo conduzida talvez sem a extrema atenção, a ponto de elaborarem uma nota que tem a equivalência dramática de uma errata. Assim, é importante lembrar que uma comissão unilateral não possui autoridade legal internacional para tanto, pois ninguém parcialmente pode modificar o que foi acordado em conjunto e homologado por decreto. Ah, essas medidas póstumas...

Já que apresentaram um remendo explicativo, bem que poderiam ter dedicado atenção à questão do trema, concedendo-lhe o benefício de inclusão nas "exceções especiais", o que não ocorreu, o que muito agradaria à razoabilidade e aos utentes interessados no bom uso do idioma. A abolição da grafia do trema sem alteração de pronúncia agride o bom-senso. Diz a "Nota editorial da 5ª edição" (item II): "O trema que marcava a pronúncia do u (....) foi suprimido (....). Neste Vocabulário, serão assinaladas entre parênteses as indicações ortoépicas que possam oferecer dúvidas ao consulente". Assim, professores ensinarão conforme o Acordo, mas eles, os alunos e interessados deverão portar um VOLP para checagem das "exceções especiais". Por que não batalharam pela permanência do trema, ou por seu uso facultativo, enquanto era tempo?

A "nota explicativa" altera o Acordo munida de uma série de considerandos. Ocorre que aquilo que foi decidido coletivamente entre as nações signatárias não deveria ser alterado parcialmente pela Academia de uma delas ao editar o seu Vocabulário Ortográfico. Mas dá muito trabalho reunir todos de novo e reconhecer que... Resultado, a lei diz uma coisa, de vez em quando o VOLP registra outra.

A nossa Academia apresentou 15 "medidas" que só fazem aumentar a incerteza. Se cada país apresentar a sua "nota explicativa", acabou-se o Acordo. Essas "medidas" não deveriam ter sido levantadas antes do decreto de promulgação?

Com a adaptação às novas regras, impõe-se, com urgência, principalmente a reimpressão de dicionários e livros didáticos. Acervos desabarão na defasagem; os das bibliotecas escolares levarão o primeiro jato do lança-chamas manejado pelas intenções comerciais. Profissionais da nossa língua também arcarão com um impacto da necessidade de atualização agravado pelas divergências apontadas entre o texto do Acordo e o conteúdo do VOLP.

Apesar dos pesares, é necessário aderir ao protocolo modificativo, o que não provoca o encerramento de salutar discussão. A violência repousa no fato de a reforma ter sido efetuada via administrativa, fortemente eivada pela influência do setor editorial com foco na ampliação de mercado, não mais tendo que adaptar obras para ingressar em diferentes países que empregam a Língua Portuguesa. Há um custo financeiro e intelectual, sendo provável que a satisfação e os benefícios para os usuários do nosso idioma sejam humildes em relação às glórias reservadas para o mercado editorial. O mercado, uma vez mais, impõe suas conveniências, relegando a mero pretexto, a segundo plano, decisões que para a coletividade poderiam proporcionar efetivas melhorias e sobre as quais o foco de todas as reformas deveria centrar-se.

Um comentário:

  1. Olha, Adelar, eu não gostei das modificações introduzidas.
    A questão do hífen continua complicada, com o problema de ter de se reaprender tudo de novo. No alemão e no espanhol o hífen não existe. Esteticamente fica feio, mas facilita a escrita.
    A supressão do trema foi um desastre. Realmente alfabetizar uma criança mandando ela imaginar um sinal inexistente é demais...
    Além da ampliação do mercado editorial, no âmbito da Lusofonia, tem a vontade de Lula fazer uma política externa amigável.
    Dissem que ele, após sair do Governo, almeja a cadeira de Bank Moon na ONU...
    Os votos dos países que falam a língua portuguesa conta bastante.
    Para o povo que ainda fala e escreve menas, moremo e otras cositas más, a coisa ficou muito pior.

    Abraço.

    Ricardo Mainieri

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