Jorge Adelar Finatto
Estive três vezes com o escritor Caio Fernando Abreu.
Conheci-o na década de 1970 e o primeiro encontro ocorreu na redação da Folha da Manhã, jornal de vanguarda feito em Porto Alegre por excelente equipe de jornalistas, escritores, artistas e intelectuais de várias áreas.
A Folha da Manhã era a filha rebelde da Folha da Tarde, e neta do vetusto Correio do Povo, os três da Companhia Jornalística Caldas Júnior, que não existe mais (mudou mais de uma vez de proprietários, de orientação e de perfil jornalístico). A sede dos jornais, no velho prédio que ainda permanece, ficava a poucas quadras do Rio Guaíba.
Numa outra vez visitei-o, junto com jovens escritores e poetas, no seu apartamento no centro da cidade, ainda nos anos 70.
O assunto nesses encontros girava, invariavelmente, em torno da literatura e da vida, no Brasil opressivo da ditadura militar. Caio ouvia as nossas conversas com interesse e, sem paternalismo, dizia suas coisas. Era delicado, gentil, às vezes irônico, às vezes triste, e até duro, se fosse o caso.
Em alguns invernos, vi-o de passagem na Esquina Maldita, território porto-alegrense de resistência. Ali havia bares e restaurantes onde se reuniam estudantes, artistas, livres-pensadores em geral. A famosa (na época) Esquina ficava no cruzamento da rua Sarmento Leite com a avenida Osvaldo Aranha, com suas altas e elegantes palmeiras.
A última vez que o encontrei foi em São Paulo, em 1981. Caio trabalhava no jornal Leia Livros, da Editora Brasiliense. Viajei a São Paulo de ônibus comum - como a dureza permitia, e olhe lá - para o lançamento do meu primeiro livrinho de poemas, Viveiro, lançado pelo Grupo Sanguinovo, que era um movimento de poetas e artistas paulistas.
Nos encontramos para um almoço. Conversamos bastante, entreguei-lhe o livro e depois fomos até a Brasiliense. A conversa ia dos livros (como sempre) até a vida dos gaúchos que moravam em São Paulo naquele tempo. Entre outros, o músico e compositor Fernando Ribeiro, grande talento que foi embora de Porto Alegre como tantos, nessa espécie de exílio da gente do Sul, que sempre existiu, em busca de melhores caminhos e oportunidades.
Esses encontros e histórias aconteceram no tempo imemorial de antes de eu ingressar na magistratura, essa senhora exigente que viria a ocupar a minha existência com suas inadiáveis demandas, ritos, austeridades, perplexidades, realização humana e profissional.
Mas acho que nunca deixei de ser aquele jornalista que no início dos anos 1980 trabalhou na redação da Folha da Tarde e que, em certas tardes perdidas no tempo, no café do jornal, via Mario Quintana sentado diante de uma taça branca de café preto com o indefectível quindim amarelo no pires.
O poeta ficava ali muito tempo, lendo ou rabiscando alguma coisa, antes de regressar a sua mesa na redação do velho Correio do Povo. Em silêncio e alheio, num mundo particular, que a gente respeitava. Mas essa é uma história para outro dia.
A impressão que guardo do Caio F. (como costumava se identificar em cartas e em alguns escritos) é a de alguém fraterno e sensível à injustiça - como a realidade desumana e absurda pede -, com um imenso talento para escrever, absolutamente atento ao que se passava no mundo, dentro de si e dos outros.
Um escritor brilhante e um homem bom.
Dia desses encontrei o livro Pequenas Epifanias¹, do Caio, na estante. Um dos tantos belos livros que publicou, como Pedras de Calcutá, O Ovo Apunhalado, Morangos Mofados. É uma obra de crônicas escritas entre 1986 e 1995. Recomendo-o vivamente aos que amam a literatura feita com arte, coragem e esperança. Nele, leem-se coisas encantadas como estas:
‘Sempre gostei de flores. Até hoje lembro de um jasmineiro na nossa casa de Santiago do Boqueirão, bem embaixo da janela de meu quarto, que nas noites de verão enlouquecia o ar com seu perfume intenso, doce e, dizem, um tanto alucinógeno. Mas, durante muitos anos, nunca pensei que fosse preciso cuidar das flores. Elas simplesmente estavam ali, como as pedras, as árvores. Só anos depois percebi que não era assim. (…)” (Breves Memórias de um jardineiro cruel).
“Mas como eu ia tentando dizer para esclarecer de uma vez por todas, e duramente: não é verdade que eu esteja apaixonado por Porto Alegre. Somos apenas bons amigos. Aliás, nem moro em Porto Alegre. Moro no Menino Deus, do qual Porto Alegre é apenas o que há em volta.(…)” ( A cidade dos entretons).
“Para o escritor autografante, a coisa é confusa. Lançamento mistura enfermarias afetivas que de outra forma não se misturariam jamais - imagine reunir numa noite mãe, tias, psicanalista, colegas de trabalho, dentista, antigos professores, amantes ex ou não, vizinhos de apartamento, amigos de infância desaparecidos há 30 anos, etc. O liquidificador emocional é intensíssimo. E há a solidão indivisível: em noite de autógrafos, emoções à parte, quem menos se diverte é o próprio escritor. Além dos turbilhões íntimos, precisa maquinar dedicatórias estonteantes, ser simpaticíssimo e lutar contra o impulso de sair correndo e gritando “me tira daqui!” (…) (Autógrafos, manias, medos e enfermarias).
Essas lembranças do Caio F. (Santiago 1948 - Porto Alegre 1996) acontecem agora, quando o outono abre os portões de ferro cobertos de heras.
Talvez por isso o coração reencontre coisas que pareciam perdidas no tempo.
Belo é o farol que clareia a densa neblina, ilumina o caminho das epifanias.
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Caio Fernando Abreu. Pequenas Epifanias, pp. 120, 129, 153. Editora Sulina, Porto Alegre, 1996.
Foto: site caiofernandoabreu.wordpress.com
O Caio F. das delicadezas, mas também da palavra amarga e irônica.
ResponderExcluirLembro-me de seu tempo de exílio em Sampa, quando ele escrevia para jornais e, voltaemeia, falava de Porto Alegre como a cidade-carroça...
Mudou o cenário dos prédios e shoppings, mas a mentalidade de periferia cultural continua...
Abraço.
Ricardo Mainieri
Valeu, Ricardo. Um abraço!
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